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Os Contratos Internacionais e a Internet
Leonardo Medeiros Régnier 



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1. A Internacionalidade do Direito Comercial. Já no início do século, quando nem se esperava a existência de aparelhos como televisão, fax, ou micro-computadores, e as comunicações eram precárias, um dos maiores estudiosos do Direito Comercial brasileiro, J.X. Carvalho de Mendonça, já falava (em seu Tratado de Direito Comercial Brasileiro, 7ª ed., vol. 1, pág. 253) do caráter cosmopolita do comércio, que desconhece barreiras internacionais. Mais adiante, na mesma obra, lembra e cita Vidari (Corso di Diritto Commerciale, vol 1º, 5ª ed., n. 61), que diz: "Il commercio (si può dire senza iperbole) ha per teatro di sua azione il mondo; esso non conosce diversità di razza, di politica, di religione, di tradizioni; ma, per esso, tutto il mondo è patria, perchè dovunque si sente e si obbedisce alla forza onnipotente dell’interesse" .

É, pois, essa a realidade do comércio, que, desde seu início, a partir da economia de escambo, vem sofrendo inúmeros incrementos, de modo a torná-lo cada vez mais ágil e, com isso, facilitando o intercâmbio entre os povos.

Claro que, por outro lado, não poderíamos utilizar o conceito primitivo de Direito Comercial para estabelecer a disciplina jurídica inerente a essa atividade, segundo o qual este era o "direito do comércio". Sem dúvida o alcance do Direito Comercial é muito mais amplo. No entanto não podemos, de igual, nos furtar ao fato de que a mesma evolução sofrida pelo comércio em si, reflete-se no próprio Direito Comercial, que, dentre outras atribuições, também disciplina as relações entre comerciantes.

Daí que, não por acaso, vemos como características principais do direito comercial o seu dinamismo, a informalidade de que se reveste, e a índole internacionalista que sempre o acompanhou. A título de comparação, por exemplo, com o Direito Civil, veremos que este é mais estático, mais conservador e um tanto voltado à questões nacionais, relegando a um segundo plano situações que reclamem um enfoque internacional. É, também, esta, a posição de Bulgarelli ao referir-se ao Direito Civil, lembrando que ele representa as concepções de vida de uma sociedade determinada, produto da sua formação histórica, dos seus ideais, costumes e tradições .

Essa expressão da sociedade e seus costumes, todavia, não basta a influenciar o Direito Comercial, pois o seu diferencial primário é a internacionalidade, que se dá exatamente pela necessidade dos povos em se atualizar quanto às formas negociais, sob pena de frustrarem as exigências do comércio internacional, cada vez maiores.

A adoção entre nós (diz Bulgarelli, continuando a tratar do assunto) - de contratos utilizados por empresas de outros países, como o leasing; de formas de concentração de empresas, como as holdings, são exemplos frisantes desse caráter internacionalista e inovador que inspira o Direito Comercial, refletindo-se em suas normas .

Mas a difusão de contratos e usos comerciais originários de outros países e utilizados no Brasil (e. g.) se traduz numa lista muito maior, à qual podemos anexar exemplos como as atualíssimas joint ventures, franchising, factorings e as legislações anti-truste.

Pois bem, feita essa pequena introdução ao assunto, sentimo-nos aptos a tentar, agora, compreender a importância que representa para o Direito a concretização de negócios pela rede de computadores Internet.

2. A Internet como instrumento do comércio. Mas o que é a Internet? A resposta não é simples. Conforme os próprios autores e estudiosos do ramo da ciência e engenharia da computação - mais afetos, logicamente, às questões técnicas - não se pode, com autoridade, definir exatamente o que seja a Internet.

Um desses autores, Jill H. Ellsworth, que escreveu Negócios na Internet, já no capítulo primeiro diz que parece existir mais definições a respeito do que é a Internet, do que o número dos seus usuários, e, complementa dizendo: o que é conhecido atualmente como Internet tem as suas raízes em uma rede definida pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, no início da década de 70. Essa rede (ARPAnet), estabelecida pela Advanced Research Projects Agency (ARPA), conectava vários centros militares e de pesquisa, e ela própria era um projeto de pesquisa na construção de redes confiáveis .

Poderíamos então, como fruto de uma leitura despretensiosa a respeito do assunto, admitir que a Internet não tem um dono, nem, tampouco, uma sede; e entendê-la como sendo uma rede de computadores, que liga centrais de computadores, a computadores do mundo inteiro. A partir dessa definição, aí sim, podemos afirmar que uma estrutura quase "onipresente" tal qual nos parece ser a Internet, reflete diretamente nas considerações adiante narradas.

Mas, voltando ao tema abordado no início, que trata dos incansáveis avanços tecnológicos por que a humanidade vem passando, especialmente nas últimas décadas, entendemos que contribuem para uma maior agilidade em todos os níveis das relações negociais. A facilidade de comunicação telefônica entre países, o advento do fac-simile, que se tornou instrumento indispensável em qualquer ramo de atividade, e o uso dissimulado dos computadores pessoais, inclusive notbooks, vêm revolucionando o comércio internacional.

A utilização desses equipamentos tornou-se, gradativamente, meio inconteste de agilização nas negociações voltadas aos contratos internacionais do comércio. Ato contínuo a essa evolução e, inclusive, somando-se a ela, é que veio a Internet, em cuja seara, portanto, acaba ficando prejudicado o conceito de "distância", uma vez que se tem muito menos consciência da existência de fronteiras. Como exemplo damos o fato de se poder acessar, em segundos, qualquer biblioteca européia, ou mesmo os arquivos da Suprema Corte Americana .

Mas não é, sem dúvida, essa a única aplicação prática da rede de computadores Internet; ao contrário, existe uma infinidade. No entanto, para a abordagem proposta, destacamos as seguintes: pesquisar catálogos de produtos e serviços e; comprar ou contratar esses produtos ou serviços.

Desse modo e, até mesmo pela informalidade das relações comerciais, temos que a utilização da rede Internet tornar-se-á, em prazo exíguo, um dos meios (ou instrumentos) mais comuns nas fases de negociação pré-contratual e contratual.

Diante das oportunidades colocadas à disposição (que podem variar desde a satisfazer varejistas como atacadistas) destacam-se, principalmente, as que envolvem os contratos de compra e venda, locação e prestação de serviços, nos âmbitos nacional e internacional.

Grandes empresas de locação de automóveis e imóveis; companhias aéreas; hotéis; exportadores e importadores; supermercados e, até, floristas; estão presentes no universo da Internet, oferecendo produtos e serviços e, consequentemente, firmando contratos e fazendo negócios.

Assim como as pessoas - físicas e jurídicas - hão de assimilar a mudança que ora se observa, também os profissionais da área do Direito (seja o advogado, ou mesmo o próprio legislador) haverão de atualizar-se de modo a absorver de forma consciente os reflexos da alta tecnologia no mundo jurídico.

3. O contrato de compra e venda internacional. Cumpre, de início, salientar, que, para esse estudo, não fizemos distinção entre o contrato de compra e venda civil do comercial, nem, tampouco, distinção entre pessoa física ou jurídica quando as colocamos na posição de "consumidor".

Pois bem, é o contrato de compra e venda uma modalidade contratual das mais utilizadas, tanto pela sua simplicidade (apenas aparente, em alguns casos), como pela própria busca contínua a que estamos sujeitos para suprir determinadas necessidades.

Conceitua, Fran Martins (Contratos e Obrigações Comerciais, 2ª ed., pág. 133, Ed. Forense, 1990), o contrato de compra e venda como sendo o contrato segundo o qual uma das partes se obriga a transferir o domínio de uma coisa a outra, mediante o pagamento, por esta, de certo preço em dinheiro, sendo que a pessoa que se obriga a transferir o domínio da coisa se denomina vendedor; e aquele que, para fazer jus ao domínio, assume a obrigação de pagar certo preço em dinheiro é chamado comprador.

Por sua vez, e complementando a conceituação sob o ângulo internacional, Celso Ribeiro Bastos (e Eduardo Amaral G. Kiss, Contratos Internacionais, pág. 1, Saraiva, 1990) diz que normalmente qualificamos de internacional a compra e venda que se dá entre um vendedor num país e um comprador em outro. Nessas condições, mais de uma ordem jurídica estaria apta a disciplinar o contrato.

Cumpre acrescentar, ainda, os casos em que o vendedor e o comprador estão no mesmo país, mas o bem objeto do contrato encontra-se, ou deve ser entregue, num país distinto.

Desse modo, pois, quando a compra e venda assume a feição internacional, deixa de lado sua simplicidade para tornar-se um tanto mais complexa. Não quanto à forma (oferta, aceitação, preço, garantia, responsabilidade, etc.), que, a rigor, obedece aos mesmo preceitos, mas - e, principalmente - no que se refere à solução de possíveis conflitos dela decorrentes.

Uma nuance dessa complexidade pode ser identificada ao interpretar a definição de Celso Bastos para os contratos internacionais de compra e venda - tal como colocado acima - pois, assim o fazendo, somos levados a entender que, numa primeira cognição, mais de uma ordem jurídica está apta a tratar dos interesses resultantes do contrato, ou seja, o negócio jurídico pode estar sujeito à aplicação do Direito de mais de um Estado (muito embora saiba-se que, na prática, uma infinidade de fatores vêm contribuir para a fixação do foro competente).

Por outro lado, ao analisarmos uma forma relativamente comum de contrato de compra e venda internacional, os contratos por correspondência (análogos, portanto, aos contratos celebrados através da rede Internet), encontraremos mais sinais da complexidade acima levantada. Veja-se o que dispõe o Código de Direito Internacional Privado (Código Bustamante), no seu art. 245:

"Art. 245. Os contratos por correspondência só ficarão perfeitos mediante o cumprimento das condições que para esse efeito indicar a legislação de todos os contratantes."

Igual tratamento e dificuldade podem sobrevir aos contratos de locação e prestação de serviços, quando analisados sob o ponto de vista internacional, além de contratos especiais, como o de hospedagem; de assistência médica; de abertura de crédito, só para citar alguns, dentre vários outros.

Quanto à locação de bens imóveis, ainda que o contrato deva obedecer as leis e normas do país onde o bem estiver localizado, as partes poderão estar domiciliadas em países distintos, e o local da celebração do contrato nem sempre será o do domicílio do locador, o que pode ensejar situações que mereçam alguma atenção (aliás, em se tratando da utilização da Internet para a conclusão desses contratos, muito difícil se torna precisar o local da celebração).

Não é diferente a locação de coisas móveis (carros, por exemplo). Imagine-se uma situação em que o locador encontra-se num determinado país, o locatário em outro, e o bem (carro), será utilizado num terceiro país, e, nesse terceiro país, ocorra um problema que dê causa a um procedimento judicial. Muito embora exemplos como esse não derivem, necessariamente, de comunicação através da rede Internet, sem dúvida poderão, agora, ocorrer com mais freqüência, especialmente com relação ao aluguel de automóveis, visto que as principais locadoras do mundo - quase sempre multinacionais - possuem "endereço" na Internet e disponibilizam serviços de locação através da rede.

4. O problema dos cartões de crédito nas relações internacionais via Internet. Sem dúvida essa é a questão principal que envolve os contratos realizados por computador, através da Internet.

O uso dos cartões de crédito objetiva facilitar a realização de negócios jurídicos (compra e venda de mercadorias ou prestação de serviços), simplificando as operações comerciais, e tornando desnecessária a utilização do dinheiro em espécie. Conforme encontramos em recente obra da Profª Maria Helena Diniz (Tratado Teórico e Prático dos Contratos, vol. 3, pág 83, 2ª ed., Saraiva, 1996), "A inconveniência e os riscos próprios do transporte de dinheiro de um lugar a outro deram origem ao cartão de crédito nos Estados Unidos no final da década de 40, devido à iniciativa de entidades particulares. O uso desses cartões de crédito, em larga escala, operou-se por volta de 1950...".

Sob o ângulo jurídico, o contrato de cartão de crédito, sendo uma modalidade que envolve diversas relações é considerado misto; abrangendo abertura de crédito (ou financiamento), prestação de serviço entre emissor e titular, e entre emissor e fornecedor; compra e venda ou prestação de serviço entre titular e fornecedor; e mandato.

Dessas relações, trazemos à análise as que envolvem a companhia emissora do cartão e seu titular, pois, como havemos de verificar, os contratos de compra e venda, de locação e os de prestação de serviços, levados a efeito através da utilização da rede Internet, quase sempre adotam essa forma para a satisfação do preço combinado.

Assim, podemos dizer que, o que ocorre, de fato, é que a companhia emissora do cartão de crédito funcionará verdadeiramente como um caixa, pagando os débitos feitos pelo titular do cartão junto aos estabelecimentos filiados; "mas a entidade emissora, com a nota de venda assinada pelo titular do cartão ao adquirir a mercadoria ou o serviço, buscará, no momento oportuno, o valor da dívida, que se não lhe for pago moverá ação de cobrança" .

Esse é, sem dúvida, o roteiro normal e esperado nas relações entre o emissor e o usuário do cartão de crédito. No entanto, situações de conflito que fogem à normalidade tornaram-se bastante comuns a partir da larga difusão dos cartões nos mercados nacional e internacional.

Como nas operações via Internet o consumidor, locatário, ou contratante de um serviço é obrigado a colocar o número do seu cartão de crédito no pedido, uma distorção freqüente é a utilização desse número por pessoa não autorizada, que, por motivo qualquer, venha a conhecê-lo.

Diante dessa possibilidade, real e até freqüente, restam quase prejudicados todos os esforços das companhias fornecedoras de serviços pela Internet em criar programas codificados e de segurança visando coibir a atuação dessas pessoas, conhecidas como "piratas". Pois, não obstante o avançado desenvolvimento tecnológico, que possibilita a utilização de ferramentas de alta complexidade, essa mesma tecnologia está à disposição dos dois lados, ou seja, tanto das empresas como dos "piratas".

Questão que merece, de igual, redobrada atenção, é a que diz respeito aos registros das comunicações processadas na Internet. Ou seja, a não observância de um sistema que possibilite registrar toda a comunicação mantida entre um usuário da rede e um estabelecimento comercial, p. ex., pode acarretar uma dificuldade quase insuperável no momento em que esse usuário queira utilizar-se de mecanismos de proteção ao consumidor (consagrados pelo Código de Defesa do Consumidor, no Brasil; e por legislações análogas em outros países).

E mais, se nas relações estampadas no Código de Defesa do Consumidor inverte-se o ônus da prova, atendendo à parte teoricamente mais frágil; isso não ocorre nas relações diretas entre as empresas administradoras de cartões de crédito, fornecedores de produtos ou serviços, e consumidores. Essas relações diretas sempre precedem qualquer medida na esfera judicial e, muitas vezes, conforme o seu desfecho, atuam de forma a inviabilizar ou desmotivar o consumidor a socorrer-se dos meios jurídicos à sua disposição.

Assim, já que a imensa maioria dos negócios realizados pela rede de computadores Internet é concluída com a utilização de cartões de crédito, e mais, já que grande parte desses negócios envolve pessoas físicas e jurídicas de países diferentes, os problemas - se hoje são em escala reduzida - tendem a assumir dimensões bastante significativas, comprometendo até certo ponto a aplicação das normas de proteção do consumidor e a atuação do Poder Judiciário nacional.

5. Conclusões. Já que estamos tratando de assunto que envolve a atuação de mais de um país, e, consequentemente, de legislações diferentes, parece que o caminho para uma solução, pelo menos em parte, obrigatoriamente passa pelas aspirações - já conhecidas - dos blocos econômicos de nações, tais como Mercosul, Comunidade Européia, Nafta, entre outros.

Desse modo, elencamos algumas necessidades prementes, que talvez não esgotem a resolução das questões envolvendo os contratos internacionais realizados pela Internet e a utilização de cartões de crédito para o seu pagamento, mas com certeza amenizariam as consequências danosas aos consumidores e usuários da rede nas situações de conflito que possam surgir:

a) Criação de mecanismos de proteção e registro de informações trocadas pela Internet:

Se, por um lado, a proteção das informações, como anteriormente frisado, é tarefa difícil em vista de que a tecnologia está à disposição tanto das empresas que elaboram programas (softwares), como das pessoas que buscam fraudar esses programas; por outro lado, uma forma confiável e permanente de registro (que impossibilite a manipulação apenas pelas empresas administradoras de cartões de crédito e fornecedores de produtos e/ou serviços) torna-se indispensável.

b) Harmonização da legislação de defesa do consumidor:

Tema atualmente bastante discutido nos encontros, seminários e congressos que tratam dos blocos econômicos; essa harmonização, se não pode ser completa, ou seja, envolvendo a maioria dos países do mundo, ao menos deverá ser regional, aproveitando assim a nova divisão política consagrada pelo advento desses blocos econômicos regionais, notadamente, entre nós, o Mercosul.

c) Criação de tribunais supranacionais:

A exemplo da harmonização tratada acima - e não obstante as relações comerciais lavadas a efeito pela Internet - a criação de um Tribunal Supranacional é aspiração antiga dos órgãos e pessoas ligadas ao Mercosul, visando seguir o exemplo europeu, com sua Cour de Justice des Communautés Européennes. Claro, portanto, que a efetivação desse Tribunal no âmbito do Mercosul (e tribunais análogos em outras regiões) contribuiria de forma bastante positiva para facilitar a solução de todo tipo de controvérsias, inclusive a solução de problemas ligados a contratos internacionais, sejam eles realizados pela Internet ou não.

Por fim, de tudo conclui-se que diante desses poucos argumentos (frente à informalidade de que se revestem as comunicações via Internet; às conhecidas possibilidades de fraude na utilização de micro-computadores; à situação não privilegiada do consumidor quando se relaciona com empresas de outros países; e, ademais, frente à dificuldade de se precisar qual a lei aplicável em conflitos envolvendo pessoas e produtos estabelecidos em diferentes países)nto no âmbito nacional como no internacional.

* Leonardo Medeiros Régnier é sócio da Régnier Advocacia; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; membro do Instituto Brasileiro de Direito Comercial Comparado; e do Instituto dos Advogados do Paraná.
 
 

`Retirado de http://www.regnier.adv.br/Artigos/cont_int.html