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A preservação do meio ambiente e o conflito de competências legislativas

O interesse local e a atividade minerária

Jacson Corrêa*



Sumário: 1 - Introdução . 2- O Município e sua autonomia, frente à CF-88. 3 - O interesse local e a atividade minerária - conflito de competências. 4 - Considerações finais. 5 - Bibliografia.



1. Introdução



A Constituição Federal de 1988 não estabeleceu precisamente os limites de competência do Município para legislar sobre matéria ambiental. Embora lhe atribua, pela leitura do art. 23, a competência partilhada com a União e Estados-membros para zelar pelo meio ambiente, combatendo a poluição em qualquer de suas formas, além de preservar as florestas, a fauna e a flora, o art. 24 da mesma Carta Política atribuiu competência para legislar sobre tais assuntos apenas à União, ao Estado-membro e ao Distrito Federal, deixando de fora, inexplicavelmente, o Município, não obstante tenha alçado este último à categoria de importante ente federativo, postando-o em condições isonômicas de tratamento com as demais esferas de poder.



De outra parte, o art. 30, inciso I da Carta Magna estabelece que aos Municípios cabe legislar privativamente sobre assuntos de interesse local, e o inciso II desse dispositivo permite-lhe suplementar a legislação federal e estadual, no que couber. Por tais razões , a diversidade de tratamento posto às pessoas jurídicas de direito público interno têm provocado dúvidas na doutrina, já que não se delineiam na lex fundamentalis , com a nitidez desejada, as fronteiras de atuação de cada uma das unidades da federação sobre proteção do meio ambiente, em especial, quando em jogo interesses, que embora difusos, espraiam-se com maior conseqüência dentro das fronteiras municipais. Alguns propõem, então, que tal competência é fixada supletivamente, cabendo ao Município apenas suprir, dentro das regras gerais e regionais, aquilo que for de seu peculiar interesse. Outros, atribuem-lhe o direito de legislar livremente, sem o escopo de observar a autorização das demais pessoas de direito público interno, em face da previsão inserida no art. 30, inciso I da Carta Republicana.



O presente trabalho, portanto, propõe-se oferecer um estudo sobre o tema, na expectativa de elucidar a controvérsia à luz de uma interpretação sistemática e teleológica dos permissivos constitucionais enfocados, percorrendo as opções deixadas pelo próprio constituinte originário.



Num outro momento, vencida a discussão sobre a possibilidade do Município legislar sobre a defesa do meio ambiente, abordar-se-á a possibilidade deste ente federado impor restrições e sanções ao exercício da atividade minerária, sem colisão com o art. 22, XII da CF, que atribui competência privativa à União para legislar sobre jazidas, recursos minerais e metalurgia.



Por último, bom que se diga que não nos será possível vencer nesse curto trabalho todos os ângulos da discussão, uma vez que envolve, especialmente, um processo de mudança nas relações entre intérprete e legislador, visando redefinir a norma dentro da moldura constitucional para dar-lhe efetividade, assunto que por sua natureza complexa não permite ser compreendido sumariamente, sob pena de fincarmos convicção em cima de posições apressadas e sem qualquer lastro jurídico.



2. O Município e sua autonomia, frente à Constituição Federal de 1988.



O Município, sob a égide da Carta Constitucional de 1988, mais do que nunca, ganhou foros definitivos de autonomia e de liberdade administrativa, tendo sido contemplado como peça estrutural do regime federativo brasileiro, conforme se observa da análise dos arts. 1º, 18, 29, 30 e 34, VII, c, todos da Constituição Federal. Segundo ressalta PAULO BONAVIDES, "não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo, quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988."



Essa autonomia, fundada na tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e autoadministração não encontra precedentes nas Cartas Fundamentais anteriores, assegurando-se aos Municípios os elementos indispensáveis à configuração de sua independência, efetivada mediante a titulariedade de atribuições que lhe são privativas, expostas no art. 30 da Lei Fundamental, em especial, o assim chamado interesse local, que aparece como conceito-chave, na expressão de CELSO RIBEIRO BASTOS, para fixar a sua área de atuação, entendido este como o que afeta mais diretamente as suas necessidades imediatas, e, indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais.



A autonomia municipal, na dicção da Carta Magna, é total no que concerne aos assuntos de interesse local. Esse interesse local, em que pese a aparente redundância, é tudo aquilo que o Município, por meio de lei, entender do interesse da sua comunidade.



O sistema constitucional autoriza a afirmação. Seria estranho, na realidade, se o Município, tivesse que auscultar órgãos ou autoridades a ele estranhos, para saber o que é e o que não é do interesse local".



O Município, assim, na lição de TOSHIO MUKAI, passou a ganhar expressamente status constitucional , face a sua incorporação como parte integrante e autônoma do Estado Democrático de Direito, não obstante correntes doutrinárias em contrário, que ainda apregoam a redução da autonomia municipal, firmes na já ultrapassada dicção das Cartas Constitucionais anteriores, que excluíam dos Municípios o poder de auto-organização. Agora, conforme abalizada lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, este poder foi-lhes expressamente reconhecido, "de sorte que a Constituição criou verdadeiramente uma nova instituição municipal no Brasil."



Evidente que a federação brasileira não traz em si as mesmas raízes que fincaram o pacto federativo sob o modelo norte-americano. Nossa federação foi cunhada pela Constituição de 1891, quer dizer, na prática, a organização federal foi adotada pela União sem que houvesse, sequer de modo implícito, um pacto entre as entidades componentes. Tal circunstância, contudo, não invalida o princípio federativo, cujo pressuposto repousa na isonomia das pessoas políticas internas, e subsiste com maior força quando há recíproca igualdade de tratamentos, quer entre a União e os Estados-membros, quer dessas pessoas políticas com os Municípios. Conforme lecionou com propriedade o Professor FLÁVIO ROBERTO COLLAÇO, ao comentar a Carta Política de 1967, com idêntica aplicação à Carta atual: "Na contextura da Constituição vigente, o princípio da igualdade jurídica dos três entes em questão não é presumivelmente temporário como o são tantos outros (e.g.: legalidade, anterioridade da lei tributária, irretroatividade da lei, etc.). É permanente porque está implícito na idéia de regime federativo, insuperável em nosso meio sem quebra da ordem jurídica total."



Em decorrência dessa autonomia o Município enfeixa, em nossos dias, uma gama de atribuições que lhe dão especial relevo, condição esta que não aparecia anteriormente em nosso ordenamento constitucional com a amplitude desejada pelos municipalistas. Assim, mesmo em áreas em que não tem competência exclusiva, ao menos não é privado delas, repartindo a execução de tarefas comuns com a União, Estados e Distrito Federal. Exemplo disso é o que expressa o artigo 23 da Constituição Federal, onde, ao lado de inúmeras obrigações, a Lei Fundamental reserva-lhe, ainda, competência para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI).



Tal disposição do constituinte ao delegar competência administrativa a todos os entes federativos, visou, antes de tudo, reconhecer a importância de repartir a gestão da coisa pública, sem olvidar-se, obviamente, de resguardar a superlativa competência da União, ao prevenir que as normas gerais, por ela postas dentro da moldura constitucional, não sejam invadidas pela legislação concorrente dos Estados e dos Municípios. Eis o porquê da limitação imposta no artigo 30, inciso II, em que o constituinte de 1988 permitiu ao Município, apenas e tão-somente, suplementar a legislação federal e estadual, embora nas áreas que lhe são reservadas não tenham as leis federais e estaduais qualquer prevalência. "A competência legislativa é, pois, uma expressão basilar da autonomia municipal. O município, no âmbito de sua competência, edita leis que têm a mesma hierarquia das leis estaduais e federais, salvo se no exercício da competência suplementar, quando então as suas normas terão de se amoldar as dos outros níveis de governo."



As normas constitucionais que afetam diretamente o chamado Direito Ambiental são abundantes no texto da Constituição, atribuindo competências legislativas e administrativas privativas, comuns, supletivas e concorrentes aos diversos entes territoriais, sem que o legislador constituinte tenha delimitado expressamente onde começa e onde termina a competência de cada um. Além do mais, a Lei Fundamental contém alguns dispositivos que atribuem competência em matéria ambiental ao Poder Público ou à lei, sem remeter, de modo expresso, à esfera de atribuições privativas da União, do Estado ou do Município.



Todavia, conquanto seja defeso à municipalidade abolir as exigências federais ou estaduais em matéria de meio ambiente, a Lei Magna autoriza o poder público municipal, e sobre isto não há dúvida, formular exigências adicionais sempre que estas tenham por viso o seu próprio interesse no caso concreto. HELY LOPES MEIRELLES assim enfocou a questão:



O controle da poluição, enquadra-se no poder de polícia administrativa de todas as entidades estatais ¿ União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal ¿ competindo a cada uma delas atuar nos limites de seu território e de sua competência e, em conjunto, colaborar nas providências de âmbito nacional, de prevenção e repressão às atividades poluidoras definidas em norma legal.



Por conseguinte, essa competência, se não lhe foi prevista no art. 24, é garantida pelo art. 30, inciso I da CF. Como observa HELITA BARREIRA CUSTÓDIO, no estudo Direito Ambiental Brasileiro e Competência do Município, publicado na Revista dos Tribunais, volume 629, p. 36: ¾ "A matéria ambiental, de interesse direto e imediato à saúde, à segurança, ao sossego, e ao bem-estar da população, logicamente de peculiar interesse local, constitui assunto de competência do município."



Linhas após, à página 39, prossegue a conceituada ambientalista:



(...), referente à exploração ou à utilização de jazidas, minas e demais recursos minerais, o caráter de exclusividade da competência privativa plena da União, ali previsto, é aparente, uma vez que se admite exceção ao conferir validade à legislação estadual ou municipal diante de fatos concretos que imponham medidas indispensáveis à proteção e à preservação do meio ambiente saudável, regional ou local. Sob este aspecto, evidencia-se a competência supletiva do Estado e do Município, mesmo em matéria de recursos minerais, no sentido de estabelecer normas visando a prevenir ou a reprimir a poluição ambiental e proteger a saúde da população. Nesta ordem de raciocínio, na hipótese de qualquer atividade que comprometa o meio ambiente e, conseqüentemente, a saúde pública, não se pode admitir competência exclusiva da União.



Logo, o Município não estará impossibilitado de legislar sobre meio ambiente, ainda que se tenha em conta a curiosa omissão ínsita no art. 24 da Constituição Republicana. Deverá fazê-lo, então, motivado pelo interesse local, dentro dos parâmetros cravados pela legislação federal e estadual sobre a matéria.



3. O interesse local e a atividade minerária - conflito de competências



Para CRETELA JÚNIOR, peculiar interesse, ou assunto de interesse local, desse modo, é aquele que se refere, primariamente e diretamente, sem dúvida, ao agrupamento humano local, mas que também atende a interesses do Estado e de todo o país. Com base nesse interesse, alguns Municípios da região sul de Santa Catarina passaram a editar normas restritivas ao desenvolvimento de atividades catalogadas como potencialmente poluidoras. Exemplar o caso do Município de Criciúma, cuja Lei Municipal n.º 2.459/90, declara logo em seu artigo 1º , o seguinte:



"Art. 1º ¿ Fica criada nos termos da presente Lei a Área de Proteção Ambiental nos morros Albino, Esteves e adjacências, situada no Município de Criciúma.



Seus artigos 2º e 5º, com a nova redação dada pela Lei Municipal n.º 3.179/95, impuseram restrições à atividade de mineração, dado que esta, por sua própria natureza, é considerada para todos os efeitos como atividade potencialmente degradante, em tudo visando preservar os últimos mananciais de água do lugar, assim como a fauna e a floresta nativa remanescente. A saber:



"Art. 2º ¿ A preservação das áreas previstas no artigo anterior, visa proteger o Meio Ambiente Municipal em suas nascentes de olhos d´água que abastecem a região, a fauna e a floresta nativa e transplantada, compreendendo as sub-bacias do Rio Sangão e Rio dos Porcos, bem como melhorar o nível de vida da população ao assegurar o bem estar físico e mental do homem.



"Art. 5º ¿ Nesta área não poderá ser desenvolvida atividade industrial degradante, ficando os órgãos governamentais competentes responsáveis pela fiscalização, controle e assistência técnica, a fim de que se cumpra o que determina esta lei.



Parágrafo 1º ¿ é vedada a extração mineral sob qualquer título ou propósito, dentro das supra dimensionadas fronteiras.



Parágrafo 2º ¿ Na área a que se refere esta Lei, o Município de Criciúma fica proibida de fornecer licença ambiental, como determina a Lei n.º 3.158, de 26 de outubro de 1995."



A questão, portanto, posta pelos defensores da livre iniciativa, reside em saber se a norma municipal não agrediu o rol de competências atribuídas de modo privativo à União, por força do que dispõem os artigos 20, inciso IX, e 22, inciso XII, do Estatuto Fundamental, bem como o art. 1º do Código de Mineração. A tese esposada traz como argumento principal o fato do subsolo pátrio constituir-se em bem de domínio da União; assim, somente a esta caberia legislar sobre suas jazidas, minas e outros recursos minerários. Por igual, que apenas a esta (à União) competiria a imposição de sanções por violação a normas de proteção ambiental, apontando em casos tais, afronta ao art. 22, XII e art. 24, VI, da CF-88.



Em suma: com base em seu interesse local, seria possível ao Município criar normas próprias sobre meio ambiente, ainda que tais normas tenham por viso impor restrições a atividades já reguladas em lei federal específica?



Embora reconheçamos que a matéria é controvertida na doutrina, parece-nos que uma interpretação extensiva dos dispositivos constitucionais enfocados conduz a uma resposta positiva. Há casos em que os limites de atuação do Município dentro dessa definição de competências aparece com maior clareza, sendo de fácil interpretação. Normas sobre o corte e poda de árvores ou preservação de seu patrimônio histórico, cultural e paisagístico representam, na sua essência, interesses que estão localizados dentro da urbe, portanto, não admitem a ingerência dos demais entes federados.



Há, porém, situações em que não se vislumbra qualquer linha divisória capaz de apontar, literalmente, até onde o Município pode ir, como para cuidar do meio ambiente, conservação da natureza, defesa do solo, dos recursos naturais, e controle da poluição. A interpretação, em casos tais, necessita ser conduzida dentro de uma lógica jurídica, sempre visando garantir a coerência do sistema constitucional e a própria segurança das instituições.



Essa lógica nos permite contrastar a lei municipal em referência dentro do conjunto de competências posto pelo constituinte originário. Assim, encaixando-se ela dentro do sistema de forma coerente, sem reação com outros dispositivos constitucionais, diremos que a lei é constitucional; o contrário, implicará numa norma desconexa, portanto, incompatível com a lei fundante, e sua aplicação consistirá, inevitavelmente, em uma ilegalidade. Decerto que a dicção constitucional deve ser vista em sua acepção mais óbvia, evitando-se, sempre, alargar ou restringir de forma indevida o seu significado. Mas, há casos em que a ausência de fronteiras mais nítidas sobre o alcance do dispositivo conduz o intérprete a dizer mais, ou menos do que as palavras aparentavam indicar.



Será preciso, então, nos valermos dos métodos clássicos de interpretação constitucional ¾ sistemático e teleológico ¾ , para revelarmos, dentro do próprio contexto constitucional, o fundamento racional (ratio legis) e o sentido finalístico da norma, "o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito." Como adverte AZEVEDO, "sempre é oportuno enfatizar a velha idéia de que as soluções jurídicas em geral e as decisões judiciais em particular apenas se justificam na medida em que respondem aos reclamos da vida humana, em certo contexto cultural, em dado momento histórico. Para isto é preciso menos hermetismo linguístico e artifícios lógicos, e maior preocupação com os interesses pessoais e sociais em questão."



Ainda quanto à interpretação teleológica, LUÍS ROBERTO BARROSO cita interessante passagem de EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, conforme extrato retirado da obra de ANNA CANDIDA DA CUNHA FERRAZ (Processos informais de mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 43), segundo o qual, "O uso do método teleológico ¾ busca do fim ¾ pode ensejar transformação do sentido e conteúdo que parece emergem da fórmula do texto, e também pode acarretar a inevitável conseqüência de, convencendo que tal fórmula traiu, realmente, a finalidade da lei, impor uma modificação do texto, que se terá de admitir com o máximo de circunspecção e de moderação, para dar estrita satisfação à imperiosa necessidade de atender ao fim social próprio da lei."



Feita essa digressão, vislumbra-se sem qualquer censura que o comando legislativo questionado (art. 5º, parágrafo 1º, da Lei Municipal n.º 2.459/90), não adentrou ao subsolo das áreas sujeitas à mineração; contrário disso, preocupou-se em garantir para a superfície um ambiente sadio, perseguindo a preservação dos últimos mananciais de água, da flora, fauna e da paisagem daquela região. Qualquer argumento em contrário cede sua força a uma análise extensiva e racional do art. 24, VI da Carta Política Federal, uma vez que sua interpretação em conjunto com o art. 30, I, que fixou a competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local, e o art. 23, que disciplina as matérias de competência administrativa que são comuns a todos os entes da federação, permite considerar que os Municípios não só podem como devem, no âmbito de suas peculiaridades, legislar sobre proteção ambiental. Assim,



A atividade administrativa federal sobre a lavra e pesquisa dos recursos minerais deverá respeitar e cumprir a legislação de caráter geral de natureza ambiental ¿ da própria União ¿ como também as normas suplementares estaduais ambientais. Autorizada por órgão federal competente, nem por isso se furta o minerador ¿ privado ou público ¿ à autorização ambiental oriunda da autoridade estadual competente, que, gozando de competência constitucional, tem poder de polícia sobre a atividade, podendo, portanto, impor-lhe sanções administrativas se a mineração for lesiva ao ambiente, como possibilita o art. 225, parágrafo 3º da CF.



Por aí se percebe que se enquadram na competência do Município a proteção ao meio ambiente, preservação da natureza, recursos naturais e combate à poluição em quaisquer de suas formas. E, no exercício de seu poder de polícia pode, então, impor restrições ou vedar obras e atividades outras que prejudiquem a população, a cujo interesse deve servir em primeiro plano, sempre visando a preservação e a racional utilização dos recursos naturais e dos bens culturais, buscando assegurar a sadia qualidade da vida humana para as gerações presentes e futuras (CF, art. 225).



Ademais, como visto, o Município, em se tratando de garantir a preservação de seus parcos recursos hídricos age, inarredavelmente, com apoio em autorização constitucional. Em casos tais, parece-nos elementar que não necessita de autorização da União ou do Estado-membro, uma vez que, como ente federativo, sua atuação se dá em pé de igualdade, "devendo obediência apenas à Constituição da República e à do Estado a que pertence, bem como às leis que, por determinação constitucional lhe impõem regras de conduta na gestão de seus negócios. Daí porque os atos municipais, desde que contidos no âmbito das competências do Município, independem de prévia autorização ou de posterior ratificação de qualquer outra entidade estatal."



Salienta-se a propósito, que o Município de Criciúma, quando criou a Área de Proteção Especial do Morro Esteves, não teve por escopo cassar a concessão dos direitos de exploração entregues à empresa mineradora, nem se apropriar de bem pertencente à União. Apenas fixou limites ao desenvolvimento de uma atividade degradante, e que pelo único fato de existir já se coloca como fator de risco à saúde e bem estar da população do Município.



Para ser mais claro: procurou-se garantir a integridade de todos quantos dependem dos mananciais para a própria sobrevivência, proibindo, exclusivamente, a exploração no subsolo da área especialmente preservada pela lei, liberando a exploração das jazidas de carvão remanescentes, objeto da concessão federal. Evidenciou-se, por aí, a presença de um interesse localizado, capaz de permitir ao Município legislar sobre a matéria, restringindo atividades e impondo sanções administrativas, com suporte em seu poder de normatização e em sua autonomia político-administrativa.



Em acórdão modelar o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina acolheu tese do Ministério Público, postando-se a favor do Município ao entendimento que a este compete legislar sobre meio ambiente, sem afronta a eventuais direitos minerários, sempre que sob a órbita de seu peculiar interesse apresentem-se evidenciados os pressupostos constitucionais.



Assim, afirma-se com segurança que o Município pode garantir, mediante legislação própria, o racional uso do solo, impondo vedações, restrições e sanções a atividades que, a seu sentir, afetam o interesse local, em vista do risco de perecimento de recursos naturais indispensáveis ao bem estar da comunidade, tudo isso sem ofensa aos princípios que norteiam os interesses da União e do Estado-membro, e que dentro do regramento constitucional fixam, respectivamente, as competências que são entregues a cada um desses entes federados.



4. Considerações finais



Embora a temática objeto do presente trabalho não esteja pacificada na doutrina, parece que não restam dúvidas sobre a competência do Município para legislar sobre matéria ambiental, sem colisão com os interesses dos demais entes federados. Vale realçar, então, que nada obstante se tenha em mira a competência legislativa concorrente da União, Estados e DF para preservação do meio ambiente, por força do art. 24 da CF, caberá sempre ao Município legislar, suplementarmente, sobre tais matérias e, preferencialmente, sempre que se transformarem em questões do peculiar interesse municipal (art. 30, I e II da CF).



Este o enfoque mais lógico a ser dado a questão. A interpretação dessas normas, que apenas na aparência se apresentam distoantes, deve passar obrigatoriamente por uma exegese construtiva, que vise dar à Lei Fundamental o máximo de eficácia e efetividade. Contrário disso, seria despir a Constituição de sua força normativa, ignorando o trabalho do constituinte originário, e de regra, todo o esforço empreendido pelo povo brasileiro para dotar o país de uma Carta que representasse a transição para um novo pensar e para um novo agir, fortalecida a consciência de que a proteção a direitos que por sua natureza difusa e coletiva, devem sempre sobrepor-se aos interesses meramente privados e econômicos.



Impende, para isso, que se ampliem as competências locais, porque é ali, com apoio na abertura oferecida pela CF/88, que novas fórmulas de participação poderão ser criadas, organizadas e incentivadas, notadamente quando se tem em conta questões de relevo, a exemplo do que ocorre com a proteção da natureza, dos recursos hídricos, das florestas, da vida urbana, tudo moldado para quebrar o monopólio das decisões, evitando-se a ingerência inoportuna de outras pessoas de direito público interno.



Por igual, não se vislumbra a decantada colisão das leis protetivas municipais que vedam o exercício de atividade minerária em áreas legalmente destinadas à preservação ecológica, com normas do Código de Mineração, ou mesmo com a competência privativa da União para legislar sobre jazidas, minas, ou outros recursos minerais, uma vez que a competência dos Municípios brasileiros para legislar sobre assuntos de ordem local também aparece assegurada por norma jurídica constitucional.



E se o art. 225 da atual Carta Política preconiza a todos os brasileiros o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerado este como um bem de uso comum do povo, incumbe a todos, em geral, e aos poderes públicos, em particular, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Nesse panorama, obviamente que é necessário que se ampliem os espaços legais que possibilitem limitar o uso da propriedade, de modo a reprimir a mobilidade predatória daqueles que agasalhando-se na retórica do desenvolvimento devastam as florestas, exaurem o solo, exterminam a fauna, empobrecem a flora, poluem as águas e o ar, subtraindo aos que aqui habitam o mínimo de qualidade de vida. Retirar do Município a possibilidade de proteger seus recursos naturais, será o mesmo que entregar uma carta de alforria ao empreendedor astuto e ambicioso, que age condicionado pelo mercado e pelo lucro, impedindo-se que ainda se possa entrever alguma esperança de um futuro melhor, mais sadio e menos poluído para os que habitam este planeta.



5. Referências bibliográficas



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*Promotor de Justiça.





Disponível em: http://portalmpsc.mp.sc.gov.br/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=2347 acesso em 28.09.05