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A tutela jurídica do desporto vinculada ao meio ambiente cultural e o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei n. 10.671/2003)

 

 

 

Celso Antonio Pacheco Fiorillo

Livre-docente, Doutor e Mestre pela PUCSP. Professor dos programas de Mestrado da UNIMES-Santos, da UEA-Amazonas, da Escola Superior de Advocacia da OABSP, da Escola de Magistratura do TRF da 3.ª Região (São Paulo/Mato Grosso do Sul) e da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Membro Titular da Academia Paulista de Direito. Assessor Científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e autor de várias obras jurídicas

 

 

 

1. Meio ambiente cultural e desporto

 

Conforme já tivemos oportunidade de destacar2, a estrutura jurídica do meio ambiente no Brasil possui, pelo próprio conceito desenvolvido na Lei n. 6.938/81, integrado ao art. 225 da Constituição Federal, uma conotação multifacetária, na medida em que o objeto de proteção se verifica em pelo menos quatro aspectos distintos (meio ambiente cultural, artificial, do trabalho e natural), os quais preenchem o conceito da sadia qualidade de vida.

 

Ao se tutelar o meio ambiente cultural, o objeto imediato de proteção relacionado à qualidade de vida em nosso país é o patrimônio cultural brasileiro, conceituado constitucionalmente (art. 216) como “os bens de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. A Carta Magna não faz restrição a qualquer tipo de bem, de modo que podem ser materiais ou imateriais, singulares ou coletivos, móveis ou imóveis, mas sempre passíveis de proteção, independentemente do fato de terem sido criados por intervenção humana.

 

Como recreação, passatempo, lazer, o desporto, embora explicitamente tratado no art. 217 da Constituição Federal, passou a ter natureza jurídica de bem ambiental a partir de 1988, por se encontrar claramente integrado ao conteúdo do art. 216 como importante forma de expressão (art. 216, I), portadora de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira3.

 

O desporto faz parte, em síntese, do patrimônio cultural brasileiro (art. 216, caput da Constituição Federal)4, sendo dever do Estado observar sua proteção assim como incentivar as manifestações desportivas de criação nacional (art. 217, IV).

 

Abrangendo tanto as práticas formais (reguladas por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto5, conforme estabelece o art. 1o, § 1o, da Lei n. 9.615/98) como as não formais (caracterizadas pela liberdade lúdica dos praticantes, ou seja, faz-se por gosto sem outro objetivo que o próprio prazer de fazê-lo visando mais ao divertimento puro e simples, conforme indica o art. 1o, § 2o, da Lei n. 9.615/98), o desporto deve observar de qualquer forma e  necessariamente o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III), como importante critério delimitador da ordem econômica (art. 170 e 1o, IV), sempre no sentido de respeitar as necessidades de brasileiros e estrangeiros residentes no País no que se refere ao importante direito ao lazer (art. 6o da Constituição Federal), componente do denominado “piso vital mínimo”6 .

 

Destarte, a possibilidade de o desporto ser articulado no plano econômico, inclusive praticado profissionalmente (arts. 26 a 46), não desnatura sua natureza jurídica, devendo ser interpretado seu uso (tanto para aqueles que praticam como aqueles que prestam serviços, fomentando aludida prática) dentro dos parâmetros da ordem jurídica do capitalismo orientada por nosso sistema constitucional, assim como regras infraconstitucionais dele delimitadoras.

 

 

 

2. Desporto e lazer7

 

Tendo em vista que, no plano normativo, o desporto tem natureza jurídica de bem ambiental, fica evidente que seu reconhecimento diante de manifestação de desporto educacional (art. 3o, I, da Lei n. 9.615/98) e de desporto de participação (art. 3o, II, da mesma lei) abarca imediatamente o objetivo maior do direito ambiental brasileiro, uma vez que se preocupam aludidas manifestações, fundamentalmente, “com o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e prática do lazer”, assim como visando a contribuir para a “integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e educação e na preservação do meio ambiente”. Sendo clara a integração do desporto no âmbito do piso vital mínimo (art.6o da Constituição Federal).

 

Todavia o desporto também deve ser observado, no plano jurídico, em face da possibilidade de ser usado em proveito da livre iniciativa, hipótese em que o lazer passa a ser direcionado no âmbito das relações econômicas viabilizando o interesses de entidades – tanto aquelas que organizem competições como as destinadas à pratica desportiva – que pretendam fazer dessa prática um importante serviço fornecido no mercado de consumo.

 

É, portanto, em defesa daqueles que apreciam o lazer organizado pelas entidades de prática desportiva, acompanhando determinadas modalidades, que o legislador organizou o Estatuto de Defesa do Torcedor.

 

 

 

3. As entidades de prática desportiva e os direitos do torcedor

 

As entidades de prática desportiva, como já afirmamos, são pessoas jurídicas de direito privado (art. 16 da Lei n. 9.15/98), com organização e funcionamento autônomo e competência definida em seus estatutos. Livres – liberdade obviamente disciplinada em harmonia com a Constituição Federal – para organizar a prática desportiva profissional, qualquer que possa ser a modalidade (art. 26 da Lei n. 9.615/98), têm inclusive a faculdade de se transformarem em sociedade civil de fins econômicos ou sociedade comercial, podendo ainda constituir ou contratar sociedade comercial para administrar suas atividades profissionais (art. 27, I, II e III). Podem, exatamente no sentido de bem desenvolver as diferentes práticas antes referidas, pactuar contrato formal de trabalho com atletas profissionais, caracterizando-se como empregadoras na forma da legislação trabalhista, com deveres especiais definidos no art. 34 da Lei n. 9.615/98.

 

Destarte, exatamente com a finalidade de desenvolver práticas com finalidade absolutamente compatível com o sistema econômico definido em nossa Carta Magna (arts. 1o, IV, e 170 da Constituição Federal) é que visam referidas entidades a organizar competições destinadas àqueles que apreciem, apóiem ou mesmo sejam associados a aludidas agremiações. Ou seja, visam atender os desejos do torcedor (art. 2o da Lei n. 10.671/2003), como pessoa diretamente interessada em práticas desportivas.

 

Daí restar bem disciplinado, no campo jurídico, que, da mesma forma que qualquer entidade de prática desportiva equipara-se, por força de lei (art. 3o da Lei n. 10.671/2003), a FORNECEDOR (definido juridicamente como toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como ente despersonalizado, que desenvolva atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, na forma do art. 3o da Lei n. 8.078/90), são os torcedores resguardados não só pelos direitos que lhes foram atribuídos pelo Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei n. 10.671/2003) como fundamentalmente pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), assumindo a condição jurídica de consumidores (arts. 2o, parágrafo único, 17 e 29).

 

Os torcedores têm, por via de conseqüência, todos os direitos e deveres que lhes são garantidos/impostos não só pelo Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei n. 10.671/2003) como pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). Ou seja, além dos direitos apontados no § 2o do art. 5o do Estatuto do Torcedor, têm eles todos os direitos informados no Código de Defesa do Consumidor, não só em decorrência de determinação expressa contida no art. 40 do Estatuto (“A defesa dos interesses e direitos dos torcedores em juízo observará, no que couber, a mesma disciplina da defesa dos consumidores em juízo de que trata o Título III da Lei n. 8.078/90, de 11 de setembro de 1990”) como principalmente por imposição constitucional, na medida em que a defesa do consumidor – e o torcedor é um exemplo típico de consumidor – é assegurada em nosso sistema jurídico  como direito material constitucional fundamental, tanto no âmbito individual como no coletivo.

 

Concluindo, os direitos do torcedor indicam evidentemente os deveres das entidades de prática desportiva, obrigadas que estão não só a obedecer, na condição de fornecedoras, às regras do Estatuto do Torcedor e do Código de Defesa do Consumidor como principalmente às determinações constitucionais, que claramente estabelecem o uso dos bens ambientais – particularmente a tutela jurídica do desporto como patrimônio cultural brasileiro – em proveito de brasileiros e estrangeiros residentes no País como preceito fundamental em respeito ao Estado Democrático de Direito.

 

 

 

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1. Artigo em homenagem aos ilustres professores doutores LUIS ANTONIO RIZZATTO NUNES e ROGÉRIO JOSÉ FERRAZ DONNINI, representantes destacados do iluminado e glorioso “alvinegro praiano”.

 

2. Curso de direito ambiental brasileiro, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2003.

 

3. Basta tomar como exemplo de desporto – aliás o mais importante exemplo brasileiro – a modalidade conhecida como  futebol. Tendo começado  em nosso país no ano de 1894 (quando o paulista Charles Miller retornou da Inglaterra para o Brasil com duas bolas de futebol, um livro de regras e um jogo de uniformes, depois de aprender, durante seus estudos em Southampton, o esporte criado pelos ingleses) e tendo sido  realizada a primeira partida em 1895 – funcionários da Companhia de Gás  x Funcionários da São Paulo Railway –, passou a interessar e ser praticado por vários brasileiros, participantes dos mais diferentes grupos integrantes do processo civilizatório nacional, que começaram a fundar associações para a prática do desporto, como a Associação Atlética Acadêmica Mackenzie, fundada em 1898 pelos estudantes do Colégio Mackenzie, e a Associação Atética Ponte Preta, bem como clubes em vários Estados do País, como o São Paulo Athletic, o Sport Club Internacional, o S. C. Germania e o S. C. Rio Grande. Foram criadas posteriormente entidades como a Liga Paulista de Futebol, em 1901, e ampliados os clubes para a prática do desporto, com a fundação no Rio de Janeiro do Fluminense Futebol Clube (1901) e do Flamengo (1911) e, em São Paulo, do Sport Club Corinthians Paulista (1910). O primeiro jogo da Seleção Brasileira de Futebol (composta de paulistas e cariocas) aconteceu em 21 de julho de 1914, e até sua consagração aos olhos do mundo, com a conquista do Pentacampeonato Mundial, no século XXI, trilhou seus primeiros passos do profissionalismo na década de 30 (oportunidade em que o esporte já virara literalmente mania nacional). Sua glória adveio nos chamados “anos dourados” (1951-1970), oportunidade em que o “mais belo futebol do mundo” se destacou não só por sua seleção nacional mas também por clubes de futebol como o Santos Futebol Clube, time do Rei Pelé (Edson Arantes do Nascimento),considerado “um time dos céus”.

 

4. Daí a existência do art. 4o, § 2o, da Lei n. 9.615/98, que estabelece: “ A organização desportiva do País, fundada na liberdade de associação,  integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerada de elevado interesse social” .

 

5. As entidades nacionais de administração do desporto são pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomos e competências definidas em seus estatutos (art. 16 da Lei n. 9.615/98), integrantes do SISTEMA NACIONAL DO DESPORTO (art. 13 da Lei n. 9.615/98) cuja finalidade é a de promover e aprimorar as práticas desportivas de rendimento previsto no art. 3o, III, da Lei n. 9.615/98. As práticas desportivas de rendimento  têm como finalidade  obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações, podendo ser organizada e praticada das seguintes formas, conforme determina  a legislação em vigor:

 

1) DESPORTO DE RENDIMENTO ORGANIZADO E PRATICADO DE FORMA PROFISSIONAL, que se caracteriza pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva (art. 3o, parágrafo único, I, da Lei n. 9.615/98) e

 

2) DESPORTO DE RENDIMENTO ORGANIZADO E PRATICADO DE  MODO NÃO PROFISSIONAL, que se carateriza pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio (art. 3o, parágrafo único, II, da Lei n. 9.615/98).

 

Verificamos que a lei autoriza o uso do desporto em proveito da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, o que não significa dizer que as entidades nacionais de administração do desporto, assim como as entidades de prática desportiva (art. 13, VI, e art. 16 da Lei n. 9.615/98), possam desconsiderar no plano jurídico nacional os princípios fundamentais que orientam o desporto brasileiro (art. 2o da Lei n. 9.615/98), nem, evidentemente, as determinações constitucionais que regram o desporto como bem ambiental, integrante do patrimônio cultural brasileiro (arts. 1o, III, 170, VI, 182 e 183, 215 e 216 e 225 da Carta Magna).

 

6. Vide nossos Curso de direito ambiental brasileiro, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2003 e nosso O direito de antena em face do Direito ambiental no Brasil, São Paulo: Saraiva, 2000.

 

7. O lazer pode ser compreendido não só como o tempo que sobra do horário de trabalho aproveitável para o exercício de atividade prazerosa (concepção sem dúvida alguma estruturada a partir da 1a Revolução Industrial) como simplesmente atividade de recreio, distração, entretenimento, divertimento (algumas pessoas se divertem trabalhando...). Componente do piso vital mínimo e,  conseqüentemente, estruturado como um direito constitucional (art. 6o), o lazer no plano desportivo está associado fundamentalmente ao lazer coletivo, muito bem explicado por Veríssimo, Bittar e Alvarez quando esclarecem que “outra forma de lazer coletivo, não necessariamente gratuita, está associada à aglomeração da população em programas de arquitetura destinados a essa finalidade. São os estádios, que existem desde a Antigüidade, responsáveis pelo cenário da catarse, pela minimização das tensões psicossociais. Ali são realizados os jogos, nem sempre o simples esporte preconizado pelos gregos, mas, em muitas ocasiões, a simulação dos jogos de poder, facilitando a vitória de quem interessa, solidificando o prestígio do modelo dominante... É o futebol, a paixão brasileira, presente em qualquer lugar, dos campos de várzea, onde surgem talentos até hoje desconhecidos, passando pelos modestos estádios particulares – os “campos” – de clubes, até o templo máximo do futebol, verdadeiro símbolo do lazer domingueiro: o estádio jornalista Mário Filho, ou simplesmente, Maracanã”. O direito ao lazer, também observado no art. 2o da Lei n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), garante a brasileiros e estrangeiros residentes no País o exercício de atividades prazerosas no âmbito das cidades. Ligado, também sob esse enfoque, ao meio ambiente cultural (arts. 215 e 216 da Constituição Federal), o direito ao lazer no âmbito das cidades implica o dever do Poder Público municipal de assegurar os meios necessários para que a população de determinada cidade possa tornar efetivas as atividades necessárias ao seu entretenimento.

 

Vide nosso Curso de direito ambiental brasileiro, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2003. e Comentários ao Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257/2001 – Lei do Meio Ambiente Artificial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Vide ainda Vida urbana: a evolução do cotidiano da cidade brasileira, de Veríssimo, Bittar e Alvarez, Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

 

 

Retirado de: http://www.sadireito.com.br/index.asp. Acesso em: 27 abr. 05.