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Validade jurídica de
documentos eletrônicos.
Considerações sobre o projeto de lei apresentado pelo
Governo Federal
Aldemario
Araujo Castro
Procurador da Fazenda Nacional
Professor de Informática
Jurídica e Direito da Informática
da Universidade Católica de
Brasília
Brasília, 9 de março de 2001
Recentemente, a Casa
Civil da Presidência da República submeteu ao crivo da sociedade em geral, na
forma de consulta pública (1), um projeto de lei sobre documentos eletrônicos
("dispõe sobre a autenticidade e o valor jurídico e probatório de documentos
produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais e
municipais, por meio eletrônico, e dá outras providências")
(2).
Como temos dedicado um
tempo razoável na pesquisa e estudo das várias relações entre o direito e as
modernas tecnologias da informação, tendo inclusive produzido um singelo
trabalho acerca dos meios eletrônicos e a tributação (3), realizamos uma
análise, ainda que sumária, da proposta em questão.
Importa sublinhar que a
matéria em foco (validade jurídica dos documentos eletrônicos) representa o
principal tema em debate no campo do direito da informática. Afinal, o
traço fundamental da sociedade da informação consiste justamente na
desmaterialização de conceitos tradicionais, como o de documento. Por outro
lado, avança de forma frenética a utilização de registros eletrônicos de atos
jurídicos, onde são literalmente abandonadas as formas de armazenamento em papel
(4).
O projeto de lei em
questão apresenta um defeito grave. Com efeito, trata dos documentos eletrônicos
produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos e pelas empresas públicas.
Assim, os documentos utilizados nas relações que envolvem tão-somente
particulares não se beneficiam do regramento ora discutido. Esta limitação ou
restrição decididamente não é aceitável (5).
Esta errônea opção,
esquecendo ou desconsiderando as relações entre particulares, afronta a
necessidade de segurança jurídica nas relações comerciais por meios eletrônicos,
já significativas na Internet brasileira. Na quadra histórica em que vivemos
podemos afirmar, sem medo de errar, que um dos mais relevantes instrumentos para
o progresso ou desenvolvimento das atividades econômicas consiste justamente na
regulamentação dos documentos eletrônicos.
Curiosamente, o art. 5o.
do projeto de lei autoriza o arquivamento de documentos particulares por
meio magnético ou similar. Impõe-se a indagação: se tratou do arquivamento por
que não contemplou a produção e a circulação dos mesmos?
Deve ser ressaltado que
as legislações alienígenas sobre a matéria não consagram a opção restritiva
antes destacada. Pode ser apresentado, a título de exemplo, o Decreto-Lei n.
290-D, de 2 de agosto de 1999, de Portugal (6).
É certo que alguns
países, notadamente na América Latina, iniciaram a normatização dos documentos
eletrônicos por intermédio de diplomas legais restritos à Administração Pública.
Nesta tendência se inclui o Brasil com a edição do Decreto n. 3.587, de 5 de
setembro de 2000 (7). Portanto, o próximo passo a ser dado consiste justamente
em regular o assunto para todas as relações jurídicas (públicas e privadas)
ocorridas na sociedade. Aparentemente não tem sentido continuar a trilhar este
caminho apenas nos domínios públicos.
Por outro lado, o
projeto de lei, para garantir valor jurídico (e probatório) aos documentos
eletrônicos, consagra os princípios anunciados pelos mais abalizados estudos da
problemática em foco: autenticidade (identificação do autor) e
integridade (não alteração do documento). Assumindo, como pensamos, o
não-repúdio como decorrência da autenticidade.
O projeto adota uma das
mais importantes e corretas diretrizes firmadas na seara do direito da
informática: a não edição de norma com força de lei consagrando uma
determinada tecnologia, mesmo que dominante ou única naquele momento.
Considerando a constante, porque não dizer frenética, evolução tecnológica não
convém que o diploma legal sobre a matéria faça uma opção por esta ou aquele
técnica, que pode restar ultrapassada em curto lapso de
tempo.
Entretanto, seria de
todo conveniente que o dispositivo referido remetesse expressamente ao
regulamento a técnica de assinatura digital a ser utilizada, não fazendo
referência a uma designação momentânea, mutável e criada para a Administração
Pública Federal como o ICP-Gov (Infra-Estrutura de Chaves Públicas
Governamental). Afinal, o regramento do assunto será aplicável a todos os entes
da Federação, dotados de autonomia administrativa e, justamente por esta razão,
refratários ao comando do Chefe da Administração Pública Federal, mas não ao
regulamento da lei nacional.
Existe, contudo, um
aspecto do uso da assinatura digital que a nosso ver não poderia ser deixado ao
regulamento: a definição do sistema de certificação e credenciamento, processos
cruciais para garantia das pretendidas autenticidade e integridade. Entre outros
razões, a polêmica doutrinária acerca da extensão da atividade notarial (art.
236 da Constituição Federal) (8) reclama tratamento legal. Afinal, a Lei n.
8.935, de 18 de novembro de 1994 (9), estabelece que os serviços notariais
destinam-se, entre outras finalidades, a garantir a autenticidade dos atos
jurídicos (10).
Constatamos a ausência
de definições precisas de original e cópia de documentos eletrônicos,
como presente em legislações estrangeiras e, com muita propriedade, no Projeto
de Lei n. 1.589/1999, oriundo da OAB de São Paulo (11).
Verificamos, outrossim,
uma preocupação excessiva com o arquivamento de documentos em meios eletrônicos
ou similares e, por outro lado, a ausência de importantes definições
relacionadas com a comunicação de documentos eletrônicos.
Por fim, deve ser
ressaltado que atualmente, antes da edição de qualquer lei sobre a matéria, a
validade jurídica dos documentos eletrônicos não pode ser recusada, em função do
disposto nos arts. 82, 129, 136 e 1.079 do Código Civil e dos arts. 131, 154,
244, 332 e 383 do Código de Processo Civil (12). O projeto, tal como posto,
terminaria por subtrair a validade dos atuais documentos eletrônicos. Afinal,
somente seria reconhecido valor jurídico e probatório aos documentos eletrônicos
onde fossem assegurados a autenticidade e a integridade (art. 1o. do Projeto).
Estes condicionamentos não condizem com a tradição de liberdade de forma dos
atos jurídicos no direito brasileiro, onde se admite até o contrato verbal ou
por manifestação tácita de vontade.
Podemos concluir, a
partir desta rápida análise, que a proposta possui três marcas negativas bem
nítidas: a) comete um erro inaceitável na definição da abrangência de seus
efeitos; b) deixa de regular inúmeros aspectos cruciais relacionados com os
documentos eletrônicos e c) afasta a validade jurídica, hoje presente, dos
documentos eletrônicos quando não asseguradas, por meio hábil, a autenticidade e
a integridade.
NOTAS:
(1) Site da
Presidência da República: http://www.planalto.gov.br/.
(2) "Dispõe
sobre a autenticidade e o valor jurídico e probatório de documentos produzidos,
emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais e municipais, por
meio eletrônico, e dá outras providências.
CONGRESSO
NACIONAL decreta:
Art. 1o. Os
documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais,
estaduais ou municipais, bem como pelas empresas públicas, por meio eletrônico
ou similar, têm o mesmo valor jurídico e probatório, para todos os fins de
direito, que os produzidos em papel ou em outro meio físico reconhecido
legalmente, desde que assegurada a sua autenticidade e
integridade.
Parágrafo
único. A autenticidade e integridade serão garantidas pela execução de
procedimentos lógicos, regras e práticas operacionais estabelecidas na
Infra-Estrutura de Chaves Públicas Governamental -
ICP-Gov.
Art. 2o. A
cópia, traslado ou transposição de documento em papel ou em outro meio físico
para o meio eletrônico somente terá validade se observados os requisitos
estabelecidos nesta Lei e em seu regulamento.
Art. 3o. A
reprodução em papel ou em outro meio físico de documento eletrônico somente terá
validade jurídica se autenticada na forma do regulamento.
Art. 4o. O
documento eletrônico a que se refere esta Lei deverá ser acessível, legível e
interpretável segundo os padrões correntes em tecnologia da
informação.
Art. 5o.
Fica autorizado o arquivamento por meio magnético, óptico, eletrônico ou
similar, de documentos públicos ou particulares.
Art. 6o.
Atendido o disposto nesta Lei, os documentos arquivados na forma do artigo
anterior, assim como suas certidões, traslados e cópias obtidas diretamente dos
respectivos arquivos em meio magnético, óptico, eletrônico ou similar,
produzirão, para todos os fins de direito, os mesmos efeitos legais dos
documentos originais.
Art. 7o. O
arquivamento deverá garantir a integridade e autenticidade dos documentos,
assegurando, ainda, que:
I - sejam
acessíveis e que os respectivos dados e informações possam ser lidos e
interpretados no contexto em que devam ser utilizados;
II -
permaneçam disponíveis para consultas posteriores;
III - sejam
preservados no formato em que foram originalmente
produzidos.
Art. 8o. O
sistema de arquivamento na forma autorizada por esta Lei deverá
ainda:
I - manter
equipamentos de computação necessários para a recuperação e a exibição dos dados
arquivados, durante o prazo em que as respectivas informações permanecerem
úteis;
II - dispor
de métodos e processos racionais de busca e trilhas de
auditoria;
III -
conter dispositivos de segurança contra acidentes e emergências, capazes de
evitar a destruição ou qualquer dano que impossibilite o acesso aos dados
arquivados ou em processo de arquivamento.
Art. 9o. Os
documentos em papel ou em outro meio físico e que tenham sido arquivados em meio
magnético, óptico, eletrônico ou similar poderão, a critério da autoridade
competente, ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou outro
processo adequado para este fim.
§ 1o. A
eliminação a que se refere o caput far-se-á mediante lavratura de termo
circunstanciado, por autoridade competente.
§ 2o. Os
documentos de valor histórico não serão eliminados, e poderão ser arquivados em
local diverso da repartição que os detenha, para sua melhor
conservação.
Art. 10.
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."
(3) O texto
pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.aldemario.adv.br/meios.htm.
(4)
Informações da FEBRABAN revelam que em 1999 no Brasil, 9,3 trilhões de operações
foram realizadas sem a intervenção de funcionários, representando 67% do total
de transações. E mais: 2,6 bilhões de cheques compensados, contra 4,6 bilhões de
transações eletrônicas. De 1998 para 1999, o número de transações pela Internet
saltou de 38,7 milhões para 126,3 milhões. Fonte: http://www.modulo.com.br/noticia/a-insegur.htm.
(5) "A
matéria (regulamentação de documentos eletrônicos) deveria ser examinada e
deliberada no foro apropriado, que me parece ser o Parlamento, e não ser
implantada unilateralmente por um órgão da Administração Pública na sua esfera
de atuação (Secretaria da Receita Federal), quando se trata de matéria que deve
receber tratamento uniforme em relação a todos os tipos de relações jurídicas."
GRECO, Leonardo. A Revolução Tecnológica e o Processo. Revista Crítica.
Publicação do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira. Faculdade Nacional de
Direito. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outubro/Novembro de 2000. Págs.
13 e 14.
(6) O
diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.giea.net/legislacao.net/internet/assinatura_digital.htm.
(7) O
diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3587.htm.
(8) "Art.
236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.
§ 1o. Lei
regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos
notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a
fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário."
(9) O
diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8935.htm.
(10) "A
segunda perspectiva é de que se transfira, para o momento e para o opaco foro da
regulamentação da lei, o embate relativo à atribuição da prerrogativa de
registro de certificados eletrônicos - se aos cartórios ou, como ocorre hoje, a
empresas especializadas e escolhidas pelas partes para reconhecer e garantir
veracidade a documentos transmitidos pela rede." ORSI, Ricardo. O comércio
eletrônico e um novo direito da prova: questões jurídicas e o projeto em
tramitação no Senado Federal. Revista Direito em Ação. Universidade Católica de
Brasília. Volume 1. N. 1. Dezembro de 2000. Pág. 146.
"(...) Não
obstante, continuamos a sustentar nossa discordância em relação à solução
apresentada pelos arts. 33 e 34 (Projeto da OAB/SP) no sentido de que somente a
assinatura digital do Tabelião lançada em cópia eletrônica de documento físico
original, teria o valor de autenticação." LUCCA,
Newton de. Títulos e contratos
eletrônicos: o advento da informática e seu impacto no mundo jurídico. Direito e
Internet. 1ª Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 68.
"Nesse
aspecto, o Projeto (da OAB/SP) distancia-se da tendência internacional de deixar
à iniciativa privada a condução do comércio eletrônico em geral, e da atividade
de certificação em especial, como instrumento de formação de um mercado aberto e
competitivo." QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura digital e o
tabelião virtual. Direito e Internet. 1ª Edição. 2000. EDIPRO. Pág.
408.
Neste
particular, entendemos que a legislação brasileira deve seguir as tendências
internacionais. Juridicamente, a lei, conforme prevê o art. 236, §1º da
Constituição, fixará as iniciativas compreendidas, ou não, entre as atividades
dos oficiais de registro. Assim, o legislador não está vinculado a atribuir tais
ações tão-somente aos notários, restringindo o desenvolvimento das atividades
sociais dependentes das assinaturas digitais.
(11) O
Projeto de Lei da OAB/SP pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.informaticajur.hpg.com.br/ploab.htm.
(12) Código
Civil:
"Art. 82. A
validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou
não defesa em lei."
"Art. 129.
A validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão
quando a lei expressamente a exigir."
"Art. 136.
Os atos jurídicos, a que se não impõe forma especial, poderão provar-se
mediante:
I -
Confissão;
II - Atos
processados em juízo;
III -
Documentos públicos ou privados;
IV -
Testemunhas;
V -
Presunção;
VI - Exames
e vistorias;
VII
- Arbitramento."
"Art.
1.079. A
manifestação de vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir
que seja expressa."
Código de
Processo Civil:
"Art. 131.
O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias
constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar,
na sentença, os motivos que lhe formaram o convecimento."
"Art. 154.
Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a
lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro
modo, lhe preencham a finalidade essencial."
"Art. 244.
Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz
considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a
finalidade."
"Art. 332.
Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não
especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que
se funda a ação ou a defesa."
"Art. 383.
Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, cinematográfica, fonográfica
ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das coisas representadas, se aquele
contra quem foi produzida lhe admitir a conformidade.
Parágrafo
único. Impugnada a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz ordenará a
realização de exame pericial."
"Há quem
sustente, no entanto, como o gaúcho CÉSAR VITERBO MATOS SANTOLIM (9), que o
Código de Processo Civil, na seção destinada a regular a prova documental,
abarca, também, os documentos eletrônicos, desde que o critério de interpretação
não seja o literal". NETO, José Henrique Barbosa Moreira Lima. Aspectos
jurídicos do documento eletrônico. Revista eletrônica Jus Navigandi. Disponível
em: http://www.jus.com.br/doutrina/docuelet.html. Acesso em: 2
mar. 2001.
"Entendemos, também, que a
validade do documento eletrônico em si não deve ser questionada. Ora, se um
contrato verbal é admitido como válido desde 1916, o contrato realizado em meio
eletrônico por maior razão deverá ser considerado como válido, afinal qual pode
o mais pode o menos." NETO, José Henrique Barbosa Moreira Lima. Aspectos
jurídicos do documento eletrônico. Revista eletrônica Jus Navigandi. Disponível
em: http://www.jus.com.br/doutrina/docuelet.html. Acesso em: 2
mar. 2001.
Retirado do site: www.jusnavegandi.com.br