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Ângelo Volpi Neto

Documento Eletrônico

Eu só acredito naquilo que posso pegar, cheirar ou comer. Logo, não acredito na Luíza Brunet”
Luiz Fernando Veríssimo.

O advento da informática está provocando uma mudança jamais vista no Direito. Sabemos que é impreciso o momento em que surgiu a Ciência do Direito; entretanto, é inegável o fato de que a ciência jurídica ganhou corpo, à medida que os homens começaram a gravar suas relações no papel, principalmente o chamado Direito Civil.

Desde então se criou toda uma cultura jurídica em torno da escrita, da assinatura, do arquivamento, da reprodução, do original e dos bens tangíveis de uma forma geral. Eis que agora surge outra realidade, completamente diversa de tudo até agora conhecido. O meio eletrônico é um suporte que exige no mínimo clareza para compreensão de um novo paradigma.

Para alguns, documento eletrônico é algo imaterial, e, portanto, não está ligado a nenhum meio físico. É aceito como prova documental, mas não possui um original. Todos são originais e, sendo assim, não se pode falar em cópia. Pessoalmente, pela minha área de atuação profissional, penso que os conceitos de original e cópia, sempre tão exigidos e propalados, não possuem a menor importância para documento eletrônico, bem como esse pode ser o maior erro ao tentar definir algo inédito, fundamentado em conceitos inerentes ao papel. Complexo e simples, não?

As tentativas de definição de conceitos são arriscadas, pois são reféns da tecnologia. A inevitável comparação com os conceitos “antigos” é o caminho natural, mas sob alto risco, já que a dinâmica das ciências da informática atua e conspira contra a rigidez.

Em linhas gerais, temos que documento tem origem no latim, documentum, que deriva do verbo doceo, que significa saber, anunciar. Carnelutti [1], numa singela definição, ensina que documento é “uma coisa representativa que seja capaz de representar um feito”. Atribuindo um conceito de alcance genérico, que coicide com o significado em sentido figurado que lhe outorgam a grande maioria dos dicionários, ou seja “qualquer coisa que serve para ilustrar ou comprovar algo”[2] A meu ver, outorga um conceito extremamente abstrato e preciso, que por isso mesmo continua atual, desde que entendamos a palavra empregada, “coisa”, em seu sentido amplo.

Iêdo Batista Neves [3] define documento como “todo título, ou peça escrita, ou gráfica, que exprime ou representa alguma coisa que tenha valor jurídico, apta para instruir, ou esclarecer o processo e provar o que alega que o produziu em juízo”. Note-se a diferença fundamental entre o conceito de “todo título ou peça escrita, ou gráfica...” e a “coisa representativa”. Essa é basicamente a maior diferença entre as inúmeras definições que temos para documento, como bem aponta Augusto Tavares Marcacini [4], em memorável artigo.

Buscando melhor compreensão sobre o tema, vale a pena acompanhar o surgimento no Direito da necessidade da prova e do documento. Na era primitiva, as expressões da vontade eram marcadas por rituais, compostos por gestos, expressões e palavras. Os negócios se realizavam em público, para que as assembléias fossem o elemento vivo probante daquele ato.

A falta de um elemento material probante era satisfeita pela concentração de pessoas, surgindo daí o conceito de ato público, praticado “nas portas da cidade” [5] e no paço municipal, onde em geral concentrava-se a administração municipal e da Justiça.

Dessa forma, no Direito antigo, os gestos e atitudes propunham os ritos legais. A traditio, por exemplo, significava algo como “a transferência pela coisa ao alcance da mão”, tendo evoluído, para a atualidade, para a entrega solene da coisa.

Na Roma antiga, os documentos não eram firmados. Existia uma cerimônia chamada manufirmatio, pela qual, depois da leitura do documento por seu autor ou pelo notarius, passava-se a mão pelo pergaminho em sinal de sua aceitação. Somente depois dessa cerimônia é que se colocava o nome do autor, selando o negócio.

No sistema jurídico visigótico a confirmação era feita por testemunhas, que da mesma forma tocavam o documento. Entretanto, esses ritos foram, paulatinamente, sendo substituídos pela assinatura, ou seja, com a popularização dos pergaminhos e, posteriormente, do papel, a materialidade do documento tomou importância absoluta, como vimos nos conceitos e definições acima citados. A susbscriptio passou a representar a indicação do nome do assinante e a data, dando pleno valor probatório ao documento.

Os bens eram essencialmente representados pela tangibilidade; os metais foram elevados ao critério pecuniário. Posteriormente, começaram a surgir os conceitos de direito de uso, de passagem e os chamados direitos autorais, sobre imagens e sons, evoluindo para a propriedade intelectual.

Da mesma forma, com o surgimento do meio eletrônico, impõe-se a necessidade de se ampliar o conceito de manifestação de vontade, o que, conseqüentemente, provoca uma ampliação do conceito de suporte e de documento. Nesse caso, não se trata de uma substituição de formalidade, mas sim, o surgimento de um novo suporte, com a provável conseqüência de superar-se, definitivamente, a associação direta entre documento e suporte tangível.

O festejado jurista argentino Elias Guastavino, numa definição mais atual, ensina: “Documento é toda a coisa suscetível de percepção sensorial e apreensão mental que serve de demonstração histórica indireta e representativa de um feito qualquer, podendo ser declarativo, representativo ou unicamente representativo e estar expresso em qualquer elemento material que sirva para fins representativos - papel, madeira, tela, película fotográfica ou cinematográfica, fita gravadora etc.”

A meu ver, a maior dificuldade em aceitar e definir o documento eletrônico decorre dos conceitos da “virtualidade” e “imaterialidade”, usados indiscriminadamente nesse âmbito. Sobre a “virtualidade”, caberia uma reflexão profunda sob as várias definições do que é virtual ou não. Pessoalmente, tenho severas restrições ao uso dessa palavra num conceito sério de atos eletrônicos.

Em nossa língua, o conceito de virtual está ligado algo que “existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual; que é suscetível de realizar-se”[6]. O que, definitivamente, parece-me não ser o caso. Portanto, analisemos à luz dos dicionários de informática, que definem virtual como: “Dito de algo que somente existe em software, não fisicamente” 12. Ou, ainda, “adjetivo aplicado hoje em dia a quase tudo que expressa uma condição sem limites ou restrições.”13 Ou “um adjetivo usado para descrever um dispositivo, serviço ou uma saída sensorial que, na realidade, não é o que aparenta ser.” 14

Portanto, podemos verificar que, mesmo em dicionários modernos de informática, os conceitos de virtual são antagônicos e não representam a realidade do termo, usado para designar tudo que circula pela Internet, ou que se encontra como produto final de softwares. Em minha opinião, a expressão “comércio virtual” usada para designar “comércio eletrônico” não se encaixa (pasmem!) em nenhuma dessas definições! Assim, presumo que no mínimo aos operadores do Direito seja recomendada cautela com eventuais “virtualismos”.

Quero crer que, provavelmente, esse conceito segue raciocínio de gurus, entre os quais um dos mais celebrados é Nicholas Negroponte, fundador e diretor do Laboratório de Meios de Comunicação do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que em sua obra “Being Digital”, ensina: “Um bit é algo que, como água, não tem cheiro, não tem cor. Porém seus (não) atributos são mais que esses. Um bit também não tem tamanho ou peso e é capaz de viajar à velocidade da luz. Ele é o menor elemento atômico do DNA da informação. É um estado: ligado ou desligado, verdadeiro ou falso, para cima ou para baixo, dentro ou fora, branco ou preto - e é fragílimo... Pode estar em tudo que for relativo à informação. Eis que, a princípio, toda informação (escritos, desenhos, sons e imagens) é passível de ser digitalizada e, por conseqüência, transformada em bits.”

Consultado sobre essa suposta “imaterialidade” em conceito da física pura, o brasileiro Epaminondas Rosa Junior 15 discorre: “Sob o aspecto da mecânica quântica, é pacífico o entendimento de que a informação que transita de forma eletrônica tem existência física real e, portanto, material. O elétron tem existência física, a onda é a característica física de algo que chamamos elétron. Matéria e onda são manifestações de uma única entidade física chamada energia. Da Teoria da Relatividade temos: energia = massa x velocidade da luz ao quadrado. A onda eletromagnética difere de outras como a do som, por exemplo, que necessita um meio material para se propagar enquanto que aquela se propaga no vácuo, porém ambas são consideradas matéria.”

Uma eventual conclusão sobre essa controvérsia não teria apenas conseqüências “filosóficas” como poderia parecer, mas desdobramentos sobre a aplicabilidade em legislações vigentes, de enquadramento sobre a prova, que tem tratamento diverso em função de sua materialidade. Outra conseqüência pode advir do Direito Penal, que em muitos casos tipifica um delito de acordo com a materialidade do bem.

No Direito Tributário, temos um caso específico. É sobre a tributação de software no Brasil, onde não há consenso se deve ser tributado como mercadoria - caso em que estaria sujeito ao ICMS -ou serviço, já que o mesmo é objeto de contrato de cessão de uso, entendendo outros tratar-se, portanto, de cobrança de ISS.16

A par dessas conseqüências, que sejam repensados alguns conceitos amplamente usados, como “contratos desmaterializados”, ou ainda “atos desmaterializados”, referentes ao meio eletrônico. Mas é óbvio que toda essa celeuma é transitória, fruto da adaptação de conceitos clássicos, já que em tempo muito próximo a consolidação do meio eletrônico como prova não remeterá a qualquer discussão aprofundada.

Note-se que todo o esforço doutrinário no sentido de captar o fenômeno da comunicação eletrônica, como gerador de efeito jurídico, parte da percepção humana, independentemente da forma de sua percepção e da função biológica de decifrar significados.

Penso que, se o computador lê (decifra) e não transmite para o homem, não teremos um documento, e sim linguagem de máquina. Entretanto, o restante poderá sê-lo. É evidente que, como regra geral, devemos ter sempre em documento o pressuposto da identificação inequívoca de seu autor – imputação ou procedência - e a idoneidade do suporte, de forma que garanta sua integridade.

Segundo César Santolim 16, temos, como principais condições para que se permita a caracterização de um documento eletrônico que:

a - permita livremente a inserção dos dados que se quer registrar;

b - permita a identificação das partes intervenientes, de modo inequívoco, a partir de sinal ou sinais particulares;

c - não possa ser adulterado sem deixar vestígios localizáveis, ao menos por meio de procedimentos técnicos sofisticados, assim como ocorre com o suporte em papel.

Para Sevidio de Mastronardi 17, documento eletrônico é aquele “elaborado por meio de um computador, sendo seu autor identificável por meio desse ou em memórias eletrônicas de massa” (por memórias de massa, entenda-se os suportes magnéticos, como disquetes ou discos óticos). Note-se que ambos os autores partem do princípio de que o documento deve estar vinculado a um suporte de memória, o que a princípio não me parece correto, pois o documento eletrônico pode circular entre computadores sem estar, necessariamente, gravado em nenhum suporte. Essa perspectiva, mais uma vez, nos causa perplexidade, e por que não dizer, um certo temor. Entretanto, penso que tal característica do documento eletrônico é inegável e verdadeira.

Por outro lado, na prática, como somente visualizamos o documento quando este se encontra em uma máquina, nesse momento ele está fixado em um suporte. Não que esteja necessariamente preso do suporte, mas momentaneamente fixado em uma memória eletrônica de massa, pois somente nessa hora é que pode ser suscetível de percepção sensorial.

Mesmo assim, creio que o documento eletrônico deve ter como característica sua imutabilidade, porém com indissociabilidade a qualquer sistema de arquivamento. Quando falamos em imutabilidade, entenda-se sobre a seqüência de bits que o forma e não o meio onde se encontra.

Assim, por outro lado, ao que parece, não é possível afirmar que um documento eletrônico exista independentemente de arquivamento, pois mesmo que temporário sabemos que, para que o documento eletrônico seja perceptível (legível) pelo ser humano, deve estar fixado em algum arquivo de computador.

Mesmo porque, se considerarmos que o documento eletrônico é uma seqüência de bits, essa não pode ser lida sem o auxílio de um computador. Seria o mesmo que possuir uma caneta sem papel ou outra superfície para escrever.

Para Ettore Giannantonio18, o conceito de documento eletrônico deve ser dividido em espécies que se distingüem em:

1 - documentos formados pelo computador: “São aqueles nos quais o computador, de acordo com uma série de parâmetros e um software adequado, decide em um caso concreto o conteúdo do ajustamento de interesses.”

2 - documentos formados por meio de computador: “São aqueles nos quais se utiliza o computador para elaborá-los, dependendo de uma vontade expressa nesse momento ou anteriormente.”

3 - documentos eletrônicos em sentido estrito: “São os documentos memorizados em forma digital e conservados na memória central do computador ou nas memórias de massa.” Ou seja, não podem ser lidos pelo homem sem a ajuda de um computador.

Sobre essas distinções, faria alguma ressalva aos documentos formados pelo computador, pois entendo que todas as formas provêm direta ou indiretamente da iniciativa do homem, que em última análise tem o controle sobre a máquina, seus resultados, arquivos e programas. Ou pelo menos, para o bem da humanidade, deveria ter.

Diferentemente do documento em papel, que pode assim ser considerado sem assinatura, o documento eletrônico, ao que parece, não existe se não houver uma assinatura eletrônica. Conforme veremos adiante, a assinatura eletrônica é, atualmente, a melhor forma de vincular um texto ou uma imagem eletrônica ao seu autor.

Essas suas características, à luz da tecnologia atual, leva-nos a refletir sobre o meio eletrônico como um fato, que seja considerado documento. Uma página na Internet é um documento? Sendo uma “coisa representativa capaz de representar um feito”, à luz da definição de Carnelutti, sim. Entretanto, a veracidade e a factibilidade desse “feito” dependem de confirmação, correto?

Pensando em um caso concreto, essa mesma página pode existir sem retratar a realidade, aí sim, talvez, sob o conceito de virtualidade (hipotética). Na lide diária notarial, temos sido solicitados a relatar o conteúdo de páginas na Internet. Esse trabalho é feito por meio da Ata Notarial, que é um instrumento no qual o notário relata fatos que presencia. Dessa forma, nas condições atuais onde o meio eletrônico ainda é incipiente como prova em juízo, no Brasil, a parte interessada, munida dessa ata, lavrada pelo notário (no papel), ingressa com esse documento em juízo.

No entanto, se o notário estiver inadvertidamente navegando em uma página falsa, o que é perfeitamente factível, estará relatando algo que presencia e, portanto, existe, porém não relata a realidade do mundo dos átomos. Nesse caso, esse notário estaria faltando com a verdade? A meu ver, temos duas situações distintas.

A primeira é que a página esteja oferecendo algo que não condiz com a realidade, ou seja, seu autor promete algo que não possui ou não irá cumprir. Justamente por isso, o consumidor desejará ressarcir-se de seus prejuízos. A outra situação seria a de o notário estar sendo induzido a erro, já que essa página não é de quem se diz seu proprietário e este, portanto, não pode ser responsabilizado. Poderíamos, então, estimar que o notário teria de estar amparado por alguma espécie de segurança, ao acessar aquela página. Nesse momento, voltamos à questão da imputabilidade, que atualmente só pode ser conferida por meio de sistema de certificação eletrônica, que veremos adiante.

A realidade, ao que parece, é que a fronteira entre o real e o virtual (no sentido hipotético) já não existe, e que o “virtual” pode tornar-se um meio de prova. E que o Verissimo é quem tem razão...

[1] Canelutti, Francisco: “La prueba Civil” Depalma Buenos Aires, 1979.

[2] Vitale, Angélica e Ripamonti, Irene Maria. Trabalho apresentado no III Tema na IX Jornada Notarial Iberoamericana, Lima ,Perú- out. 2000

[3] Vocabulário Prático de Tecnologia Jurídica e de Brocardos Latinos- APM Editora-1987.

[4] Disponível em www.advogado.com - O Documento Eletrônico como meio de prova.

[5] - Gênesis,XIII, 8, 18.

[6] Buarque de Holanda, Aurélio- ED.Nova Fronteira.

12 Crumlish, Cristian – O Dicionário da Internet:: Um guia indispensável para os internautas. Rio e Janeiro: Campus, 1997.

13 Freedman, Alan- Dicionário de Informática, Rio de Janeiro: Makron Books,1995.

14 Microsoft Press- Dicionário de Informática. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

15 Rosa, Epaminondas Jr. Phd. Professor de pós graduação da Universidade de Miami EUA.

16 Ver ddecisão do STF, afirmando que as operações dos softwares vendidos no comércio “em prateleiras” estão sujeitos a ICMS- ( RE-199.464-SP Min. Ilmar Galvão 1a. Turma.DJ 30.04.99)

16 Formação e Eficácia dos Contratos por Computador- Ed. Saraiva –1995.

17 Sevidio de Mastronardi, Ana Maria: El documento Informático la seguridad jurídica – trabalho apresentado no XX Congresso Intercional do Notariado Latino, Cartagena das Indias, Colômbia, 1992.

18 Informática y Derecho – Depalma. Buenos Aires.- 1995.

Retirado de: http://www.camara-e.net/template_sem_menu.asp?tipo=1&valor=874