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  A QUESTÃO AMBIENTAL

José Silva Quintas

 Um pouco de História não faz mal a ninguém





 A chamada questão ambiental diz respeito aos diferentes modos como a sociedade humana através dos tempos se relaciona com o meio físico-natural. O ser humano sempre dependeu dele para garantir sua sobrevivência. Em nenhum momento de sua história, a humanidade viveu sem o auxílio do meio físico-natural. O seu uso como base material de sustentação da existência humana , bem como as alterações decorrentes deste uso, são tão antigos quanto a própria presença do homem no planeta Terra.
 Da relação - em diferentes épocas e lugares - dos seres humanos entre si e com o meio físico-natural emerge o que se denomina neste texto de meio ambiente. Diferente dos mares, dos rios, das florestas, da atmosfera, que não necessitaram da ação humana para existir, o meio ambiente precisa do trabalho dos seres humanos para ser construído e reconstruído e, portanto, para ter existência concreta.
 Por tudo isto, se afirma que meio natural e meio social são faces de uma mesma moeda e assim indissociáveis. Na medida em que o ser humano é parte integrante da natureza, e ao mesmo tempo ser social e, por consequência detentor de conhecimentos e valores socialmente produzidos ao longo do processo histórico, tem êle o poder de atuar permanentemente sobre sua base natural de sustentação (material e espiritual) alterando suas propriedades, e sobre o meio social provocando modificações em sua dinâmica.
  No processo de transformação do meio ambiente, de sua construção e reconstrução pela ação coletiva dos seres humanos - são criados e recriados modos de relacionamento da sociedade com o meio natural (homem-natureza) e no seio da própria sociedade (homem-homem). Ao se relacionar com a natureza e com outros homens, o ser humano produz cultura ou seja cria bens materiais, valores, modos de fazer, de pensar, de perceber o mundo, de interagir com a própria natureza e com os outros seres humanos, que constituem o patrimônio cultural construído pela humanidade ao longo de sua história.
 A concepção de que a questão ambiental diz respeito a relação sociedade-natureza, não é suficiente para direcionar um processo de análise e reflexão que permita a compreensão deste relacionamento em toda sua complexidade. É necessário, ainda, se assumir que a construção do conhecimento sobre esta relação se realize sob a ótica dos processos que ocorrem na sociedade. Isto significa que a chave do entendimento da problemática ambiental esta no mundo da cultura ou seja na esfera da totalidade da vida societária. Contudo, não se está afirmando que o conhecimento do meio físico natural não seja importante para uma compreensão da problemática ambiental. É mais do que importante, é fundamental para se aferir as implicações da ação do homem, no meio natural, para o próprio meio e para o meio social. Afinal, são práticas do meio social que determinam a natureza dos problemas ambientais que afligem a humanidade.
 Neste sentido, é bom se examinar alguns momentos marcantes da história da relação homem-natureza que também é a história da relação dos homens entre si.

 I -    A Invenção da agricultura e a domesticação de animais
 Quando grupos de seres humanos deixaram de ser apenas caçadores e coletores de alimentos silvestres e transformaram-se em agricultores e criadores de animais, estava-se realizando uma das maiores revoluções na história da existência humana.
 Este acontecimento que os historiadores situam seu início entre doze e dez mil anos antes de Cristo, (também denominado período neolítico), evidencia o estabelecimento de novas relações entre os seres humanos e o  meio natural e entre os próprios homens, com profundas implicações no futuro da humanidade. Os humanos já não dependiam totalmente do estoque natural de alimentos para garantir sua existência. Agora, munida de conhecimentos adquiridos em sua interação com o meio natural e com outros homens, a humanidade conseguia domesticar diversas espécies de plantas e animais e fazê-los produzir em quantidade suficiente para garantir sua subsistência. O estabelecimento de novas relações proporcionou condições aos grupos humanos para se fixarem em locais que permitiam a criação de espaços onde se vivia e produzia. Assim, o homem começava a se libertar da vida nômade e passava a construir aldeias onde morava, criava animais e lavrava os campos para garantir sua existência.
 O camponês do período neolítico que já dispunha de conhecimentos tecnológicos para polir e modelar ferramentas de pedra, fiar, tecer e fabricar utensílios de cerâmica e utilizar a queimada da vegetação como modo de preparar o solo para o plantio, descobriu a necessidade da substituição de áreas usadas, por novas áreas, até que o solo cultivado, anteriormente, recuperasse, pela recomposição da vegetação, a sua fertilidade. Aprendeu também a reservar parte da produção agrícola para semear na estação chuvosa seguinte e parte do rebanho de animais para garantir o nascimento de novas crias.
 Os registros históricos disponíveis indicam que a cultura construida pelos nossos antepassados do período neolítico se caracterizou por grandes conquistas que provocaram muitas transformações na qualidade de vida das pessoas. Superou-se o estágio da caça e coleta de alimentos silvestres, passando-se ao estágio da produção controlada de alimentos. A vida nômade-típica do coletor de alimentos pode ser substituída pela vida sedentária do agricultor e criador de animais. Além dos conhecimentos necessários para domesticação de espécies animais e vegetais para a produção de alimentos, desenvolveu-se tecnologias que permitiram a fabricação de implementos agrícolas, de objetos de uso pessoal e doméstico que tornaram as tarefas diárias menos penosas.
 O ser humano ao inventar a agricultura e a criação de animais - que segundo Toynbee   "foram com certeza as mais importantes de todas as invenções humanas até hoje" - além de criar condições para alterar, substancialmente para melhor, a qualidade de sua vida realizou também uma intervenção profunda na estrutura da natureza. Neste ato histórico, a humanidade, ela mesma integrante da natureza, a partir de seus próprios interesses e necessidades, substituiu a seleção natural das espécies, até então praticada, pela seleção humana. A partir daí, inaugura-se o processo de ameaçã à biodiversidade pela via da ação humana. Na criação de pastagens, de rebanhos e de lavouras, espécies vegetais desapareciam para assegurar safras e  crescimento dos rebanhos, em garantia à existência humana.

II  -     A Invenção das cidades e da escrita

 A invenção da agricultura e da criação de animais, através da domesticação de espécies, permitiu á humanidade dar outro passo marcante na história de sua relação com a natureza, que foi a criação da cidade.
 As primeiras cidades   surgiram na Mesopotâmia, próximas dos pântanos formados pelas águas dos rios Tigre e Eufrates, na área onde atualmente está situado o Iraque. Elas foram uma consequência da transformação da área pantanosa, rica em matéria orgânica, em terras próprias para o cultivo, mediante a aplicação de técnicas de drenagem e irrigação artificial. A drenagem dos pântanos pela sua amplitude, consumiu uma grande força de trabalho e deve ter sido realizada num tempo razoavelmente longo por comunidades que também foram edificando núcleos urbanos que se transformaram, com o passar dos anos, em cidades-estado. Esta façanha que segundo os documentos históricos foi realizada pelo povo Sumério, durou 6 seis séculos (mais ou menos de 3.l00 a 2.500 AC).
  A cultura construída pelo povo Sumério no processo de transformação do meio pantanoso em terras agricultáveis e irrigadas produziu um novo tipo de sociedade com inovações, que até então a humanidade, segundo todas as evidências históricas, desconhecia. No plano da economia os camponeses conseguiram gerar um excedente na produção de alimentos, que ultrapassava o necessário para sua subsistência durante as entressafras.
 A existência do excedente permitiu que uma pequena parte da população, fosse desviada do trabalho de produção de alimentos, deixando portanto, de lavrar e manter os campos irrigados, para se dedicar à administração dos problemas da comunidade. Segundo Toynbee  "o serviço público básico dos governantes era a administração de uma comunidade com um núcleo urbano que, em magnitude, apagava as comunidades de aldeias neolíticas anteriores e era comparável em sua complexidade. Em oposição ao cultivador do solo do período neolítico, o camponês sumério não organizava seu próprio trabalho. A manutenção do sistema de irrigação era a condição necessária à sobrevivência de toda a comunidade; a córveia    pública de manter em ordem os diques e canais fazia parte do dever do camponês, tanto quanto o cultivo de seus próprios campos; e todas as suas operações tinham que ser cumpridas sob a direção de autoridades públicas, dado que a distribuição do fornecimento vital de água para irrigação, em determinadas quantidades e estações, exigia um comando único, investido de poder irrefutável" .
  Ao contrário do fazendeiro meolítico, o camponês sumério em nome do bem comum, perdia a sua autonomia e entregava a autoridade pública o direito de organizar seu trabalho e de se apropriar de parte de sua produção para sustentar a minoria que morava na cidade e detinha o poder de governar os demais. A qualidade de vida do camponês, certamente não melhorou, na medida em que o excedente produzido pela conquista da região pantanosa não se reverteu em aumento de sua renda. A desigualdade social também se fez presente na sociedade suméria. Graças ao crescimento do excedente os dirigentes das cidades-estado passaram a dispor de meios abundantes e luxuosos para viver.
 A criação do poder público em cada cidade-estado sustentado pelo excedente produzido pelos trabalhos dos camponeses - com a tarefa de planejar e dirigir a manutenção do sistema de irrigação e distribuição da água, a realização de obras públicas, a defesa e outras ações necessárias, fez surgir uma intensa atividade política. As decisões tomadas sobre as orientações a serem imprimidas pelo poder estabelecido,
certamente, se dava num quadro de conflitos de interesses no seio da sociedade. A decisão sobre o aumento ou diminuição da quantidade de água a ser distribuída, a ampliação da área a ser drenada, a construção de um templo, palácio, fortificação ou crescimento de uma cidade afetava todos os moradores, porém de forma diferente. Para uns significava a melhoria das condições materiais de vida, enquanto para outros (os camponeses) o aumento  da carga de trabalho.
 Entretanto, o grande problema da civilização suméria foi sua organização em cidades-estado que controlava cada uma das áreas irrigadas e alagadas. Durante os primeiros quinhentos ou seiscentos anos tudo indica que houve coexistência pacífica (a documentação histórica não registra  ocorrência de guerras) entre as várias cidades-estado. Os atritos e as guerras entre as cidades-estado ocorreram quando os limites da área irrigada de cada uma, se aproximou a tal ponto que o controle da distribuição da água feito pelos governantes de uma cidade-estado podia prejudicar a produção de outra cujos campos se situavam abaixo da primeira. A solução política que tornou possível organizar a produção ao nível de cada cidade-estado se impunha ao nível das cidades-estado como um todo. A gestão do meio ambiente dependia agora da existência de uma autoridade pública, aceita, por todas as cidades, com poder de controlar a rede de cursos d'água naturais e artificiais, que, por estarem  interligadas eram indivisíveis, e mediar os conflitos surgidos.
 Todavia, a cultura suméria que foi capaz de transformar a bacia dos rios Tigre e Eufrates, desenvolver tecnologias, criar um excedente na produção de alimentos, desenvolver uma arquitetura monumental, e uma nova divisão social do trabalho, inventar uma escrita, descobrir mecanismos políticos de gestão ambiental em comunidade menores não conseguiu a necessária unificação política que permitisse a gestão ambiental ao nível de toda a bacia. Em consequência disso, teve início conflitos armados entre cidades-estado pelo controle do fluxo da água e dos campos irrigados. Os conflitos criaram condições para que outros povos invadissem e conquistassem a região.

III - A Revolução Industrial

 A expansão industrial, instaurada na Europa no meado do século XVIII, que culminou na revolução industrial, determinou alterações profundas nas relações homem-natureza e homem-homem.     Para Costa   "o modo industrial de produzir, desenvolvido na Europa a partir do século XVIII, no quadro de expansão do capitalismo, introduziu um elemento novo, revolucionário mesmo, no processo em curso de desnaturalização do espaço terrestre. Sendo uma potenciação concentrada de capitais, força de trabalho, técnicas, máquinas e matérias-primas, a indústria, independentemente da dimensão ou sofisticação de suas plantas, instala-se nos lugares sob a forma de impactos. Desde os primórdios de seu desenvolvimento, a sua capacidade de romper bruscamente com os cursos tradicionais da vida cotidiana dos lugares, confere-lhe o status de verdadeira usina de mudanças: destrói ou redefine o meio rural, produz ou amplia aglomerações urbanas de todo tipo e, no que nos concerne, redefine completamente as formas de apropriação dos recursos naturais e os modos de relacionamento com o ambiente natural original. Portanto, não é totalmente correto associar-se os impactos ambientais exclusivamente com a grande indústria, dominante a partir das primeiras décadas deste século. Já no início do século XVIII, o seu modo de operar se fazia sentir alterando, principalmente, dois elementos fundamentais do relacionamento entre atividades produtivas e meio ambiente: escala e intensidade dos impactos".

 Segundo Hobsbawn foi a implantação  de um "sistema fabril mecanizado que por sua vez produz em quantidades tão grandes e a um custo tão rapidamente decrescente a ponto de não mais depender da demanda existente, mas cria seu próprio mercado",   que possibilitou a mudança de qualidade da expansão industrial, até então experimentada, que transformou um processo evolutivo em revolucionário.
 A Revolução Industrial, segundo o mesmo autor, "foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades  , no seu entender "pela primeira vez na história da humanidade, foram retiradas os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços".
 A demanda crescente de matérias primas e de mão de obra para a indústria bem como de alimentos para a população que se urbanizava era incompatível com a existência de um sistema agrícola obsoleto e ineficiente frente a nova realidade que se estabelecia.
 Na opinião de Hobsbawn  , "alterar esta situação implicava em três tipos de mudanças. Em primeiro lugar a terra tinha que ser transformada em mercadoria possuída por proprietários  privados  e  livremente  negociada  por  êles.  Em segundo lugar, ela tinha que passar a ser propriedade de uma classe de homens desejosos de desenvolver seus recursos produtivos para o mercado.....Em terceiro lugar, a grande massa da população rural tinha que ser transformada de alguma forma, pelo menos em parte, em trabalhadores assalariados, com liberdade de movimento, para o crescente setor não agrícola da economia".
 A efetivação destas mudanças ao longo do século XIX, que assumiria formas variadas em função das realidades de cada país ou região, não transformou cada camponês em proprietário (até porque a maioria não dispunha de dinheiro para adquirir terras) nem todos os novos e antigos proprietários e empresários rurais (houve muitos que especularam com as terras)  mas viabilizou o crescimento da economia agrícola.
 Sendo o objetivo das mudanças efetuadas no campo um imperativo da revolução industrial, portanto, do interesse daqueles que se beneficiavam dela (os industriais, financistas, negociantes), a maioria do campesinato coube o ônus de perder parte da terra que cultivava anteriormente ou de ser transformado em trabalhodor assalariado ou, ainda, em excedente populacional em decorrência do novo modo de exploração da terra que se implantava. E àqueles que foram postos na categoria de excendente populacional, restava, obrigatoriamente, a ruptura dos laços que os ligavam à terra desde os tempos memoriais, e a
migração para os centros urbanos para constituirem o reservatório de mão de obra. Para aqueles que permaneceram no campo restou a saudade do sistema feudal que se extinguia. Este sistema "embora ineficaz e opressor, era também um sistema de considerável certeza social e, num nível bastante miserável, de alguma segurança econômica, para não mencionarmos que era consagrado pelo costume e tradição"...."A revolução legal, do ponto de vista do camponês não lhe deu nada exceto alguns direitos legais, mas lhe tomou bastante. Por exemplo na Prússia, a emancipação deu-lhes dois terços ou a metade da terra que êle já cultivava e a libertação do trabalho forçado e de outras obrigações, mas formalmente lhe tomou: sua possibilidade de reivindicar a assistência do senhor feudal em tempos de colheita ruim ou de praga de gado; seu direito de comprar ou retirar combustível barato das florestas do senhor; seu direito à assistência do senhor para reparos ou reconstrução de sua casa; seu direito, no caso de extrema pobreza, de pedir ajuda ao senhor para pagar os impostos; e seu direito de dar pastagem aos animais nos campos do senhor. Para o camponês pobre parecia uma troca nitidamente desfavorável... O mercado de terras livres. Libertação do camponês dos laços e obrigações não econômicas (servidão pagamento aos proprietários, trabalhos forçados, escravidão, etc). Resultado da transformação da terra em mercadoria pela abolição de dispositivos legais que impediam sua venda a quem pudesse e quisesse comprar significava que êle provavelmente teria que vender sua terra; e a criação de uma classe rural de empresários, também significava que os mais emperdemidos e duros o explorariam em lugar dos antigos senhores ou junto com êles.... Nada mais natural que o camponês pobre ou toda população rural resistisse da melhor maneira que pudesse".
 Por outro lado, no período de 1840/80 houve um vertiginoso  crescimento  de  terras  incorporadas à produção agrícola. Neste período a quantidade de terras utilizadas na agricultura cresceu de 500 milhões de acres ( 202 milhões de hectares) para 750 milhões de acres (303 milhões de hectares).
Ocorrendo também neste período um grande aumento na produção e na produtividade agrícola.
 Por volta de 1848,   a Inglaterra, berço da revolução industrial, tinha uma economia que embora modesta para os padrões atuais, era possante para época. Utilizava a energia de l milhão de cavalos em suas máquinas á vapor, produzindo cerca de l bilhão e oitocentos milhões de metros de tecidos, em l7 milhões de fusos mecânicos, extraia cerca de 50 milhões de toneladas de carvão mineral, importava e exportava l70 milhões de libras. Seu comércio (inglês) era duas vezes maior do que o francês, o seu mais próximo competidor. Seu consumo de algodão era duas vezes superior ao dos Estados Unidos e quatro vezes maior do que o da França. Sua indústria siderúrgica produzia na época, mais da metade de todos os lingotes de ferro do mundo economicamente desenvolvido. Os investimentos britânicos na faixa de 200 a 300 milhões de libras - um quarto aplicado nos Estados Unidos e quase um quinto na América Latina propiciavam a vinda de encomendas e dividendos de todas as partes do mundo. A Inglaterra, era neste momento a "oficina do mundo". Sua marinha de guerra garantia o comércio britânico e o retorno das aplicações financeiras realizadas em todos os continentes.
 Nas palavras de Hobsbwan "e tanto a Grã-Bretanha quanto o mundo sabiam que a revolução industrial lançada nestas ilhas não só pelos comerciantes e empresários como através deles, cuja única lei era comprar no mercado mais barato e vender sem restrição no mais caro, estava transformando o mundo. Nada poderia detê-la. Os deuses e os reis eram impotentes diante dos homens de negócios e das máquinas a vapor do presente" . Na verdade, a sociedade industrial que estava se criando, criava também os novos deuses e reis diante dos quais os velhos "deuses e reis eram impotentes".
 É necessário agora observar e analisar como a revolução industrial repercutiu na qualidade de vida da maioria das pessoas que foram atingidas direta ou indiretamente por ela. A pergunta que ocorre de imediato é se o aumento gigantesco da produção industrial e agrícola para os padrões da época, a grande expansão das comunicações marítimas e terrestres com a diminuição do tempo de deslocamento pelo advento das ferrovias e do navio movido à vapor e a criação de um mercado mundial, a extinção da servidão feudal nos paises europeus, a abolição da escravatura (em l870 só existia no Brasil, e em Cuba) contribuiram para melhorar substancialmente a qualidade de vida da maioria da população. Os historiadores afirmam que não, demonstrando inclusive que na maioria dos casos piorou. São bastante elucidativas as palavras de Alexis de Toqueville sobre a Manchester de 1835, cidade da Inglaterra símbolo da Revolução Industrial.
 "Desta vala imunda a maior corrente da indústria humana flui para fertilizar o mundo todo. Deste esgoto imundo jorra ouro puro. Aqui a humanidade atinge o seu mais completo desenvolvimento e a sua maior brutalidade, aqui a civilização faz milagres e o homem civilizado torna-se selvagem"  . Se nos lembrarmos que no "esgoto imundo" que "jorra ouro puro" trabalhavam e moravam homens, mulheres e crianças que mal ganhavam para se manter em pé, temos o exemplo de um tipo de "meio ambiente que resultou naquele momento da" Revolução Industrial. Descrevendo a vida do proletariado nos centros urbanos, Hobsbawn   observa que: "havia muito mais pobres que, diante da catástrofe social que não conseguiram compreender, empobrecidos, explorados, jogados em cortiços, onde se misturavam o frio e a imundície ou nos extensos complexos de aldeias industriais de pequena escala, mergulhavam na total desmoralização. Destituídos das tradicionais instituições e padrões de comportamento, como poderiam muitos deles deixar de cair no abismo dos recursos de sobrevivência, em que as famílias penhoravam a cada semana seus cobertores até o dia do pagamento, e em que o álcool era a "maneira mais rápida para se sair de Manchester" (ou de Lille  ou  de  Borinage)  .  O  alcoolismo em massa, companheiro quase invariável de uma industrialização e de uma urbanização bruscos e incontroláveis, "disseminou uma peste de embriaguez em toda Europa". Ainda, segundo o autor, "tudo concorria para aumentar esta desmoralização. As cidades e as áreas industriais cresciam rapidamente, sem planejamento ou supervisão, e os serviços elementares da vida da cidade fracassavam na tentativa de manter o mesmo passo: a limpeza das ruas, o fornecimento de água, os serviços sanitários, para não mencionarmos as condições habitacionais da classe trabalhadora". A consequência mais patente desta deterioração urbana foi o reaparecimento das grandes epidemias de doenças contagiosas (principalmente transmitidas pela água) notadamente a cólera que reconquistou a Europa em 1831 e varreu o continente de Marselha   a São Petersburgo   "em 1832 e novamente mais tarde". O quadro de degradação ambiental se completava com o extermínio de crianças, prostituição, suicídio e aumento da criminalidade nos centros urbanos  . Foi neste período também que se consolidou nas grandes cidades européias a segregação espacial: "zonas ricas localizadas a oeste e zonas pobres localizadas a leste"  . (O vento soprava de oeste para leste).

 Apesar da penúria em que vivia a classe trabalhadora, as fortunas se multiplicavam. Engels  , comentando sobre  a situaçãodos  trabalhadores,  num dos  seus escritos narra o seguinte episódio: "um dia andei por Manchester com um destes cavalheiros da classe média. Falei-lhe das desgraças das favelas insalubres e chamei-lhe a atenção para a repulsiva condição daquela parte da cidade em que moravam os trabalhadores fabris. Declarei nunca ter visto uma cidade tão mal construída em minha vida. Êle ouviu-me pacientemente e na esquina da rua onde nos separamos comentou: "E ainda assim ganham-se fortunas aqui. Bom dia Senhor! Era uma época de extremos; de um lado a miséria, a indigência da classe trabalhadora (como vimos o trabalhador chegava a empenhar seu cobertor até o dia de receber o salário) de outro a opulência e ostentação dos ricos que chegavam a "publicar nos jornais os cardápios dos jantares e o nome dos convivas"  .
 A Manchester "das desgraças das favelas insalubres", referida por Toqueville como "vala imunda" se multiplicou na Europa e chegou a outros continentes. O "esgoto imundo" estava justificado desde que continuasse a "jorrar ouro puro".
 Não importava que os camponeses fossem transformados em excedentes populacionais, expropriados dos seus conhecimentos e valores construidos cotidianamente na sua relação com o mundo rural, que populações autóctones da Ásia, África e América fossem expulsas e exterminadas pelos "exércitos civilizados", que as florestas fossem destruidas, que espécies vegetais e animais fossem extintas, que o ar das cidades industriais se tornasse irrespirável, desde que os lucros não cessassem de crescer.
  Era a concepção européia de progresso e de civilização, com suas estradas de ferro, seus navios movidos à vapor, seus canhões, seus fuzis, seus exércitos e seus homens de negócios cujo o tema era "cada um por si e Deus por todos"   sendo imposta aos outros povos. A qualificação de selvagem, primitiva era (ainda é) atribuída aos povos que tinham organização social, conhecimentos e valores diferentes dos praticados na Europa. Ser negro, significava não só ser diferente como ser inferior ao homem branco (exceto proletário, que era considerado  também selvagem). A diferença servia para criar hierarquia. Hierarquia  construída pelo critério de maior disjunção com meio natural. Na concepção vigente na época, quanto mas selvagem mais distante do modo de ser dominante ou seja mais em conjunção com a natureza, e com os seus semelhantes, reciprocamente, quanto mais civilizado mais dominador da natureza e dos outros homens. O pensamento hegemônico na nova sociedade tinha na superioridade  do homem sobre a natureza uma de suas premissas fundamentais.
 Desde o início deste trabalho procuramos demonstrar  que discutir a questão ambiental significa apreender com clareza como se dá a relação sociedade natureza relação esta que se explicita na relação homem-homem e homem-natureza, numa sociedade dividida em classes sociais.  Homem aqui entendido não apenas como ser biológico mas homem enquanto ser histórico. E nesta medida, há os homens que podem mais do que outros. Então quando ouvimos a afirmação o "homem está destruindo a natureza", temos que perguntar de início que homem: aquêles que podem mais ou aquêles que podem menos? Entretanto, identificar "quem" está destruindo pode não ser tão simples como parece a primeira vista.
 É sabido que na sociedade que vivemos aqueles que podem mais são os que possuem mais  assim como os que podem menos são os que possuem menos.
 Será de fato o garimpeiro, que usa o mercúrio no processo de obtenção do ouro, o principal  responsável pela contaminação de rios, ou vítima de uma engrenagem maior, da qual êle é apenas a parte visível? Será o trabalhador que fez a derrubada de árvores, utilizando seus músculos, responsável pela redução da cobertura primária da Mata Atlântica a 4% da existente no século XVI, quando aqui chegaram os europeus? Evidentemente que atrás da degradação ambiental decorrente do garimpo estão os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais que negociam com o ouro, a indústria de computadores, a indústria de jóias, o sistema financeiro, etc. Atrás da devastação, das florestas está o madereiro (que beneficia a madeira), a indústria de papel e celulose, as siderúrgicas, os exportadores de madeira, a indústria de móveis, etc.
 E atrás de tudo está todo um sistema econômico, sobre o controle de poucos, (os sucessores daqueles homens frente aos quais os "deuses e reis eram impotentes") que tem o poder de determinar o uso da natureza incluindo-se aí, a maioria dos homens (aqueles que estão no bloco dos que possuem menos e por isso podem menos). Portanto, não é possível se atribuir a responsabilidade a espécie humana pela destruição das demais espécies, seus sócios no ato de viver
 

Retirado de www.ibama.gov.br/online/artigos/artigo17