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Aldemário Araújo Castro
procurador da
Fazenda Nacional e professor no DF
Recentemente, a Casa Civil da Presidência da República submeteu ao
crivo da sociedade em geral, na forma de consulta pública (1), um projeto de
lei sobre documentos eletrônicos ("dispõe sobre a autenticidade e o
valor jurídico e probatório de documentos produzidos, emitidos ou recebidos por
órgãos públicos federais, estaduais e municipais, por meio eletrônico, e dá
outras providências") (2).
Como temos dedicado um tempo razoável na pesquisa e estudo das várias relações
entre o direito e as modernas tecnologias da informação, tendo inclusive
produzido um singelo trabalho acerca dos meios eletrônicos e a tributação (3),
realizamos uma análise, ainda que sumária, da proposta em questão.
Importa sublinhar que a matéria em foco (validade jurídica dos documentos
eletrônicos) representa o principal tema em debate no campo do direito da
informática. Afinal, o traço fundamental da sociedade da informação
consiste justamente na desmaterialização de conceitos tradicionais, como o de
documento. Por outro lado, avança de forma frenética a utilização de registros
eletrônicos de atos jurídicos, onde são literalmente abandonadas as formas de
armazenamento em papel (4).
O projeto de lei em questão apresenta um defeito grave. Com efeito, trata dos
documentos eletrônicos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos e
pelas empresas públicas. Assim, os documentos utilizados nas relações que
envolvem tão-somente particulares não se beneficiam do regramento ora
discutido. Esta limitação ou restrição decididamente não é aceitável (5).
Esta errônea opção, esquecendo ou desconsiderando as relações entre
particulares, afronta a necessidade de segurança jurídica nas relações comerciais
por meios eletrônicos, já significativas na Internet brasileira. Na quadra
histórica em que vivemos podemos afirmar, sem medo de errar, que um dos mais
relevantes instrumentos para o progresso ou desenvolvimento das atividades
econômicas consiste justamente na regulamentação dos documentos eletrônicos.
Curiosamente, o art. 5º do projeto de lei autoriza o arquivamento de
documentos particulares por meio magnético ou similar. Impõe-se a
indagação: se tratou do arquivamento por que não contemplou a produção e a
circulação dos mesmos?
Deve ser ressaltado que as legislações alienígenas sobre a matéria não
consagram a opção restritiva antes destacada. Pode ser apresentado, a título de
exemplo, o Decreto-Lei nº 290-D, de 2 de agosto de 1999, de Portugal (6).
É certo que alguns países, notadamente na América Latina, iniciaram a
normatização dos documentos eletrônicos por intermédio de diplomas legais
restritos à Administração Pública. Nesta tendência se inclui o Brasil com a
edição do Decreto nº 3.587, de 5 de setembro de 2000 (7). Portanto, o próximo
passo a ser dado consiste justamente em regular o assunto para todas as
relações jurídicas (públicas e privadas) ocorridas na sociedade. Aparentemente
não tem sentido continuar a trilhar este caminho apenas nos domínios públicos.
Por outro lado, o projeto de lei, para garantir valor jurídico (e probatório)
aos documentos eletrônicos, consagra os princípios anunciados pelos mais
abalizados estudos da problemática em foco: autenticidade (identificação
do autor) e integridade (não alteração do documento). Assumindo, como
pensamos, o não-repúdio como decorrência da autenticidade.
O projeto adota uma das mais importantes e corretas diretrizes firmadas na
seara do direito da informática: a não edição de norma com força de lei
consagrando uma determinada tecnologia, mesmo que dominante ou única naquele
momento. Considerando a constante, porque não dizer frenética, evolução
tecnológica não convém que o diploma legal sobre a matéria faça uma opção por
esta ou aquele técnica, que pode restar ultrapassada em curto lapso de tempo.
Entretanto, seria de todo conveniente que o dispositivo referido remetesse
expressamente ao regulamento a técnica de assinatura digital a ser utilizada,
não fazendo referência a uma designação momentânea, mutável e criada para a
Administração Pública Federal como o ICP-Gov (Infra-Estrutura de Chaves
Públicas Governamental). Afinal, o regramento do assunto será aplicável a todos
os entes da Federação, dotados de autonomia administrativa e, justamente por
esta razão, refratários ao comando do Chefe da Administração Pública Federal,
mas não ao regulamento da lei nacional.
Existe, contudo, um aspecto do uso da assinatura digital que a nosso ver não
poderia ser deixado ao regulamento: a definição do sistema de certificação e
credenciamento, processos cruciais para garantia das pretendidas autenticidade
e integridade. Entre outros razões, a polêmica doutrinária acerca da extensão
da atividade notarial (art. 236 da Constituição Federal) (8) reclama tratamento
legal. Afinal, a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994 (9), estabelece que os
serviços notariais destinam-se, entre outras finalidades, a garantir a
autenticidade dos atos jurídicos (10).
Constatamos a ausência de definições precisas de original e cópia de documentos
eletrônicos, como presente em legislações estrangeiras e, com muita
propriedade, no Projeto de Lei n. 1.589/1999, oriundo da OAB de São Paulo (11).
Verificamos, outrossim, uma preocupação excessiva com o arquivamento de
documentos em meios eletrônicos ou similares e, por outro lado, a ausência de
importantes definições relacionadas com a comunicação de documentos
eletrônicos.
Por fim, deve ser ressaltado que atualmente, antes da edição de qualquer lei
sobre a matéria, a validade jurídica dos documentos eletrônicos não pode ser
recusada, em função do disposto nos arts. 82, 129, 136 e 1.079 do Código Civil
e dos arts. 131, 154, 244, 332 e 383 do Código de Processo Civil (12). O
projeto, tal como posto, terminaria por subtrair a validade dos atuais
documentos eletrônicos.
Afinal, somente seria reconhecido valor jurídico e probatório aos documentos
eletrônicos onde fossem assegurados a autenticidade e a integridade (art. 1º do
Projeto). Estes condicionamentos não condizem com a tradição de liberdade de
forma dos atos jurídicos no direito brasileiro, onde se admite até o contrato
verbal ou por manifestação tácita de vontade.
Podemos concluir, a partir desta rápida análise, que a proposta possui três
marcas negativas bem nítidas: a) comete um erro inaceitável na definição da
abrangência de seus efeitos; b) deixa de regular inúmeros aspectos cruciais
relacionados com os documentos eletrônicos e c) afasta a validade jurídica,
hoje presente, dos documentos eletrônicos quando não asseguradas, por meio
hábil, a autenticidade e a integridade.
Notas de Rodapé:
(1) Site da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br.
(2) "Dispõe sobre a autenticidade e o valor jurídico e probatório de
documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais,
estaduais e municipais, por meio eletrônico, e dá outras providências.
CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º. Os documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos
federais, estaduais ou municipais, bem como pelas empresas públicas, por meio
eletrônico ou similar, têm o mesmo valor jurídico e probatório, para todos os
fins de direito, que os produzidos em papel ou em outro meio físico reconhecido
legalmente, desde que assegurada a sua autenticidade e integridade.
Parágrafo único. A autenticidade e integridade serão garantidas pela execução
de procedimentos lógicos, regras e práticas operacionais estabelecidas na
Infra-Estrutura de Chaves Públicas Governamental - ICP-Gov.
Art. 2º. A cópia, traslado ou transposição de documento em papel ou em outro
meio físico para o meio eletrônico somente terá validade se observados os
requisitos estabelecidos nesta Lei e em seu regulamento.
Art. 3º. A reprodução em papel ou em outro meio físico de documento eletrônico
somente terá validade jurídica se autenticada na forma do regulamento.
Art. 4º. O documento eletrônico a que se refere esta Lei deverá ser acessível,
legível e interpretável segundo os padrões correntes em tecnologia da
informação.
Art. 5º. Fica autorizado o arquivamento por meio magnético, óptico, eletrônico
ou similar, de documentos públicos ou particulares.
Art. 6º. Atendido o disposto nesta Lei, os documentos arquivados na forma do
artigo anterior, assim como suas certidões, traslados e cópias obtidas diretamente
dos respectivos arquivos em meio magnético, óptico, eletrônico ou similar,
produzirão, para todos os fins de direito, os mesmos efeitos legais dos
documentos originais.
Art. 7º. O arquivamento deverá garantir a integridade e autenticidade dos documentos,
assegurando, ainda, que:
I - sejam acessíveis e que os respectivos dados e informações possam ser lidos
e interpretados no contexto em que devam ser utilizados;
II - permaneçam disponíveis para consultas posteriores;
III - sejam preservados no formato em que foram originalmente produzidos.
Art. 8º. O sistema de arquivamento na forma autorizada por esta Lei deverá
ainda:
I - manter equipamentos de computação necessários para a recuperação e a
exibição dos dados arquivados, durante o prazo em que as respectivas
informações permanecerem úteis;
II - dispor de métodos e processos racionais de busca e trilhas de auditoria;
III - conter dispositivos de segurança contra acidentes e emergências, capazes
de evitar a destruição ou qualquer dano que impossibilite o acesso aos dados
arquivados ou em processo de arquivamento.
Art. 9º. Os documentos em papel ou em outro meio físico e que tenham sido
arquivados em meio magnético, óptico, eletrônico ou similar poderão, a critério
da autoridade competente, ser eliminados por incineração, destruição mecânica
ou outro processo adequado para este fim.
Parágrafo 1º. A eliminação a que se refere o caput far-se-á mediante lavratura
de termo circunstanciado, por autoridade competente.
Parágrafo 2º. Os documentos de valor histórico não serão eliminados, e poderão
ser arquivados em local diverso da repartição que os detenha, para sua melhor
conservação.
Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."
(3) O texto pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico:
http://www.aldemario.adv.br/meios.htm.
(4) Informações da FEBRABAN revelam que em 1999 no Brasil, 9,3 trilhões de
operações foram realizadas sem a intervenção de funcionários, representando 67%
do total de transações. E mais: 2,6 bilhões de cheques compensados, contra 4,6
bilhões de transações eletrônicas. De 1998 para 1999, o número de transações
pela Internet saltou de 38,7 milhões para 126,3 milhões. Fonte:
http://www.modulo.com.br/noticia/a-insegur.htm.
(5) "A matéria (regulamentação de documentos eletrônicos) deveria ser
examinada e deliberada no foro apropriado, que me parece ser o Parlamento, e
não ser implantada unilateralmente por um órgão da Administração Pública na sua
esfera de atuação (Secretaria da Receita Federal), quando se trata de matéria
que deve receber tratamento uniforme em relação a todos os tipos de relações
jurídicas." GRECO, Leonardo. A Revolução Tecnológica e o Processo. Revista
Crítica. Publicação do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira. Faculdade Nacional
de Direito. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outubro/Novembro de 2000.
Págs. 13 e 14.
(6) O diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico:
http://www.giea.net/legislacao.net/internet/assinatura_digital.htm.
(7) O diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3587.htm.
(8) "Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em
caráter privado, por delegação do Poder Público.
Parágrafo 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil
e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e
definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário."
(9) O diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8935.htm.
(10) "A segunda perspectiva é de que se transfira, para o momento e para o
opaco foro da regulamentação da lei, o embate relativo à atribuição da
prerrogativa de registro de certificados eletrônicos - se aos cartórios ou,
como ocorre hoje, a empresas especializadas e escolhidas pelas partes para
reconhecer e garantir veracidade a documentos transmitidos pela rede."
ORSI, Ricardo. O comércio eletrônico e um novo direito da prova: questões jurídicas
e o projeto em tramitação no Senado Federal. Revista Direito em Ação.
Universidade Católica de Brasília. Volume 1. N. 1. Dezembro de 2000. Pág. 146.
"(...) Não obstante, continuamos a sustentar nossa discordância em relação
à solução apresentada pelos arts. 33 e 34 (Projeto da OAB/SP) no sentido de que
somente a assinatura digital do Tabelião lançada em cópia eletrônica de
documento físico original, teria o valor de autenticação." LUCCA,
Newton de. Títulos e
contratos eletrônicos: o advento da informática e seu impacto no mundo
jurídico. Direito e Internet. 1ª Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 68.
"Nesse aspecto, o Projeto (da OAB/SP) distancia-se da tendência
internacional de deixar à iniciativa privada a condução do comércio eletrônico
em geral, e da atividade de certificação em especial, como instrumento de
formação de um mercado aberto e competitivo." QUEIRÓZ, Regis Magalhães
Soares de. Assinatura digital e o tabelião virtual. Direito e Internet. 1ª
Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 408.
Neste particular, entendemos que a legislação brasileira deve seguir as
tendências internacionais. Juridicamente, a lei, conforme prevê o art. 236,
parágrafo 1º da Constituição, fixará as iniciativas compreendidas, ou não,
entre as atividades dos oficiais de registro. Assim, o legislador não está
vinculado a atribuir tais ações tão-somente aos notários, restringindo o
desenvolvimento das atividades sociais dependentes das assinaturas digitais.
(11) O Projeto de Lei da OAB/SP pode ser encontrado no seguinte endereço
eletrônico: http://www.informaticajur.hpg.com.br/ploab.htm.
(12) Código Civil:
"Art. 82. A validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e
forma prescrita ou não defesa em lei."
"Art. 129. A validade das declarações de vontade não dependerá de forma
especial, senão quando a lei expressamente a exigir."
"Art. 136. Os atos jurídicos, a que se não impõe forma especial, poderão
provar-se mediante:
I - Confissão;
II - Atos processados em juízo;
III - Documentos públicos ou privados;
IV - Testemunhas;
V - Presunção;
VI - Exames e vistorias;
VII - Arbitramento."
"Art. 1.079. A manifestação de vontade, nos contratos, pode ser tácita,
quando a lei não exigir que seja expressa."
Código de Processo Civil:
"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e
circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas
deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convecimento."
"Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada
senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que,
realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial."
"Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de
nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe
alcançar a finalidade."
"Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda
que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos,
em que se funda a ação ou a defesa."
"Art. 383. Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica,
cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das
coisas representadas, se aquele contra quem foi produzida lhe admitir a
conformidade.
Parágrafo único. Impugnada a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz
ordenará a realização de exame pericial."
"Há quem sustente, no entanto, como o gaúcho CÉSAR VITERBO MATOS SANTOLIM
(9), que o Código de Processo Civil, na seção destinada a regular a prova
documental, abarca, também, os documentos eletrônicos, desde que o critério de
interpretação não seja o literal". NETO, José Henrique Barbosa Moreira
Lima. Aspectos jurídicos do documento eletrônico. Revista eletrônica Jus
Navigandi. Disponível em: http://www.jus.com.br/doutrina/docuelet.html. Acesso
em: 2 mar. 2001.
"Entendemos, também, que a validade do documento eletrônico em si não deve
ser questionada. Ora, se um contrato verbal é admitido como válido desde 1916,
o contrato realizado em meio eletrônico por maior razão deverá ser considerado
como válido, afinal qual pode o mais pode o menos." NETO, José Henrique
Barbosa Moreira Lima. Aspectos jurídicos do documento eletrônico.
Retirado de: www.conjur.com.br