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Depois de uma
polêmica rumorosa, o vice-presidente assinou a tão discutida medida provisória
para a "liberação dos transgênicos". Traduzindo estas notícias
ribombantes da imprensa diária para a linguagem legal, o que foi feito,
consistiu em: a) liberar o plantio até dezembro de 2003, das sementes de soja
que correspondam a organismos geneticamente modificados; b) dispensar o
licenciamento prévio e o estudo de impacto ambiental para tal finalidade.
Toda esta celeuma parece se resumir
num brado que diga: "os transgênicos chegaram". No entanto, isto não
é bem verdade. Os supostos monstrinhos verdes já estão por aqui há muito tempo.
O grande público é um tanto incauto nestas questões e não presta muita atenção
ao assunto, se inspirando no dito popular que "o que não mata
engorda". No entanto, o Legislador já está embebido de uma visão mais
avançada em termos consumeristas e a entrada destes "ogms" tem que se
dar através de uma prévia quarentena que é organizada com autorização da CNBio
(Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).
A recente discussão que empolgou o
país, vem girando em torno de uma outra questão. Um destes monstrinhos pulou o
muro da quarentena e foi utilizado larga e ilegalmente, na produção da soja,
principalmente, no Rio Grande do Sul. Ao invés de apurar como ocorreu esta
evasão, o governo federal, numa primeira etapa, autorizou a que se vendesse
aquela safra ilegal e, agora, como sobrou larga quantidade de sementes ilegais,
permitiu que fossem plantadas novamente.
Este organismo geneticamente
modificado que vem sendo o centro das atenções, é patenteado pela multinacional
Monsanto e atende pelo simpático nome de "Roundup". Consta que a
planta dela resultante, foi apelidada de "Maradona" pelos plantadores
gaúchos porque é baixinha, forte e tem algo a ver com droga. Na verdade, esta
semente não produz soja nem melhor e nem pior do que a planta convencional.
Então, porque tanta vontade de plantá-la e tanta resistência a tal pretensão ?
O fato é que o plantio da soja é
uma luta difícil para os produtores porque a planta trava uma batalha amarga
com as ervas daninhas. É preciso fazer uma rodada de herbicida no plantio e
outra após o brotamento. O herbicida que vem nesta segunda rodada é seletivo e
poupa a soja mas, tem de ser aplicado em tempo certo porque, depois disto, pode
afetar a qualidade do produto.
O rumoroso "transgênico"
é a planta que foi modificada geneticamente para receber o herbicida várias
vezes e sem essa limitação de tempo. Parece uma dádiva dos céus: uma semente
que surge miraculosamente nas mãos dos agricultores, permitindo-lhes tanta
magia com o herbicida. Aí é que as coisas começam a ficar mais claras: aquela
semente só funciona com um único herbicida. A semente da Monsanto só resiste ao
herbicida da Monsanto.
Aqui é que as cortinas se abrem
para nos apresentar o personagem mais importante da história: aquilo que vem
dentro do herbicida. A semente foi alterada através de uma bactéria nela
infiltrada para torná-la imune aos efeitos perigosos do veneno usado naquele
agrotóxico e que é o verdadeiro vilão da novela: o glifosato. Assim a soja
transgênica foi criada para ter uma única grande qualidade: a razão de ser da
"roundup easy" é ser tratada com o "roundup herbicide".
Então, todas estas trombetas estão
tocando em razão do glifosato que é o inimigo oculto dentro do
"roundup". A semente, intrinsecamente considerada, não produz uma
soja melhor, mas sim, um rendimento econômico melhor. E somente nos primeiros
tempos, porque a natureza é cruel e vai se adaptando ao glifosato e em poucos
anos, o dito cujo já não vai apresentar tanta eficiência. A natureza, contudo,
tem um lado bom: ela não cobra royalties pelo uso da semente, detalhe do qual
os agricultores, só agora, depois da safra, estão começando a se dar conta.
Inexistem estudos com relação aos
efeitos do glifosato na ecologia do solo e no metabolismo do ser humano.
Contudo, estamos lidando com experimentações que modificam a estrutura do DNA e
que introduzem dados novos em diversas cadeias ecológicas. Por este motivo é
que no terreno da defesa do meio ambiente, a lógica se inverte e há que se
seguir o princípio da precaução. O ônus da prova se inverte e é preciso obter
estudos que demonstrem que se pode ter segurança de que o produto não vai
causar danos ambientais.
Por estas preocupações é que o
artigo 225, IV da carta política exige o prévio estudo do impacto ambiental no
caso de atividade potencialmente perigosa ao meio ambiente. Afinal de contas,
se não há perigo, porque a mesma medida provisória determina que após dezembro
deste ano, "o estoque existente após a data estabelecida no caput deverá
ser destruído, mediante incineração, com completa limpeza dos espaços de
armazenagem". Dispensou o estudo prévio constitucionalmente exigido,
baseando-se mais na preocupação com o impacto econômico da questão.
O que levou a este caminho
equivocado foi perder de vista os referenciais do direito ambiental. O
referencial esquecido foi o ponto 17 da Declaração do Rio de Janeiro 1992, onde
se proclama o princípio da precaução. Talvez uma pequena história contada na
edição de 01 de janeiro de 2002 do jornal Washingont Post seja muito
elucidativa quanto aos perigos de não seguir este princípio. Tudo começou em
1935, quando uma fábrica se estabeleceu na pequena cidade de Anniston, no
Alabama, para produzir o PCB, então saudado por todos como um milagre da
química.
Como em relação ao glifosato de
hoje em dia, não haviam estudos ambientais que provassem quaisquer efeitos
danosos à saúde. Durante os quarenta anos seguintes, tais índicos foram
surgindo mas, a fábrica continuou a funcionar até que a agência ambiental
americana (EPA) declarasse oficialmente o produto como potencialmente
cancerígeno.
No dia 5 de janeiro de 2002, o
Washington Post publica que Monsanto não era mais proprietária da fábrica (há
cinco anos) e agora só se dedica à agricultura sendo que a responsável por tudo
era a empresa Solutia. Finalmente, em 21 de agosto de 2003, Monsanto e Solutia
entraram em entendimento com os milhares de litigantes vitimados por esta
poluição e se comprometeram a pagar 700 milhões de dólares de indenizações.
Conforme noticiou o New York Times , neste acordo, a Monsanto paga 390 milhões
de dólares, a Solutia paga 50 milhões de dólares e o restante será coberto por
seguradoras.
É uma historieta que bem ilustra as
boas razões para o princípio da precaução, especialmente, porque não foi
publicada nos jornais brasileiros. Em matéria ambiental, estamos lidando com
vidas humanas e não é nada confortável ver a medida provisória afastar a
precaução constitucionalmente exigida e permitir o plantio do roundup sem o prévio
estudo de impacto ambiental mas, só até dezembro, quando tudo deve ser
incinerado e limpo.
Afinal, de contas, se não há perigo
para que incinerar e limpar? Ou, se há perigo, porque não exigir o prévio
estudo de impacto? A verdade é que não temos certeza. Existem aqueles que
afirmam indignados que os ambientalistas estão querendo impedir o Brasil de
tomar o bonde da biotecnologia e o jogarem ao atraso na concorrência mundial.
Omitem que a União Européia, por exemplo, está tão precavida que se sujeita a
pagar 50% mais caro pela soja convencional desde que tenha garantias de que não
se usou o roundup ou coisa similar. A verdade é que existe o perigo de que
estejamos a tomar o bonde errado. E se for este o caso, os resultados podem se
funestos.
Revista Consultor Jurídico,
1º de outubro de 2003.
Retirado de http://conjur.uol.com.br/textos/