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RESUMO O artigo trata da poluição sonora como uma das conseqüências da vida moderna, cuja importância costuma ser negligenciada pela sociedade, mas que causa enormes danos à mesma e ao meio ambiente. O autor observa que até o Estado exerce o papel de agente poluidor, e muitas vezes os governantes e a própria Justiça agem sob uma concepção elitista na interpretação de normas protetoras do conforto auditivo. Como instrumento jurídico de combate à poluição sonora, o autor aponta a Lei nº 7.347/85, que confere legitimação às associações civis defensoras de interesses difusos para demandar em juízo a reparação de danos ao patrimônio objeto de sua defesa, e sugere ações das quais essas entidades poderiam valer-se.
1 CONCEITO DE POLUIÇÃO SONORA
Para o professor José Afonso da
Silva, a poluição sonora consiste na emissão de barulho, ruídos e sons em
limites perturbadores da comodidade auditiva. (SILVA, pp. 470-471).
Está na mesma lição que as fontes
naturais de emissão de ruído geralmente não causam poluição sonora, e apenas
mal estar passageiro, dado o caráter intermitente ou ocasional do barulho
emanado delas (já que é de freqüência curta no tempo, como o trovão). Já as
fontes artificiais de emissão de ruído são geralmente as causadoras de poluição
sonora, como ocorre com as emanações provindas das atividades humanas nas
aglomerações urbanas, porque é pela intensidade e ininterrupção do barulho que
o ouvido humano é molestado (SILVA, p. 471).
Enfim, a poluição sonora ocorre
quando, além de intenso o ruído, é ele também ininterrupto, constante,
freqüente, com o que o ouvido humano nunca se acostumará, ao contrário do que
julga o leigo. Pode-se dormir sob barulho intenso, mas o sono não será
reparador das energias gastas, como é a conclusão da ciência médica.
2 A INDIFERENÇA DA SOCIEDADE À
POLUIÇÃO SONORA
É surpreendente a indiferença
popular quanto aos problemas decorrentes da poluição sonora, embora seja esta
fator de tanto desconforto auditivo e mesmo fonte de irreparáveis danos à
saúde. O ruído intenso e ininterrupto causa tensão nervosa que, a longo prazo,
pode ocasionar de surdez até os mais graves distúrbios neuropsíquicos, sem
contar os riscos de hipertensão arterial e enfarte; também reduz as
resistências físicas do homem e inibe a concentração mental. Segundo
Schopenhauer, o ruído é o assassino do pensamento, e assim acaba sendo
paradoxal ver a famosa Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, assolada
por tanto barulho, como se ali não fosse um grande laboratório das mais
inovadoras idéias que marcam a história do Brasil. É inacreditável como a
grande massa de intelectuais consegue ainda atuar sob diversa gama de sons que
se misturam no centro da cidade de São Paulo. Isso é até hilariante, porque os
trabalhadores braçais atuam em ambientes mais salubres e são privilegiados por
constantes fiscalizações do Ministério do Trabalho no controle da poluição decorrente
das indústrias fabris, salubridade essa que os próprios fiscais não têm.
Também causa espécime como, mesmo
a classe mais privilegiada da sociedade, é pouco exigente quanto ao conforto
auditivo, porque as incorporadoras imobiliárias ainda lançam, com sucesso,
prédios de apartamento de alto luxo em bairros já tão comprometidos com o
barulho, como o de Higienópolis e o Jardim Paulista, em São Paulo.
3 O ESTADO É TAMBÉM AGENTE
POLUIDOR
Não bastasse a indiferença da
sociedade à poluição sonora, vem o Estado moderno se revelar grande estimulador
de hábitos poluidores, e a malha viária das cidades grandes é um exemplo disso.
Não são raras as vias públicas alargadas, com muitas as expressas e as
elevadas, mas sempre em locais já de há muito urbanizados ou inclinados à
urbanização — fruto, sem dúvida, de política de favorecimentos ao transporte
individual, com profundo descaso aos direitos dos que vivem em locais que não
apresentam a menor condição de relativo conforto. Parece mesmo reinar
verdadeira insanidade mental, porque embora a Avenida São João, em São Paulo,
registre índices de ruídos na casa de 90 decibéis — fator de lesões
neurológicas inevitáveis — há três parques infantis construídos às suas
margens. As aberrações apontadas podem decorrer do fato de os administradores
públicos normalmente pertencerem às classes sociais mais abastadas, não
sofrendo, portanto, as vicissitudes desses desvarios. Residem em bairros
afastados do centro e se utilizam de veículos particulares para sua locomoção.
Essas classes possuem concepções elitistas sobre bem-comum, razão pela qual a
ótica que tem inspirado eleições de obras e serviços prioritários está sempre
voltada àqueles de que se beneficiam mais diretamente. Enormes investimentos na
construção das complexas malhas viárias são feitos para atender quase
exclusivamente ao transporte individual.
4 A EXEGESE ELITISTA NA
INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS PROTETORAS DO CONFORTO AUDITIVO
A propósito dessa insensibilidade
das classes dirigentes para os sérios gravames que sua administração causa à
grande parcela da população, é interessante lembrar que a própria Prefeitura do
Município de São Paulo mantém concepção elitista e distorcida quando interpreta
sua Lei de Zoneamento. De fato, contra reclamações de moradores de vias públicas
com excesso de tráfego, tem respondido ser impossível tomar os ônus de que se
queixa a população. Há um desprezo à própria classificação da lei que, ao
instituir as chamadas zonas mistas, somente objetivou amenizar esses piques de
insuportabilidade aos moradores. A característica dessa categoria de zona é
justamente ainda tornar possível viver nos seus limites, com razoável sossego,
diversamente do que ocorre com as zonas predominantemente industriais. O certo
é que, nas chamadas zonas mistas, os moradores apenas têm de conviver com
determinadas atividades menos nocivas, como a exploração de bares, oficinas
mecânicas, e outras que, apesar de incômodas, não tornam insuportável o
ambiente.
Mesmo na Justiça é notada, às
vezes, essa concepção elitista. Sílvio Rodrigues dá notícia de dois julgados
que bem a revelam. O primeiro não acolheu queixa de morador da Avenida São
João, em São Paulo, contra a instalação de cabaré que propagava ruído de seu
interior e dava ensejo a muita algazarra na rua; o segundo mandou encerrar
atividade de certo dancing em andar térreo de prédio de apartamentos
situado em bairro residencial. No primeiro caso, foi considerado que o morador
escolheu voluntariamente local ruidoso para viver, pelo que não podia se
queixar dos incômodos de que reclamava, no ver do acórdão, naturais para a
região; no segundo, prevaleceu o entendimento de que o morador de prédio de
apartamentos em zona residencial não poderia ter seu sossego perturbado. São
decisões distanciadas de um verdadeiro senso de justiça, porque, segundo as
tais, quem é pobre será obrigado a sofrer sempre, por nunca poder viver em
bairros tipicamente residenciais — estes sempre alvo de especulação
imobiliária. Já o reverso ocorre com quem possui melhor poder aquisitivo,
porque além de reunir condições de adquirir imóveis em bairros silenciosos,
pode ainda locomover-se confortavelmente, sem peso expressivo no orçamento. Nos
exemplos apontados, data venia, o correto seria seguir doutrina já
consagrada no exterior, segundo a qual o dono do cabaré estaria obrigado a
equipar o ambiente interno da casa noturna com material capaz de abafar a
propagação de ruído. Não estaria também afastada a possibilidade de
encerramento de suas atividades, por não serem essas de interesse social. Se o
Brasil vivesse consciência já adiantada de preservação do meio ambiente, não
deixaria de aplicar, no caso versado, a idéia de que a pré-ocupação determina a
destinação do local, ou seja, prevalecerá a atividade que predominou
inicialmente e, sem dúvida, a Avenida São João, já citada, foi mais conhecida
sempre como residencial, como ainda não deixa de ser hoje.
5 A POSSIBILIDADE DE COMBATE À
POLUIÇÃO PELA INICIATIVA DA SOCIEDADE
A Lei n. 7.347/85 veio trazer
interessante inovação ao Direito brasileiro. Além de atribuir legitimação às
associações civis defensoras de interesses difusos, para demandar em juízo a
reparação de danos ao patrimônio objeto de sua defesa, também as isenta do
encargo de antecipar as custas para promoção das respectivas ações. Mais ainda:
as referidas associações só responderão pelos honorários advocatícios se
ocorrer perda da demanda pela circunstância de ser essa manifestamente
infundada. É tradicional que apenas o diretamente lesado postule pela
restauração de direito seu; também há obrigatória antecipação das custas para
promover o feito e, invariavelmente, são de responsabilidade da parte vencida
as verbas da sucumbência.
Foi bastante oportuna a edição da
lei, não só pela indiferença do Estado à desenfreada depredação do meio ambiente
urbano, mas particularmente porque é esse mesmo Estado o grande estimulador de
hábitos poluidores, quando não é o causador direto da poluição. É, sem dúvida,
graças às opções políticas das últimas gerações, que São Paulo está incluída
entre as capitais mais ruidosas do mundo e na sua atmosfera são atiradas cerca
de mil toneladas diárias de detritos poluentes. Está mesmo impossível morar ou
circular pelas zonas mais centrais da cidade, tal o ruído existente — sem
contar a impregnação do ar com o cheiro acre da fumaça de veículos movidos a
óleo diesel.
Com a edição da lei apontada, as
entidades defensoras de interesses difusos se armam de poderoso instrumento
jurídico para combate aos cruciais problemas comuns hoje nas grandes cidades,
para os quais o Poder Público é de todo indiferente; aliás, por culpa desse,
muitos dos tais problemas são, em nossos dias, alarmantes.
6 AS VÁRIAS AÇÕES POSSÍVEIS PARA
ESSE COMBATE À POLUIÇÃO SONORA
Ação oportuna de que poderiam se
valer tais entidades no momento, seria obrigar os municípios a remanejar o
tráfego excessivo de veículos de certas vias públicas ditas "corredores de
tráfego" — para outras, adjacentes. Já não pode ser mais tolerada carga de
trânsito como a existente hoje na Avenida São João em São Paulo, por exemplo, —
onde o índice de ruídos atinge 90 decibéis, fatos não só de desassossego aos
moradores lindeiros, mas também de enormes gravames à saúde. Condói saber que
nesses locais vivem milhares de criancinhas sobressaltadas dia e noite pelo
estrondoso e incessante barulho da circulação ininterrupta de volumosa frota de
todo tipo de veículo. Chega mesmo a ser incompreensível como os comerciários
suportam trabalhar sob tais condições.
O fundamento para a referida ação
está na própria Constituição Federal. De fato, constitui direito-dever do
município zelar pela conveniente circulação urbana de veículos, preservando o
sistema viário contra excessos de tráfego. É nesse sentido a lição de Hely Lopes
Meirelles. Para o caso da cidade de São Paulo, há ainda a Lei n. 8.106/74, que
estabelece limites máximos de ruídos toleráveis que, se obedecidos, ensejariam
à população ideal conforto auditivo. Não favorece o município a alegação de que
não lhe cabe responsabilidade porque foi voluntária a escolha, por parte do
cidadão, de local ruidoso para viver. Ocorre que, a partir do momento em que
foi permitido o assentamento de residência às margens de via pública, o
município assume o dever de assegurar ao morador a necessária tranqüilidade,
como também de evitar riscos à saúde da população. Segundo lição do citado
professor, Embora seja certo que quem elege cidade grande para viver deve
suportar o ônus que isso apresenta, todavia é dever do Poder Público amenizar o
quanto possível a propagação de ruídos incômodos aos habitantes, principalmente
em horário de repouso. O rumor das indústrias, a agitação do comércio se impõem
aos cidadãos como ônus normais da vida urbana, em contraprestação das múltiplas
vantagens que essas atividades proporcionam, mas o ruído anormal, excessivo,
insuportável, principalmente à noite, apresenta-se como antijurídico
(MEIRELES, p. 406). Cabe ainda o comezinho princípio de Direito administrativo,
segundo o qual os serviços e obras públicas não podem, a pretexto de beneficiar
a coletividade, pesar gravosamente para determinada parcela da população.
Outra ação deveras oportuna seria
a retirada ou a redução, no mínimo, no tráfego de veículos no centro da cidade
de grande movimento. É direito irrecusável do cidadão poder exercer sua
profissão sem desconfortos intoleráveis e sem sujeição a graves riscos de
saúde.
Também não poderia faltar ação no
sentido de compelir as empresas exploradoras do transporte coletivo urbano a
substituir o equipamento antipoluente dos veículos, sem dúvida inadequado ao
ambiente das grandes cidades. Ninguém nega o estrondoso barulho que os
coletivos movidos a óleo diesel produzem dia e noite nas cidades de maior
densidade demográfica. Tal se deve à substancial concentração desses veículos
por reduzidos e acanhados pontos das zonas centrais, mercê da concentração de
pessoas por força da atividade econômica ali existente. A pressão sonora
aumenta (porque muitos são os motores funcionando a um só tempo) e também acaba
sendo incessante por causa da circulação ininterrupta gerada pela quantidade de
veículos e pela falta de boa fluidez do tráfego.
Poderiam as permissionárias
argumentar que o equipamento antipoluente dos coletivos obedece às
especificações impostas pelo Governo Federal, pelo que não se acham obrigadas a
promover a substituição. Todavia, essa regulamentação não prevalece contra o
peculiar interesse dos grandes aglomerados urbanos, para os quais os limites
devem se situar bem abaixo do nível convencional em face das particularidades
já apontadas. Com efeito, houvesse razoável intervalo na circulação entre um
veículo e outro e, apesar de intenso, o barulho não traria o desconforto
auditivo tão penoso como o verificado nas grandes cidades.
À evidência, pode o município
dispor sobre esse assunto com absoluta autonomia, por ser matéria de seu
peculiar interesse. Ensina o renomado professor Hely Lopes Meireles: De um
modo geral cabe à União legislar sobre assuntos nacionais de tráfego ou
trânsito, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a
circulação intermunicipal em seu território e ao município cabe a ordenação da
circulação e o tráfego local (MEIRELES, p. 362). Anota ainda o
doutrinador que assim ocorre na generalidade das nações civilizadas, certamente
para viabilizar o primado do interesse social.
Cumpre anotar, também, que se o
legislador municipal não dispuser sobre a matéria, ou não atuar o órgão
executivo municipal no exercício do seu poder de polícia, cabe ao Poder
Judiciário intervir. O fundamento jurídico para isso está em que é direito
constitucional do cidadão o de ter preservadas suas condições vitais e o
indispensável conforto que exige a natureza humana. Segundo o Desembargador
Kasuo Watanabe, direitos como esses decorrem do regime e princípios da
Carta Magna, cujas normas não são meramente programáticas, mas outorgam desde
logo um direito à qualidade de vida. Conclui o mestre, com apoio da lição do
prof. Fábio Konder Comparato, que a Justiça pode atuar em casos de omissão
legislativa na edição das normas ordinárias e complementares destinadas a dar
eficácia aos dispositivos constitucionais.
Certamente não faltará, nesse
tipo de feito, a presença do Poder Público municipal como litisconsorte, para
ser compelido a exercer fiscalização eficaz às condições de trafegabilidade da
frota de coletivos, ou sofre sanção caso não o faça.
É também irrecusável a ação para
compelir o Poder Público — no caso de São Paulo, o próprio município — a
exercer atribuição que lhe é inerente e que vem sendo negligenciada de forma
clamorosa, qual seja, a de fiscalizar as condições de trafegabilidade da frota
de veículos circulante pela cidade. É incompreensível o descaso da apontada
municipalidade para os desastrosos abusos de usuários de veículos automotores.
Hoje a cidade vive infernizada dia e noite por insuportável poluição sonora
trazida pelos veículos mal conservados ou dotados de escapamento dito
"esportivo", na verdade, intoleravelmente ruidosos. Residências,
hospitais, escolas, áreas de recreação, acabam sendo continuamente assolados
por terrível barulho das motocicletas com escapamento aberto ou então pelos
ruidosos utilitários mal conservados a transitar sem restrições por qualquer
local e horário, sem faltar a esse coro infernal o já incômodo ruídos dos
automóveis "populares". Aliás, só mesmo a mais inédita sensação de
impunidade poderia ensejar o desenvolvimento de tão anti-social comportamento,
generalizado na sociedade brasileira.
Ao cabo, a veloz circulação de
veículos pelas cidades, além de trazer enorme perigo ao pedestre, é causa de
exacerbação de ruídos. Daí também caber ação no sentido de exigir que o
município não só crie obstáculo ao excesso de velocidade, mas exerça enérgica
fiscalização. É inegável a omissão do Poder Público a respeito, tanto que se
fosse exigido hoje em São Paulo obediência ao Código Nacional de Trânsito — no
que diz respeito à velocidade — certamente haveríamos de registrar inédito
congestionamento, o que bem revela que os equipamentos urbanos já são
estruturados de tal forma que, para ser cumprida sua função, é preciso
descumprir a lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MEIRELES, Hely Lopes. Direito
Municipal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. 723 p.
SILVA, José Afonso da. Direito
Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.
* Juiz de
Direito substituto de Segundo Grau no 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de
São Paulo e membro da Associação de Juízes para a Democracia.
Disponível em:
<http://daleth.cjf.gov.br/revista/numero3/artigo05.htm
>. Acesso em 31 mai. 05.