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A proteção d´água na legislação brasileira





Miguel L. Gnigler *




"A civilização tem isto de terrível: o poder indiscriminado do homem abafando os valores da natureza. Se antes recorríamos a esta para dar uma base estável ao Direito ( e, no fundo é essa a razão do Direito Natural), assistimos, hoje, a uma trágica inversão, sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para salvar a natureza que morre."( MIGUEL REALE, "Memórias", SP, Saraiva, 1987, V. I, p. 297).

Quatro quintos do globo terrestre são cobertos de água, mas de todo o manancial existente na face da terra , 97,6% é de água salgada e apenas 2,4% de água doce. Desta pequena porção, 79% está sob a forma de geleiras, nas calotas polares; 20,96% correm silenciosos nos subterrâneos do planeta e apenas 0,04% da água doce do Globo está sob forma de rios e lagos.( Revista Saúde, janeiro/97, p. 26).

Estes números indicam claramente que o bem "água" é, sem dúvida, o recurso mineral mais escasso neste estágio de desenvolvimento da humanidade. A escassez, naturalmente, não reside no volume de água doce encontrada na biota terrestre, mas devido a sua poluição generalizada, reduzindo a porção disponível para o consumo humano.

Daí o consenso mundial acerca da necessidade de garantir às presentes e futuras gerações o direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado ( art. 225, CF), com qualidade razoável que lhes permita viver com dignidade e bem-estar. No Brasil, de há muito que, na esfera legislativa, uma pletora de normas esparsas têm surgido com inegável finalidade de proteger os mananciais de água.

De fato, a preocupação com a proteção d´ água já se fazia presente no Código Penal de 1890, o qual verbalizava a seguinte conduta típica : "Art. 162. Corromper ou conspurcar a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível de beber ou nociva à saúde. Pena: prisão celular de 1 (um) a 3 (três) anos."

Com o advento do Código de Águas, editado em 1934, época em que a mata nativa e as fontes de água potável eram ainda abundantes no nosso Estado, porquanto no início do século a cobertura vegetal nativa chegava a 85%, enquanto que hoje fica na casa dos 6%, o vetusto estatuto traçava regras de conduta ainda válidas para os dias atuais, conforme se depreende dos seguintes artigos:

"Art. 109 - A ninguém é lícito conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros."

Art. 110 - Os trabalhos para salubridade das águas serão executadas à custa dos infratores, que, além de responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos."

O Código Penal de 1940 reproduziu a figura penal de 1890, dispondo : "art. 271 - Corromper ou poluir água potável de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para o consumo ou nociva à saúde. Pena : Reclusão, de dois a cinco anos. Se o crime é culposo: pena: detenção, de dois meses a um ano."

Ocorre que, vivendo num ambiente onde encontrar água potável em sua forma natural é tarefa deveras difícil, percebe-se, sem muito esforço, que a simples menção à potabilidade da água demonstra o descompasso do Código Penal com a realidade, sendo, pois, insuficiente para tutelar o bem em questão . Sim, porque o poluidor defender-se-á, sempre, ao argumento de que a água já não era potável ao tempo de sua conduta, logrando a sua absolvição.

A lei de proteção da fauna ( 5.197/67), impropriamente chamado Código de Caça, com as modificações introduzidas pela Lei n. 7.653/88, transformou em crimes diversas figuras contravencionais, cominando penas mais severas. Previa ela em seu art. 27, par. 2o a pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos para quem "provocar, pelo uso direto ou indireto de agrotóxicos ou de qualquer outra substância química, o perecimento de espécimes da fauna ictiológica existente em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou mar territorial brasileiro". O art. 34, do mesmo estatuto, estabelecia que os crimes previstos nesta Lei são inafiançáveis."

Bem de ver-se, portanto, que a aplicação da norma penal protetora dos peixes, afigurava-se mais eficaz na proteção dos mananciais do que os dispositivos específicos do Código Penal. É bem verdade que o estatuto em referência continha exageros indiscutíveis, na medida em que rotulava de inafiançáveis condutas que contavam com a tolerância do grupo social. Cite-se, como exemplo, o sertanejo que, para saciar a fome de sua prole, abatia um pássaro silvestre.

Outras normas foram erigidas com a finalidade de proteger os cursos de água. A propósito, o art. 15 da Lei n. 7.802/89, cominava uma pena de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos para " aquele que produzir, comercializar, transportar, aplicar ou prestar serviço na aplicação de agrotóxicos, seus componentes e afins, descumprindo as exigências estabelecidas nas leis e nos seus regulamentos."

Bem assim, estabelece a Portaria n. 124/80 ( do Ministério do Interior): "Quaisquer indústrias potencialmente poluidoras, bem como as construções ou estruturas que armazenam substâncias capazes de causar poluição hídrica, devem ficar localizadas a uma distância mínima de 200 (duzentos) metros das coleções hídricas ou cursos d¿água mais próximos."

Já sob a égide da nova Carta Magna, a Lei n. 7.804/89, deu nova redação ao art. 15 da Lei n. 6.938/81, prevendo : "O poluidor que expuser a perigo a incoluminade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave situação de perigo existente, fica sujeito à pena de um a três anos de reclusão e multa de 100 a 1.000 MVR."

Mais recentemente, a Lei no 9.433/97 regulamentou o inciso XIX, do art. 21 da Constituição Federal, instituindo a Política Nacional de Recursos hídricos e o seu gerenciamento, cuja lei normatiza a utilização dos recursos hídricos, objetivando a sua preservação e disponibilidade, em benefício da qualidade de vida da população, reconhecendo, expressamente, que "a água é um bem de domínio público; um recurso natural limitado, dotado de valor econômico e que, em situações de escassez, o seu uso deve ser prioritário para o consumo humano e para saciar a sede dos animais"

A lei em referência sujeita à outorga do Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos ( art. 12 e incisos):

I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo;
II - extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo;
III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final;
IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;
V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade de água existente em um corpo de água."

O infrator da norma fica sujeito às seguintes penalidades ( art. 50) : a) advertência escrita, com prazo para correção das irregularidades; b) multa diária , de R$ 100,00 ( cem reais) a R$ 10.000,00 ( dez mil reais), proporcional à gravidade da infração; c) embargo provisório; d) embargo definitivo, com revogação da outorga;

De salientar-se que, em termos de proteção do meio ambiente, a Constituição de 1988 é uma das mais avançadas do mundo. A propósito, veja-se o teor do seu art. 225 "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

Após longos sete anos de tramitação no Congresso Nacional, acaba de ser sancionada a nova Lei dos Crimes Ambientais, com vigência a partir de 30 de março de 1998. Regulamentando o art. 225, da CF, o novo estatuto, a par de inovações como a responsabilização penal da pessoa jurídica, sistematiza mais adequadamente as normas de caráter penal ambiental, facilitando o seu manejo pelos operadores do direito, bem assim a sua aplicação pelos agentes do Poder Público.

A expressão Poder Público refere-se à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Às comunas, o constituinte concedeu, por via de competência comum ( art. 23), a obrigação de cuidar do meio ambiente. A competência para legislar sobre matéria ambiental pertence concorrentemente à União e aos Estados ( art. 24, VI, VII e VIII). Há quem sustente, entretanto, que, dispondo o art. 30, - "compete aos municípios.... II ¿ suplementar a legislação federal e a estadual no que couber", lícito seria ao legislador municipal legislar sobre a matéria ambiental, versando sobre interesse local.

No entanto, o que se constata é que o Poder Público, notadamente o Municipal, tem agido como agente incentivador, quando não poluidor direto do meio ambiente. Com freqüência, figura no pólo passivo de demandas intentadas para embargar atividades nocivas ao meio ambiente, provocadas por loteamentos e aterros sanitários clandestinos, britadores instalados em área de preservação permanente , etc.

É como diz o insigne Hugo Nigro Mazzilli "Não raro, as pessoas jurídicas de direito público interno serão legitimadas passivas para a ação civil pública, pois que, quando não parta delas o próprio ato lesivo, muitas vezes para ele concorrem diretamente, quando licenciam ou permitam a atividade nociva, ou então deixam de coibi-la" (A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, Atlas, 1993, p. 156).

Sobreleva assinalar, nesta etapa, que a nova lei ambiental protege a água, tipificando como crime a seguinte conduta :

"Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Pena ¿ reclusão , de um a quatro anos , e multa.

§ 2º - Se o crime:

III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade;
V - ocorrer, por lançamento de resíduos sólidos , líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos."

Pena - reclusão , de um a cinco anos."

Discorrendo sobre a nova Lei dos Crimes Ambientais, O Promotor de Justiça Miguel Sales, do Estado de Pernambuco, assinala com propriedade:

"Sem dúvida, a Lei dos Crimes Ambientais, lapidada por grandes juristas de renome, assemelha-se no seu formato , ao Estatuto da Criança e do Adolescente e ao Código de Defesa do Consumidor, que são leis de terceira geração, visando promover a qualidade de vida e a dignidade humana, num País cheio de contrastes e marginalização social. Ter leis boas é ótimo. É um bom passo. Mas não basta parar por aí. A norma é apenas um ponto de partida. Para a sua efetividade é necessário, igualmente, a adoção de outras medidas governamentais, melhor institucionalizando os órgãos responsáveis pela preservação ambiental, pois os atuais estão carentes de toda sorte de recursos." ( Revista Jurídica da Associação Catarinense do Ministério Público, n.3, 1998, p.60).

Em conclusão, portanto, pode-se afirmar que a nova Lei Ambiental traz em seu corpo o aperfeiçoamento do cipoal de normas de caráter ambiental de antanho, servindo de alento para todos quantos laboram nessa área do direito e, notadamente , no que concerne à proteção do bem jurídico água, é indiscutível o seu avanço neste particular, dado que a norma penal já não exige mais a comprovação da potabilidade da água em momento anterior à conduta do agente, bastando a prova de poluição em níveis tais que resulte ou possa resultar danos à saúde humana., ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.

São Miguel d´Oeste, SC, 18 de setembro de 1998.





*Promotor de Justiça.





Disponivel em: http://portalmpsc.mp.sc.gov.br/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=2342 Acesso em: 28.09.05