® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
CONCRETIZAÇÃO DO DANO AMBIENTAL
Algumas objeções à teoria do "risco integral"
Andreas Joachim Krell
doutor em Direito pela Universidade Livre de Berlim (PhD) e
professor visitante de Direito Ambiental das
Universidades Federais de Alagoas e Pernambuco (pós-graduação)
1. Introdução
-
Nos últimos anos, tornou-se mais intensa, na doutrina jurídica
brasileira e estrangeira, a abordagem de problemas ligados a danos causados
ao meio ambiente e a valores artísticos, estéticos, históricos,
turísticos e paisagísticos. Temas muito discutidos
no âmbito da responsabilidade objetiva por dano ambiental são
a dificuldade na determinação da participação
concreta de cada um de múltiplos poluidores (por ex.: em pólos
industriais); a inversão do ônus de prova para o lado do potencial
poluidor; a valoração do dano ecológico, isto é,
a definição do valor monetário a ser pago pelo poluidor
por danos causados ao ambiente e à paisagem.
-
Esses assuntos, no entanto, não são objeto desse trabalho,
que de concentra na discussão da questão se uma atividade
pode ser considerada como "dano ambiental" embora esteja sendo desenvolvida
dentro dos limites estabelecidos por lei ou autorização válida
expedida pelo Poder Público. Como vamos ver adiante, a resposta
não pode ser dada de maneira uniforme e unívoca para todos
os casos de poluição e degradação ao meio ambiente
e o desrespeito a valores estéticos, históricos, paisagísticos
e turísticos.
-
O que nos parece ser o mais importante é voltar a atenção
ao próprio conceito do dano utilizado na legislação
material e processual sobre o meio ambiente, dando a ele uma interpretação
coerente, virado sempre às circunstâncias do caso concreto.
-
Juntando alguns argumentos contra a teoria do "risco integral", não
queremos, de maneira nenhuma, propagar um afrouxamento ou a diluição
do rigor da responsabilidade objetiva por dano ambiental ou contrariar
os sucessos do esforço desenvolvido durante os últimos anos
por parte dos integrantes mais expressivos da doutrina do Direito Ambiental
Brasileiro.
-
É a intenção desse estudo questionar, de maneira construtiva,
alguns conceitos utilizados atualmente na doutrina nacional em relação
ao "dano ambiental", e sugerir uma linha diferente de argumentação
jurídica para podermos chegar, futuramente, num caminho mais seguro,
à responsabilização administrativa e judicial dos
poluidores e degradadores do meio ambiente.
2. Dano ao bem ambiental difuso e individual
-
O diploma legal básico para o tratamento jurídico do dano
ambiental no Brasil é a Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente, n.º 6.938/81, cujo art. 14, § 1º, reza que "o
poluidor é obrigado, independentemente de existência de culpa,
a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros,
afetados por sua atividade".
-
No sistema jurídico nacional podemos identificar uma "bifurcação"
do dano ambiental: num lado, o dano público contra o meio
ambiente, que é "bem de uso comum do povo" (Art. 225 CF),
de natureza difusa, atingindo um número indefinido de pessoas,
sempre devendo ser cobrado por Ação Civil Pública
ou Ação Popular e sendo a indenização destinada
a um fundo; no outro lado, o dano ambiental privado, que dá
ensejo à indenização dirigida à recomposição
do patrimônio individual das vítimas. (Cf. Edis Milaré,
A
Ação Civil Pública em defesa do ambiente,
in:
o mesmo - Coord., Ação Civil Pública - 10 anos,
1995, Edit. RT, p. 207.)
-
Contudo, o dano ambiental, no Brasil de hoje, raramente é alegado
perante o Judiciário como prejuízo próprio, meramente
individual de determinado cidadão, ressarcível somente com
os meios do processo civil clássico. (Antônio Herman Benjamin,
O
princípio poluidor-pagador, in: o mesmo - Coord.,
Dano
Ambiental - prevenção, reparação e repressão,
1993, Edit. RT, p. 233.)
-
Nesse caso, o objeto lesado é a face da propriedade privada ou saúde
individual do bem comum meio ambiente. Essas ações
individuais podem ser ajuizadas de maneira independente, não havendo
efeito de coisa julgada entre a ação individual e a coletiva.
Está sendo discutindo a possibilidade da propositura de Ação
Civil Pública em defesa de vários indivíduos prejudicados
por uma poluição ambiental por representar um "interesse
individual homogêneo", sendo o dano deles de origem comum (Cf. Francisco
José Marques Sampaio, Responsabilidade Civil e Reparação
de Danos ao Meio Ambiente, Edit. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1998, p.
61ss.; C. A. Fiorillo/ M. A. Rodrigues/ R. M. Andrade Nery, Direito
Processual Ambiental Brasileiro, 1996, Edit. Del Rey, p. 170). Nessas
ações privadas, a responsabilidade do poluidor é objetiva
também.
-
Por exemplo, a propriedade rural do fazendeiro F foi invadida por
seu inimigo P que tocou fogo numa área remanescente de Mata
Atlântica e despejou veneno no açude matando a fauna aquática.
F
pode abrir uma ação civil comum contra P, exigindo
indenização pelo dano material que ele sofreu (valor comercial
da madeira e dos peixes, mais danos morais). Além disso,
é possível a propositura de uma Ação Civil
Pública para ressarcir o dano ambiental causado à coletividade
pelo comportamento de P (queimada da floresta, deterioração
do recurso hídrico).
-
No caso em que o agente poluidor fosse o próprio F, para
poder construir no seu terreno, por capricho ou negligência, a Ação
Civil Pública se dirigiria contra ele mesmo, em virtude que F
não é dono do valor ambiental dos ecossistemas existentes
no seu terreno, sendo este bem ambiental difuso, pertencendo à
toda coletividade.
-
Outros casos típicos de danos individuais por poluição
são a sujeira na fachadas de casas particulares por emanação
de fumaça de fábrica, problemas de saúde pessoal por
emissão de gases e partículas em suspensão (ex.: bronquite
) ou ruídos, a infertilidade do solo de um terreno privado por poluição
do lençol freático, doença e morte de gado por envenenamento
da pastagem por resíduos tóxicos, etc.
-
Em alguns países europeus, como na Alemanha, onde se construiu,
nas últimas décadas, um sistema administrativo relativamente
eficiente de proteção aos recursos naturais, a prevenção
ou indenização de um dano ambiental, no âmbito do processo
civil, somente pode ser reivindicado como dano individual, que atinge
o direito subjetivo de uma pessoa física ou jurídica. No
sistema germânico, o meio ambiente por si - como bem de interesse
difuso
- (ainda) não é objeto de proteção jurídica-civil.
-
Lá, a água, o ar e o solo somente constituem "o caminho de
passagem para a realização de um dano reparável que
deve se produzir na vida, na integridade corporal, na saúde humana
ou na conservação de uma coisa" (Detlev von Bretenstein,
apud
Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, 6. Ed.,
1996, Edit. Malheiros, São Paulo, p. 245). O interesse da coletividade
de dispor de um meio ambiente ecologicamente equilibrado está sendo
protegido apenas por parte dos órgãos administrativos e,
de menor escala, pelo direito penal.
3. Fundamentação teórica da responsabilidade
objetiva por dano ambiental;
teorias do "risco integral" e do "risco-proveito"
-
Em geral, o sistema brasileiro de responsabilidade civil é de cunho
subjetivo,
tendo por seu fundamento a culpa do causador de um dano (art. 159
CC). No entanto, a legislação específica, em algumas
áreas, retirou a necessidade da comprovação da culpa
(dolo, negligência, imprudência ou imperícia) do agente
de um ato lesivo. Exemplos são as áreas do transportes aéreo
e ferroviário, acidentes de trabalho e, ultimamente, danos causados
pelo produtor ou fornecedor de bens de consumo e a empresa prestadora de
serviços (Código de Defesa do Consumidor).
-
No decorrer da história, desde a revolução industrial
no século passado, o aumento da complexidade das atividades empresariais,
a industrialização dos bens de consumo de massa e a mecanização
dos processos produtivos levaram à impossibilidade da definição
e comprovação exata do grau de culpa do agente causador de
danos. Em inúmeros casos, a desigualdade econômica, a capacidade
organizacional das empresas e as cautelas dos juizes na aferição
dos meios de prova trazidos ao processo dificilmente lograram convencer
da existência de culpa. (Cf. Francisco José Marques Sampaio,
ob. Cit., p. 47ss.; Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade
Civil, 5. Ed., 1994, Edit. Forense, p. 262)
-
Com o advento da Lei n.º 6.938 sobre a Política Nacional do
Meio Ambiente, em 1981, a responsabilidade civil para a reparação
do dano ambiental passou a ser objetiva também (art. 14,
§ 1º), não sendo mais necessário comprovar a culpa
do poluidor do meio ambiente. Uma das razões da introdução
da responsabilidade objetiva nessa área foi também o fato
de que a maioria dos danos ambientais graves era e está sendo causada
por grandes corporações econômicas (indústrias,
construtoras) ou pelo próprio Estado (empresas estatais de petróleo,
geração de energia elétrica, prefeituras), o que torna
quase impossível a comprovação de culpa concreta desses
agentes causadores de degradação ambiental.
-
Indagando sobre a justificativa teórica da responsabilidade civil
objetiva por danos ambientais, no entanto, podemos constatar uma certa
confusão na literatura jurídica nacional. A maioria dos autores
adere à teoria do risco integral, que não permite
nenhum tipo excludente da responsabilidade, como vamos ver adiante. Esses
autores, de regra, acrescentam que a responsabilidade objetiva por dano
ambiental decorre também da teoria do risco-proveito ou "risco
do usuário": quem obtém lucros com determinada atividade
deve arcar também com os prejuízos causados à natureza,
evitando assim "a privatização dos lucros e socialização
dos prejuízos" (ubi emolumentum, ibi onus).
-
A teoria do risco-proveito nos parece apontar ao principal motivo
da introdução da responsabilidade objetiva no direito brasileiro.
Ela é conseqüência de um dos princípios básicos
da Proteção do Meio Ambiente em nível internacional,
o princípio do poluidor-pagador, consagrado ultimamente nas
Declarações Oficiais da Conferência da ONU sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (RIO-92 - UNCED). Uma conseqüência
importante dessa linha de fundamentação da responsabilidade
objetiva pelo dano ambiental é a possibilidade de admitir fatores
capazes de excluir ou diminuir a responsabilidade como: o caso fortuito
e a força maior, o fato criado pela própria vítima
(exclusivo ou concorrente), a intervenção de terceiros e,
em determinadas hipóteses, a licitude da atividade poluidora.
-
Não são poucos os autores que, em primeiro momento, se declaram
adeptos da teoria do risco integral, que não permite excludentes
à responsabilidade, e depois, para fundamentar a sua posição,
passam a recorrer a argumentos muito mais ligados à teoria do risco-proveito
(por ex.: Edis Milaré, ob. Cit., p. 210; Carlos Roberto Gonçalves,
Responsabilidade
Civil, 6. Ed., 1995, Edit. Saraiva, p. 78; Jorge ª Nunes Athias,
Responsabilidade Civil e Meio Ambiente - breve panorama do direito brasileiro,
in: ª Herman Benjamin - Coord. , ob. Cit., p. 244).
-
Vale ressaltar que, no âmbito da Responsabilidade do Estado, a doutrina
clássica e a jurisprudência brasileira também nunca
adotaram a versão "pura" da teoria do risco integral (veja
Fernando Facury Scaff, Responsabilidade do Estado Intervencionista,
1990, Edit. Saraiva, p. 68), sempre admitindo fatores excludentes como
a culpa da vítima e a força maior. Uma parte defende a teoria
do "risco administrativo", que permite vários excludentes. (Cf.
Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 14. Ed.,
1990, Edit. RT, p. 551.)
-
Os defensores do risco integral no contexto da responsabilidade
objetiva do Estado (Art. 37, § 6º, CF) destacam que ela serve
como meio de repartir por todos os membros da coletividade o ônus
do danos atribuídos ao Estado (Caio M. da Silva Pereira, ob. Cit.,
p. 270, 274). O mesmo já não vale indiscriminadamente para
todos os casos da ocorrência de um dano ambiental. O sujeito que
deve indenizar aqui na maioria dos casos não é o erário
do Estado e, em conseqüência, a coletividade, mas o poluidor
particular, que muitas vezes até age com uma autorização
válida concedida pelo próprio Estado.
-
Importante frisar, no entanto, que nessa área há uma importante
distinção entre a responsabilidade do Estado por ato administrativo
legítimo
e a por ato ilegítimo, seguindo esta linhas de fundamentação
bem diferentes daquela.
-
Na área do Direito Privado, de maneira geral, a teoria do risco-integral
no Brasil igualmente "nunca fez escola" (Caio M. da Silva Pereira, ob.
Cit., p. 281), salvo nas áreas especialmente regulamentadas pelo
legislador. O francês Ripert observou bem que, "quando a teoria do
risco entende que a responsabilidade civil deriva da lei da causalidade,
destrói a idéia moral". (Apud Caio M. da S. Pereira,
ob. Cit., p. 273.) A teoria do risco (integral) foi desenvolvida na França,
acima de tudo para resolver o problema da indenização de
acidentes
de trabalho, em virtude da desigualdade econômica, a força
de pressão do empregador, a menor disponibilidade de provas por
parte do empregado que quase sempre levavam à improcedência
da ação de indenização.
-
Podemos constatar que a maior parte da doutrina do Direito Ambiental Brasileiro,
hoje, adere à "linha dura" da teoria do risco-integral, que não
permite nenhum tipo de excludente nos casos de danos ambientais. (Por ex.:
Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação Civil Pública,
4. Ed., 1996, Edit. RT, p. 206; Nélson Nery Júnior, Responsabilidade
civil por dano ecológico e a ação civil pública,
in
Ver. Justitia, n° 131, p. 175s.)
4. A responsabilidade por atividade ou obra lícita
(legítima),
autorizada pelo Poder Público; o exemplo do Direito Civil
Alemão
-
Desde o início queremos deixar claro que recusamos a afirmação
apodíctica de alguns defensores da teoria do risco integral
de que a obrigação da indenização de qualquer
dano ambiental não possa ser condicionada à licitude
do ato lesivo. Pelo contrário, defendemos que a legalidade do ato
pode, em determinados casos, até excluir o próprio conceito
de dano, que parece ser um conjunto de interferências fáticas
sobre a natureza e jurídicas sobre a situação legal,
o que vamos tentar mostrar em seguida.
-
Como foi acima exposto, a conseqüência da teoria do risco
integral é o dever de indenizar mesmo que a conduta do agente
causador do dano ao meio ambiente seja lícita, autorizada pelo poder
competente e obedecendo os padrões técnicos para o exercício
de sua atividade.
-
Alguns autores dessa corrente alegam que existe, tanto no direito público
quanto no direito privado, um princípio pelo qual a licitude da
atividade não exclui o dever de indenizar.
-
Fábio Lucarelli defende a desconsideração da licitude
do ato poluidor, alegando que o Estado não teria o poder de admitir
agressão à saúde pública e que ele, não
raras vezes, especifica normas e padrões a serem respeitados agindo
em causa própria, eis que também exerce atividades danosas
ao ambiente. (Fábio Dutra Lucarelli, Responsabilidade Civil por
dano ecológico, RT, n.º 700, 1994, p. 12.)
-
Ora, essa argumentação seria válida para a responsabilização
somente do Estado pela emissão de licenças e autorizações
descabidas, mas não para a condenação de particulares
que operam fontes de poluição dentro dos limites estabelecidos.
Resta deixar claro que muitos danos ambientais não surtem conseqüências
imediatas na saúde pública da região, como nos casos
de derrubada de árvores, poluição de recursos hídricos
distantes de assentamentos humanos, morte de animais silvestres, deformação
da paisagem litorânea, etc.
-
No sistema jurídico da Alemanha existem maneiras diversas como atos
autorizadores de direito público (öffentlich-rechtliche
Gestattungsakte) são capazes de influenciar pretensões
individuais de direito privado (privatrechtliche Ansprüche)
na área de incomodações e danos ao meio ambiente.
A regra que prevalece lá é que particulares não
podem exigir o embargo de obras ou atividades legalmente licenciadas,
mas podem, em determinados casos, pleitear o pagamento de indenização
por danos sofridos em seus direitos individuais. Em algumas hipóteses,
a autorização pública inviabiliza até esse
tipo de pretensão particular. (Cf. Rüdiger Breuer, Umweltschutzrecht,
in:
I. von Münch/ E. Schmidt-Aßmann - Coord., BesonderesVerwaltungsrecht,
9. Auflage, 1992, Verlag Walter de Gruyter, Berlin, p. 445.)
-
A Lei Federal de Responsabilidade Civil Ambiental (Umwelthaftungsgesetz,
de
10.12.1990) da Alemanha de 1990 tem por objetivo melhorar a situação
jurídica de pessoas que sofreram um dano individual em virtude de
poluição ambiental. A lei introduziu uma responsabilidade
objetiva, baseada no risco criado, de determinadas fontes poluidoras
(sobretudo instalações industriais) para danos nos "meios"
ecológicos ar, solo e água. A lei estabelece uma presunção
de causalidade entre determinadas atividades poluidoras e o dano, o
direito de informação do indivíduo afetado perante
o dono da instalação e os órgãos públicos,
para mudar a notória situação de inferioridade dos
prejudicados e os seus problemas de comprovação do nexo causal.
-
Porém, o próprio texto legal determina que a presunção
de causalidade não se aplica se a instalação está
sendo explorada "de forma regular", o que é o caso quando são
respeitadas as obrigações particulares como normas,
autorizações e ordens executórias administrativas
(§ 2º e 3º). Essa "presunção" de que não
existe um dano ambiental, contudo, pode ser contrariada no caso concreto.
-
Os pontos fracos da teoria do risco integral se mostram ainda em
outros aspectos. Para os seus defensores, essa teoria também se
aplica no caso do dano ambiental individual, que está expressamente
incluído no âmbito da vigência da responsabilidade objetiva
(art. 14, § 1º, Lei 6.938/81). Como essa teoria não permite
nenhum tipo de excludente subjetivo da responsabilidade, não é
possível levar em consideração a participação
do próprio prejudicado na concretização do dano.
-
Por exemplo, um fazendeiro move uma ação civil contra seu
vizinho alegando que este lhe causou um dano na sua propriedade por ter
derrubado a maior parte das árvores no seu terreno e poluído
o seu solo com agrotóxicos, o que provocou a migração
de uma certa espécie de insetos para o seu terreno onde eles causaram
prejuízos nos animais e nas plantações. O laudo técnico
de um agrônomo confirma que a causa concreta dessa "invasão"
foi a poluição do terreno do réu. Independente da
questão se o pretenso poluidor tenha agido com autorização
do Poder Público ou não, poderíamos deixar fora do
raciocínio o fato que o vizinho reclamante nunca vacinou os seus
animais e tratou suas plantas contra a doença transferida pelos
insetos, embora todos os fazendeiros da região tenham procedido
de tal forma?
-
Esse exemplo aponta a inviabilidade do desligamento total da questão
da responsabilidade civil por dano ambiental de fatores subjetivos. Em
outros países existe a responsabilidade objetiva em determinadas
áreas da poluição ambiental, porém não
se aplica em todos os casos, sem qualquer possibilidade de distinção
e admissão de fatores excludentes ou diminuintes da responsabilidade.
Tem de ser considerado também que a adoção da teoria
do risco integral no âmbito da responsabilidade civil pelo
dano ambiental iria causar riscos incalculáveis para o empresário,
que não poderia mais confiar em licenças válidas concedidas
pelos órgãos administrativos.
5. O conceito legal do Dano Ambiental
-
O cerne do problema nos parece estar situado na questão do entendimento
correto do conceito do dano ambiental no sentido do art. 14, §
1º, da lei 6.938/81. A referência ao conceito do dano ambiental
volta à tona na lei processual sobre a Ação Civil
Pública (n.º 7.347/85, art. 1°); é pacífico
na doutrina que a questão o que seja um dano ao meio ambiente
é respondida pela legislação material referente
à proteção ambiental.
-
Viana Bandeira destaca com efeito que, na indagação sobre
o conteúdo do conceito "dano ambiental", teríamos de considerar
que o mesmo, por um lado, apresenta-se como um fenômeno físico-material,
por outro lado pode integrar um fato jurídico qualificado por uma
norma e sua inobservância e que somente pode cogitar-se um dano se
a conduta for considerada injurídica no respectivo ordenamento legal;
assim a injuridicidade decorre da violação de um interesse
juridicamente protegido (Evandro F. de Viana Bandeira, O Dano Ecológico
nos quadros da responsabilidade civil, in: Adilson A. Dallari/
Lúcia V. Figueiredo - Coord., Temas de Direito Urbanístico
- 2, 1991, Edit. RT, p. 265, 268).
-
Portanto, não basta a simples opinião pessoal do aplicador
do Direito (agente administrativo, promotor, juiz) que certo comportamento
"faz mal ao meio ambiente"; sempre deve haver uma norma que proíbe
certa atividade ou protege determinado bem ecológico. É claro,
que no ato da subsunção dos fatos ao texto da norma sempre
vai haver influência da atitude pessoal do intérprete. (Cf.
Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico,
6. ed., 1983, Fund. Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 205; Miguel Reale,
Lições
Preliminares de Direito, 22. ed., 1995, Edit. Saraiva, p. 285.)
-
No art. 3º, III, da lei n.º 6.938/81 da Política Nacional
do Meio Ambiente, o conceito de poluição está
sendo definido de maneira extremamente ampla, como
-
"degradação da qualidade ambiental resultante de atividades
que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança
e o bem-estar da população; criem condições
adversas às atividades sociais e econômicas; afetem desfavoravelmente
a biota; afetem as condições estéticas ou sanitárias
do meio ambiente; lancem matérias ou energia em desacordo com os
padrões ambientais estabelecidos."
-
Podemos afirmar que, onde existir poluição no sentido
do art. 3º, III, da Lei 6.938/81, muitas vezes vai haver também
um dano ambiental de acordo com o art. 1º, inciso I, da Lei
7.347/85, visto que a definição do conceito de dano da lei
processual se rege pelas normas do direito ambiental material.
-
Portanto, nem toda alteração negativa do meio ambiente pode
ser qualificada como poluição ou dano. Na verdade,
o conceito e o conteúdo do dano ambiental na legislação
ficaram relativamente indefinidos. (Cf. Jair Lima Gevaerd Filho, Anotações
sobre os conceitos de Meio Ambiente e Dano Ambiental, in Revista
de Direito Agrário e Meio Ambiente, Curitiba, 1987, p. 17.) Hely
Lopes Meirelles esteve com razão quando alegou que "de um modo geral
as concentrações populacionais, as indústrias, o comércio,
os veículos, a agricultura e a pecuária produzem alterações
no meio ambiente, as quais somente devem ser contidos e controlados quando
se tornam intoleráveis e prejudiciais à comunidade, caraterizando
poluição reprimível. Para tanto, a necessidade da
prévia fixação técnica e legal dos índices
de tolerabilidade, dos padrões admissíveis de alterabilidade
de cada ambiente, para cada atividade poluidora" (Proteção
ambiental e Ação Civil Pública, in Revista
dos Tribunais, n.º 611, 1986, p. 11).
-
A doutrina normalmente aponta três caraterísticas do dano
ambiental: a sua anormalidade, que existe onde houver modificação
das propriedades físicas e químicas dos elementos naturais
de tal grandeza que estes percam, parcial ou totalmente, sua propriedade
ao uso; a sua periodicidade, não bastando a eventual emissão
poluidora e a sua gravidade, devendo ocorrer transposição
daquele limite máximo de absorção de agressões
que possuem os seres humanos e os elementos naturais. (Paulo A. Leme Machado,
ob. cit., p. 253; Fábio D. Lucarelli, ob. cit., p. 10.)
-
Essas tentativas de "caraterizar" um dano ambiental, no entanto, ajudam
muito pouco nos casos de alterações do meio ambiente que
foram autorizadas pelo Poder Público. O problema aqui não
está na questão se existe ou não o fato ou o perigo
de uma transformação do meio ambiente, mas questiona-se se
essa mudança e legal ou ilegal e se o causador das mudanças
ecológicas deve indenizar a coletividade.
-
Alguns autores, no entanto, parecem sentir a problemática do tema.
Dantas de Carvalho, por exemplo, alega que, para verificar, no caso concreto,
a incidência de um dano ambiental, a questão crucial seria
"entender a amplitude da alteração necessária do meio
ambiente, pois se levada a extremos, a simples derrubada de uma árvore
para a construção de um hospital geraria o dever de ressarcir"
(Michelle Dantas de Carvalho, Responsabilidade Civil do Estado por Danos
Ambientais, in: Estudos de Direito Administrativo
- em homenagem ao Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, 1996,
Edit. Max Limonad, p. 309).
-
Por exemplo, o dono de um sítio recebe a autorização
dos órgãos competentes para derrubar árvores no seu
terreno para realizar uma construção; verifica-se, depois,
que as árvores eram de uma espécie rara, valiosíssima
para o meio ambiente local, e que órgão da prefeitura ou
do Estado errou em concede-la. Parece inaceitável a propositura
de Ação Civil Pública contra o particular por ter
causado um dano ambiental. A co-responsabilidade do órgão
expedidor da licença não melhora muito a situação
do pretenso degradador ambiental, visto que ele vai ter de se defender
no processo, e poderá até sofrer uma condenação
para, depois, ter de ajuizar uma ação de regresso contra
o Poder Público.
6. O sacrifício especial de direito individual
-
Para fundamentar a tese de que mesmo uma licença ou autorização
válida do órgão ambiental competente para a atividade
desenvolvida não serve como excludente da responsabilidade
por dano ambiental, alguns autores tentam se valer do argumento de que
existe, há muito tempo, uma regulamentação de efeitos
idênticos na área do direito de vizinhança dos
Códigos Civis do Brasil e de outros países. Alegam também
que autorizações e licenças geralmente são
outorgadas pelos órgãos administrativos com a "inerente ressalva
de direitos de terceiros" (José Afonso da Silva, Direito Ambiental
Constitucional, 1994, Edit. Malheiros, São Paulo, p. 216).
-
Nesse contexto, cita-se a lição de Karl Larenz, quem
afirma que "o fundamento do dever de indenizar reside na exigência
de uma justiça comutativa de que aquele que tem defendido seu interesse
em detrimento do direito alheio, conquanto de maneira autorizada, tem de
indenizar o prejudicado que teve de suportar a perturbação
de seu direito." (Lehrbuch des Schuldrechts II - Besonderer Teil, 12. Auflage,
1981, § 78, apud Nelson Nery Jr. / Rosa M. de Andrade Nery,
Responsabilidade
Civil, Meio Ambiente e Ação Coletiva Ambiental, in:
A. Herman Benjamin - Coord., ob. cit., p. 278, 280.)
-
Vale ressaltar, no entanto, que essas palavras do jurista alemão
comentam o instituto da Aufopferung (sacrifício) do direito
civil alemão (§ 906, II, BGB): as normas sobre o direito de
vizinhança tratam do caso de que alguém está incomodando
e prejudicando o imóvel vizinho com a emanação de
gases, vapores, odores, fumaça, fuligem e ferrugem, calor, ruídos
ou vibrações (em alemão chamados de Imissionen).
-
A regra, que a lei alemã estabelece, é que o vizinho prejudicado
tem o direito de exigir o fim dessas incomodações físicas
até se a fonte incomodadora está operando dentro dos padrões
da autorização estatal (expressamente o art. 14 da Lei Federal
de Proteção contra Impactos Ambientais Nocivos através
de Poluição do Ar, Ruídos, Vibrações
e fenômenos semelhantes (Bundes-Immissionsschutzgesetz) de 15.3.1974).
Porém, não há este direito ao embargo das atividades
incomodadoras nos casos em quais essas "Imissionen" sejam "comuns
no local" (ortsüblich), isto é, que nesse bairro existem
vários tipos dessas fontes de incomodação (por ex.:
bares, restaurantes, padarias, escolas, comércios, indústrias).
Todavia, essa obrigação de tolerar as incomodações
(Duldungspflicht) é compensada através do direito
de receber uma "justa indenização em dinheiro" quando as
perturbações inviabilizam o aproveitamento comum do imóvel
prejudicado e não podem ser evitadas mediante "medidas economicamente
proporcionais". Temos, portanto, nessa hipótese do direito alemão,
uma atividade, que, embora de ser legal, enseja o dever de indenização
ao vizinho. (Cf. Hoppe, Werner /Beckmann, Martin, Umweltrecht, 1989,
Verlag C. H. Beck, München, p. 262.)
-
O fundamento da indenização, nesses casos de vizinhança
é a equidade: não é justo que um indivíduo
sofra um dano ou prejuízo no seu patrimônio embora a atividade
seja legal por ter sido autorizada pelo Poder Público.
-
No caso do dano ambiental difuso a situação se apresenta
de maneira diferente: não existe a necessidade de repartir os ônus
de alguns poucos que, comparados com a coletividade, sofrem um "sacrifício
especial" nos seus direitos. O "interessado" aqui é a coletividade,
cujos interesses, no Estado de Direito, estão sendo defendidos -
bem ou mal - por parte do Poder Público, sobretudo dos órgãos
administrativos da União, Estados e Municípios, ainda que
reconheçamos que a "função ambiental" (Antônio
H. Benjamin, Função Ambiental, in: o mesmo
- Coord., Dano ambiental..., ob. cit., p. 52) não está
sendo exercida exclusiva-mente pelo Poder Executivo.
-
Ousamos até afirmar que os próprios conceitos de "sacrifício
especial individual" no sentido alemão e a "violação
de interesse ou direito difuso" se excluem mutuamente.
7. Linhas paralelas com a Responsabilidade Objetiva da Administração
Pública
-
Nessa linha de raciocínio, podemos aportar mais um exemplo de conjectura
jurídica paralela. Trata-se da responsabilidade civil objetiva da
Administração Pública. É pacífico na
doutrina que pode haver uma responsabilidade solidária do Estado
- ao lado do poluidor - nos empreendimentos sujeitos a aprovações
do Poder Público no caso de autorizações legais, pelo
critério da teoria objetiva; alguns aceitam essa tese desde que
haja um dano (sacrifício) especial ao meio ambiente, afetando certas
e determinadas pessoas da comunidade. (Assim Tóshio Mukai, Direito
Ambiental Sistematizado, 1992, Edit. Forense Universitária,
p. 72.)
-
Por exemplo, na concessão da autorização de uma fábrica,
o funcionário do órgão ambiental do Estado age com
toda perícia e prudência exigidas, estabelecendo padrões
e limites de emissão segundo os conhecimentos atuais da ciência.
Mesmo assim, as emanações da fábrica depois vêm
a causar danos em algumas plantações de frutas da região.
O Estado é co-responsável pelo dano provocado pela atuação
não culposa do seu agente; o ato administrativo é legal,
mas leva a responsabilidade objetiva do Estado pois houve um dano especial
de determinados indivíduos.
-
Essa linha de raciocínio não está restrita ao âmbito
do dano ambiental. Para admitir qualquer responsabilidade civil (objetiva)
do Estado por ato administrativo legítimo, Celso Antônio
Bandeira de Mello exige a existência de um "dano especial que onera
a situação particular de um ou alguns indivíduos,
não sendo, pois, um prejuízo genérico, disseminado
pela sociedade" e afirma que "o fundamento da responsabilidade estatal,
no caso de comportamentos lícitos, assim como na hipótese
de danos ligados a situação criada pelo Poder Público
- mesmo que não seja o Estado o próprio autor do ato danoso
- é garantir uma equânime repartição dos ônus
provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos
ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no
interesse de todos. De seguinte, seu fundamento é o princípio
da igualdade, noção básica do Estado de Direito"(Curso
de Direito Administrativo, 4. ed., 1993, Edit. Malheiros, p. 442, 456).
Esse entendimento jurídico é o mesmo em vários países
europeus (cf. Luis Barbosa Rodrigues, Da Responsabilidade Civil Extracontratual
da Administração Pública em cinco Estados das Comunidades
Européias, in: Fausto de Quadros - Coord., Responsabilidade
Civil Extracontratual da Administração Pública,
Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 248).
-
Se existe essa exigência do "sacrifício especial" e individual
para a aceitação da responsabilidade objetiva do Estado por
dano ambiental, nenhum argumento nos parece válido para não
estender essa condição também aos casos da responsabilidade
do particular que agiu dentro dos padrões estabelecidos pelo Poder
Público.
-
Não olvidamos que a razão da introdução da
responsabilidade objetiva pelo dano ambiental (dificuldade de comprovação,
cobrança maior contra o consumidor de recursos naturais) difere
do fundamento da responsabilidade objetiva do Estado pelos atos dos seus
agentes (posição econômica forte do Estado com as suas
prerrogativas legais perante o cidadão).
-
Também levamos em conta que, no caso da responsabilidade do Estado,
normalmente se trata de danos causados a particulares mediante "atividades
desempenhadas no interesse de todos", enquanto, no dano ambiental, o poluidor
age, acima de tudo, em interesse próprio na perseguição
de lucro pessoal.
-
A constelação de interesses envolvidos, no entanto, parece
ser semelhante: se o Estado somente precisa indenizar os danos causados
por aqueles atos legítimos, que são qualificáveis
como "sacrifícios especiais", parece injusto que o particular, que
cumpriu fielmente as exigências e padrões da autorização
concedida pelo poder estatal, dever indenização por todo
e qualquer dano que venha a se concretizar depois, especialmente o
difuso.
-
Segundo a nossa opinião, o causador do prejuízo ecológico
responde independentemente da licitude do seu ato somente onde existe um
dano ambiental individual, em virtude da existência de um sacrifício
especial de outrem, situação que exige, por motivos de equidade,
a indenização dos prejuízos causados (solução
do Código Civil Alemão).
-
As atividades produtivas ligadas aos setores da indústria, da construção
civil, do comércio, do transporte, etc., normalmente surtem também
efeitos positivos para a sociedade, como a criação
de empregos, renda e tributos. Cabe ao Poder Público controlar e
disciplinar essas iniciativas e ações e direcioná-las
em caminhos e formas que não levam a danos à coletividade
como à saúde e segurança das pessoas e ao meio ambiente.
-
Onde o Estado falha em preencher essa função e emite licenças
que permitem impactos ambientais nocivos, não é justo repassar
a responsabilidade ao particular, especialmente nos casos, onde ele podia
ser confiante na certidão da autorização e a regularidade
e licitude da sua atuação. O primeiro guardião dos
interesses da coletividade como do bem difuso meio ambiente ainda
é o Estado, não o cidadão.
8. Dano Ambiental: interpretação da lei e exercício
de discricionariedade
-
Os órgãos públicos responsáveis pela defesa
da saúde da população e a salubridade do meio ambiente
- seja a Prefeitura, o órgão ambiental do Estado ou o IBAMA
- produzem atos administrativos mediante subsunção do suporte
fático aos conceitos das normas. A competência de declarar
que há ou não um "perigo ao ambiente", um "impacto ecológico
significativo", uma "degradação ambiental" ou um "risco à
saúde pública" é, em primeiro momento, do Poder Executivo
na sua função de aplicar a lei. Ao mesmo tempo, quase todas
decisões administrativas ligadas ao licenciamento de atividades
capazes de causar impactos ambientais representam, na verdade, autorizações
por envolverem juízos de conveniência, e por isso, o exercício
de discricionariedade administrativa.
-
No ato da concessão de autorização pública
para a realização de uma atividade que onera os recursos
naturais, o efeito negativo sobre o meio ambiente, muitas vezes, já
é previsível, e os futuros impactos ambientais já
são objeto de exercício da discricionariedade administrativa:
calcula e avalia-se a relação entre os riscos da futura oneração
do meio natural provocados pela atividade e os proveitos oriundos da atividade
poluidora. (Veja a respeito: Édis Milaré/ A. Herman Benjamin,
Estudo
Prévio de Impacto Ambiental, 1993, Edit. RT, p. 67ss.) A produção
de cimento, celulose, produtos químicos e petrolíferos, etc.
sempre vai causar algum impacto negativo sobre o meio ambiente local ou
regional. O emprego de processos e métodos da tecnologia moderna
de filtragem e limpeza dos efluentes, das emanações e dos
resíduos sólidos é capaz de diminuir esses efeitos,
porém nunca vai eliminá-los inteiramente.
-
A avaliação de um Relatório de Impacto Ambiental (RIMA),
obrigatório para o licenciamento de determinados projetos e atividades
(art. 2º da Resolução 001/86 do Conselho Nacional do
Meio Ambiente - CONAMA), por sua natureza, já representa um processo
complexo da valoração dos potenciais efeitos negativos, colocando-os
em relação direta com as vantagens do projeto ou da atividade
para o meio social da região.
-
O seguinte exemplo contribui para esclarecer o problema. A Resolução
02/96 do CONAMA, no seu art. 1º, determina que "para fazer face à
reparação dos danos ambientais causados pela destruição
de florestas e outros ecossistemas, o licenciamento do empreendimento de
relevante impacto ambiental, assim considerado pelo órgão
ambiental competente com fundamento do EIA/RIMA, terá como um dos
requisitos a serem atendidos pela atividade licenciada, a implantação
de uma unidade de conservação de domínio público
e uso indireto."
-
Parece difícil alegar que, depois da instalação da
unidade de conservação, o efeito negativo que o empreendimento
venha a causar a um ecossistema, ainda pode ser qualificado como "dano
ambiental" e, portanto, levar à responsabilidade com base do art.
14, § 1º, da Lei 6.938/81.
-
No entanto, os defensores da "linha dura" teoria do risco integral,
até em casos como este, devem exigir a condenação
do pretenso "poluidor" a desfazer a degradação ou pagar indenização,
visto que eles não querem levar em consideração o
fato se a atividade é lícita (autorizada por lei ou ato administrativo)
ou não, atitude que, evidentemente, nos levaria a resultados absurdos.
Isto prova que, em certos casos, o próprio ato de autorização
da atividade ou do empreendimento exclui a atribuição do
conceito "dano" aos efeitos negativos sobre o meio ambiente por ele provocados.
-
Ao mesmo tempo, os próprios padrões de emissão (água,
ar, solo, ruídos) elaborados pelo legislador ou órgãos
administrativos (por ex. o CONAMA) são resultados de uma avaliação
e decisão política dos respectivos órgãos sobre
a questão se tais efeitos sobre o meio ambiente podem ser tolerados
ou não. Enquanto o emissor fica abaixo dos limites estabelecidos,
o seu comportamento é considerado tolerável face aos
efeitos positivos os quais as atividades produtivas normalmente provocam,
como a geração de emprego e de tributos.
-
É claro que o licenciamento de uma atividade que causa impactos
ambientais nunca é capaz de legalizar possíveis acidentes
ecológicos como vazamentos de gás ou substâncias venenosas
na água, explosões, queimadas ou qualquer outro acontecimento
imprevisto que prejudica os recursos naturais; esses fatos sempre são
considerados ilícitos.
9. O papel especial do Poder Judiciário no contexto da
Lei 7.347/85
-
Nesse ponto, vale ressaltar a posição destacada dos tribunais
na interpretação da legislação ambiental.
Onde uma prefeitura ou um órgão estadual licenciam um projeto
ou uma atividade interpretando a legislação ambiental e/ou
urbanística de uma determinada maneira e, em seguida, o Ministério
Público ou uma Associação da Sociedade Civil discorda
dessa interpretação e instaura uma Ação Civil
Pública, o juiz enfrenta a situação de ter de verificar
se o ato administrativo realmente operou a interpretação
correta da norma material.
-
Porém, a função do Poder Judiciário nesse contexto
não para nesse ponto. O Tribunal de Justiça de São
Paulo afirmou que não há restrição ao poder
revisional dos tribunais sobre o juízo da Administração,
quando esta não reconhece os valores de vida referidos na lei 7.347/85.
A identificação de um valor paisagístico, estético,
histórico ou turístico, segundo o Relator Des. Jorge Almeida,
não emerge de mera criação da autoridade administrativa,
mas existe no plano da vida; ele arremata: "É de nossa organização
política a posição superposta do Judiciário
em face dos outros Poderes, sempre que se trate de interpretar e aplicar
um texto de lei" (T.J.S.P., 8. Câmara Civil, Acórdão
de 21.3.90, in Revista dos Tribunais, n.° 658, p. 91 e acórdão
de 28.3.88).
-
O mesmo Tribunal não aceitou a alegação de que a construção
de um emissário submarino pudesse causar danos à fauna marinha,
em virtude do fato que o lançamento do esgoto no mar sem o emissário
representaria um dano ambiental muito maior. (T.J.S.P., Ag. 128.735-1,
2.8.1990, in Revista do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, vol. 128, pp. 263/5.)
-
Diomar Ackel Filho elogia essa possibilidade de identificação
de valores do art. 1º da Lei 7.347/85 pelo Poder Judiciário
por ser um "evolução dinâmica do Direito, contemplando
a discricionariedade na sua devida posição, não como
potestas
impenetrável do titular do poder, mas como dever jurídico
orientado pela legalidade e princípios basilares que direcionam
toda a atividade administrativa no rumo das exigências éticas
dos administrados" (Discricionariedade administrativa e Ação
Civil Pública, in Revista dos Tribunais, n.° 657,
1990, p. 53).
-
Na mesma linha doutrinária da "identificação direta"
- sem ser a prerrogativa dos Poderes Legislativo e Executivo - dos valores
difusos do inciso III, art. 1º, Lei 7.347/85 pelo Judiciário
anda Theotônio Negrão quando afirma que, para a incidência
da Lei da Ação Civil Pública "não é
necessário que os atos praticados violem a lei ou ato administrativo"
(Código de Processo Civil e legislação processual
em vigor, 27. ed., 1996, Edit. Saraiva, p. 668s.; Cleide Previtalli
Cais, Proteção constitucional do meio ambiente, in
Revista de Direito Público, n.º 89, 1989, p. 125).
-
Não pode ser diferente o tratamento da identificação
do dano ambiental (inciso I do art. 1º da Lei 7.347/85)
isto é, a avaliação do bem por sua importância
ecológica, o que inclui necessariamente uma ponderação
do seu valor em relação a outros valores e interesses protegidos
pelas Constituições.
-
Tem de ficar claro que essa "substituição" de juízo
de valores - e, com isso também do mérito da questão
- é uma importante inovação dentro do sistema jurídico
brasileiro que tradicionalmente limitou ao máximo o poder de revisão
de atos discricionários da administração pública
pelos tribunais, com base da teoria da divisão dos poderes.
-
Essa visão tradicional, no Brasil, está sendo ultrapassada,
sofrendo influências especialmente por autores conhecedores do sistema
germânico de tratamento da questão da discricionariedade,
que distingue entre os "conceitos jurídicos indeterminados", cuja
interpretação pode ser controlada pelos Tribunais e a discricionariedade
em sentido estrito (Ermessen), na parte da escolha dos meios apropriados
para a resolução do caso, onde os juízos de conveniência
e propriedade do Executivo via de regra não devem ser substituídos
pelo Judiciário, salvo em casos de mal-informação
sobre os fatos ou constelações excepcionais que somente permitem
uma única solução, reduzindo-se a discricionariedade
"a zero" (Ermessensreduzierung auf Null). (Cf. Almiro do Couto e
Silva, Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro,
in
Boletim de Direito Administrativo, 1991, p. 227; Lúcia Valle Figueiredo,
Ação Civil Pública - considerações
sobre a discricionariedade..., in: Édis Milaré,
ob. cit., p. 334.)
-
Não é possível, nesse lugar, aprofundar a discussão
sobre os problemas ligados ao exercício e o controle da discricionariedade
administrativa no sistema jurídico brasileiro. Resta constatar que
essa questão deve ser considerada e refletida quando se indaga sobre
a existência ou não de um dano ambiental no caso concreto.
-
Chegamos numa situação mais delicada ainda nos casos onde
existe um ato legislativo municipal que legitima a mudança
do meio ambiente com seus impactos negativos. Nessas circunstâncias,
a representação eleita da população tem realizado
uma ponderação política entre os valores ligados à
proteção ambiental e, por outro lado, ao funcionamento de
serviços públicos, a criação de empregos e
geração de tributos, etc.
-
Surge a pergunta se o Poder Judiciário tem o direito de fazer valer
a sua valoração e ponderação dos bens e interesses
envolvidos no lugar do Legislativo, que normalmente possui um "espaço
de livre conformação" da relação entre os interesses
e valores sociais. Essa substituição de decisão legislativa
sobre o valor ambiental de um bem parece possível somente em casos
extremos, onde o legislador agiu com desrespeito evidente de valores consagrados
na Constituição, sob aplicação do princípio
de proporcionalidade (cf. Suzana de Toledo Barros, O Princípio
de Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis
restritivas de Direitos Fundamentais, Edit. Brasília Jurídica,
1996; Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação
da Constituição, 1996, Edit. Saraiva, p. 198 passim).
Nessas hipóteses, seria o caminho correto a propositura de ação
direta de inconstitucionalidade para controle do ato perante a legislação
superior.
-
O Tribunal de Justiça de São Paulo ponderou que as obras
de construção de uma central telefônica não
podiam ser consideradas como causadoras de dano ambiental, visto que existia
uma "prévia desafetação e competente autorização
por lei municipal específica" (T.J.S.P., AC. 100.001-1, 24.111988,
in
RJTJSP, vol. 117, p. 41). Em outra decisão sobre o assunto, o T.J.S.P.
declarou que o direito do Ministério Público e das associações
civis de agirem em defesa do meio ambiente tinha de ser colocado em relação
a outros valores constitucionais, nesse caso a autonomia municipal, deixando
claro que o "valor do meio ambiente tinha de ser entendido dentro dos seus
devidos limites". (T.J.S.P., Apelação Civil n.º 104.577-1,
de 27.10.88). Foi o caso de uma obra pública em Ribeirão
Preto (SP), onde uma lei municipal, aprovada por unanimidade, decidiu a
supressão de uma parte de um parque para tal fim.
-
Vale lembrar que a teoria do risco integral iria exigir a indenização
do possível dano causado ao meio ambiente pela realização
da obra pública, não levando em conta a importância
da lei existente sobre a concretização do próprio
conceito de "dano".
10. A relação entre "lesividade" e "ilegalidade"
do ato público no âmbito da Ação Popular
-
Para robustecer a nossa tese da necessidade da consideração
do ato público autorizador legal como possível fator excludente
da responsabilidade civil por dano ambiental difuso, podemos apontar também
à relação de interdependência entre a ilegalidade
e a lesividade do ato público impugnado por uma Ação
Popular. Segundo o art. 5, LXXIII, da Constituição Federal
"qualquer cidadão é parte legítima para propor ação
popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público
ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa,
ao
meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural [...]."
(grifo nosso)
-
A lei n 4.717/65, por sua vez, determina que "a sentença que, julgando
procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado,
condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis
pela sua prática e os beneficiários dele[...]" (art. 11).
Nesse caminho, pode-se perfeitamente chegar à condenação
de um poluidor particular a indenizar um dano ambiental difuso, sendo ele
o "beneficiário" do ato público autorizador no sentido da
lei supra citada. No sistema da Ação Popular a condenação
a pagar indenização é a conseqüência da
invalidação do ato público estatal que causou ou possibilitou
a lesão do bem público meio ambiente, que normalmente
consiste num ato administrativo autorizador de atividade potencialmente
poluidora.
-
Vale ressaltar que a maior diferença entre a Ação
Civil Pública e a Ação Popular consiste no fato de
que essa última somente pode ser instaurada por um cidadão
particular, e não pelo Ministério Público ou associações
civis, o que limitou bastante a sua importância prática na
defesa do meio ambiente no passado.
-
As semelhanças entre o objetivo dos dois meios processuais leva
à indagação sobre o relacionamento entre o ato público
impugnado e a condenação a indenizar o possível dano
ecológico. Na doutrina sobre os requisitos de procedência
da Ação Popular sempre foi discutida a questão se
seria suficiente a lesividade do comportamento estatal impugnado
ou se era necessário também a sua ilegalidade.
-
Durante décadas, prevaleceu o entendimento que era indispensável
"o binômio ilegalidade/lesividade", visto que os textos constitucionais
anteriores, tratando da Ação Popular, mencionaram expressamente
o critério de "nulidade ou anulabilidade" do ato lesivo como condição
do cabimento da própria ação. (Rodolfo de Camargo
Mancuso, Ação Popular, 2. ed., 1996, Edit. RT, p.
83). Depois da promulgação da Carta de 1988, a doutrina dominante
e a jurisprudência continuam exigindo também a ilegalidade
do ato como condição para a procedência da ação.
(Cf. as referências de Tóshio Mukai, ob. cit., p. 91.)
-
Existe uma corrente atual que coloca ênfase na lesividade
do ato impugnado, visto que o Art. 5, LXXIII, não faz mais referência
a sua ilegalidade, alegando esses autores que a ilicitude do ato
sempre
estaria presente nos casos de lesividade ao patrimônio público,
sendo esta um pressuposto daquela, reconhecendo, contudo, as dificuldades
de erigir a lesão, em si, à condição
de motivo autônomo de nulidade do ato. (Cf. Michel Temer,
Elementos
de Direito Constitucional, 1992, Ed. RT, p. 234; Celso Bastos,
Curso de Direito Constitucional, 1989, Edit. Saraiva,
p. 237; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional
Positivo, 1989, Edit. RT, p. 399.)
-
Importante ressaltar nesse ponto, que, provocado via Ação
Popular, o Judiciário (também) não é autorizado
a invalidar opções administrativas ou substituir critérios
técnicos por outros que repute mais convenientes ou oportunos, pois
essa valorização refoge da competência da Justiça
e é privativa da Administração. (Hely L. Meirelles,
Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação
Civil Pública, Mandado de Injunção, "Habeas Data",
13. ed., 1989, Edit. RT, p. 93.) Rodolfo Mancuso (ob. cit., p. 83) lembra
que, somente alegando a lesividade, o Judiciário acabaria
na incômoda posição de ter que avançar no mérito
ou na discricionariedade administrativa do ato sindicado, em busca da afirmada
lesividade,
quando de correlata ilegalidade não se tivesse queixado o
autor popular.
-
Na base do exposto, podemos observar que, no âmbito da Ação
Popular, até hoje não é possível uma condenação
a indenização de um dano ambiental difuso quando existir
um ato público autorizador legal do mesmo.
11. Evidência do dano causado ao meio ambiente; aspectos
subjetivos da responsabilidade
-
Já afirmamos que até a responsabilidade objetiva não
pode se desligar completamente da consideração de aspectos
subjetivos. Alguns autores ligam a obrigação de indenizar
apesar de uma autorização válida a aspectos do princípio
da boa-fé, que hoje começa a infiltrar todas áreas
do direito público e privado e, no fundo, é um corolário
do princípio máximo da justiça material no caso concreto.
-
José Afonso da Silva afirma que a responsabilidade pelo dano ambiental
existe mesmo que o poluidor exerça a sua atividade dentro dos padrões
fixados, "o que não exonera o agente de verificar, por si mesmo,
se uma atividade é ou não prejudicial, está ou não
causando dano" (Cf. Rüdiger Breuer, Umweltschutzrecht, in:
Ingo von Münch/ Eberhard Schmidt-Aßmann, Besonderes Verwaltungsrecht,
9. ed., 1992, Verlag W. de Gruyter, Berlin, p. 444).
-
Essa "verificação" pode ser efetuada somente em casos de
uma certa evidência do dano ambiental, bem como a obviedade
dos efeitos negativos que a atividade causa no ambiente local, como a morte
de animais, a destruição da vegetação ou reclamações
constantes da população sobre doenças diretamente
ligadas às emissões.
-
Parece imprescindível considerar também a capacidade individual
do agente poluidor de reconhecer os danos por ele causados; o dano provocado
por grandes indústrias que dispõem de equipes de cientistas
e laboratórios próprios exige outro tratamento do que o dano
acidentalmente causado por um particular. Isto é uma conseqüência
dos princípios do "risco-proveito" e do "poluidor-pagador", através
dos quais surge uma maior densidade de responsabilidade para
o poluidor economicamente mais forte, que utiliza, de maneira intensa,
recursos naturais para gerar o seu lucro.
-
No caso da deterioração ecológica da Serra do Mar
pelas indústrias do Polo de Cubatão, os empresários
responsáveis tinham conhecimento dos efeitos graves da poluição
causada por suas fábricas, que era evidente. A alegação
de que eles sempre tinham operado dentro dos limites de emissão
fixados pelo órgãos competente do Estado (CETESB) não
podia levar a uma exclusão da sua responsabilidade, visto que as
circunstâncias do caso concreto não permitiam a existência
de uma "boa-fé" por parte das empresas licenciadas, que possuíam
todas condições econômicas e técnicas de realizar
estudos sobre os danos que se estavam realizando, de maneira óbvia,
no ambiente local e regional.
-
Outro exemplo ilustrativo pelo fato de que, no âmbito da responsabilidade
objetiva, não podem ser excluídas todos aspectos subjetivos
relacionados ao agente causador do dano é a impossibilidade
de construir uma responsabilidade objetiva por omissão (Helli
Alves de Oliveira, Da responsabilidade do Estado por danos ambientais,
Rio de Janeiro, 1990, p. 50s.). Uma omissão somente pode
ser equiparada a uma ação lesiva quando existe um dever de
atuação para evitar um dano. Sem dúvida, os órgãos
ambientais estatais são obrigados por lei a impedir qualquer ato
contra o meio ambiente. Mas isto não é suficiente.
-
Ficando somente no plano da conexão causal, qualquer dano ambiental
provocado por um particular ensejaria automaticamente também a responsabilidade
do órgão estatal competente, porque, se este tivesse atuado,
certamente poderia ter evitado o dano. Isto levaria a uma responsabilidade
total
do Estado por danos ambientais, com a conseqüência desagradável
que o Poder Público, numa boa parte dos processos, teria indenizar
pelo menos a metade do dano - com dinheiro do contribuinte!
12. Considerações finais
-
O dano ambiental é capaz de manifestar-se no plano coletivo
bem como no individual. No primeiro, é a coletividade que
é atingida no seu interesse difuso de dispor de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. No segundo, um particular (pessoa física
ou jurídica) sofre um prejuízo nos seus bens protegidos como
a propriedade ou sua saúde através da degradação
do meio ambiente ou de um recurso natural. As regras jurídicas para
a concretização e reparação do dano ecológico
diferem
entre o dano individual e o coletivo/difuso.
-
O fundamento da introdução da responsabilidade objetiva pelo
dano ambiental no Brasil é a teoria do "risco-proveito",
que é um corolário do princípio do "poluidor-pagador",
consagrado internacionalmente como um dos princípios básicos
do Direito Ambiental. Não convencem inteiramente os autores que
vêem como fundamento dessa responsabilidade objetiva a teoria do
"risco integral", que não permite fatores excludentes da responsabilidade.
-
A concretização do dano ambiental se opera no mundo fático
bem como no mundo jurídico. Pode haver dano ambiental embora
que nenhuma norma do direito material seja infringida. Por outro lado,
já é considerado poluidor quem emite emissões além
dos padrões permitidos pela autorização do empreendimento;
nesse caso, a ultrapassagem dos limites estabelecidos leva à presunção
da existência de um dano ao meio ambiente.
-
A concessão da autorização para o exercício
de uma atividade potencialmente poluidora é um processo administrativo
complexo que se opera através da interpretação de
conceitos
jurídicos indeterminados e quase sempre envolve também
o exercício de discricionariedade por parte do órgão
licenciador/autorizador. Esse processo administrativo produz efeitos sobre
a questão se pode existir ou não, no caso concreto, um dano
ambiental. Uma corrente moderna da doutrina concede esse direito de "identificação"
de valores ambientais, paisagísticos, estéticos, etc. também
ao Poder Judiciário.
-
No plano do dano ambiental individual é válido o argumento
de que pode haver um sacrifício intolerável (por ser especial)
de um bem ou interesse individual em prol da coletividade. A autorização
da atividade poluidora pelo Poder Público, nesses casos, não
impossibilita a reivindicação do particular de que o agente
degradador indenize o dano sofrido por ele, o que é uma conseqüência
do princípio da equidade, que vigora também nas relações
entre vizinhos, onde determinadas atividades lícitas podem levar
a obrigação de pagar uma indenização.
-
A mesma regra não poder valer sem ajuste no âmbito do dano
ecológico difuso. A Administração Pública
tradicionalmente é considerada o guardião e defensor do interesse
coletivo. Onde os órgãos competentes autorizam uma atividade
(potencialmente) poluidora, o dano difuso, que porventura venha a se realizar
no mundo fático, não pode acarretar uma responsabilização
do particular por não ter causado um "sacrifício especial"
a ninguém.
-
O caminho correto, nesses casos, é a provocação do
controle judicial do próprio ato administrativo autorizador, sob
a alegação da má interpretação de conceitos
jurídicos indeterminados perante os fatos ou face às normas
constitucionais de defesa ambiental, e do exercício incorreto da
discricionariedade. O sistema jurídico é uma unidade
devendo o intérprete evitar contradições entre os
ramos distintos do Direito, aqui entre o administrativo e o civil.
-
No caso da provocação de um dano ambiental difuso apesar
da existência de uma licença/autorização pública
válida para obra/atividade desenvolvida é decisiva a questão
se o causador do prejuízo ecológico agiu com boa-fé,
acreditando na certidão e legalidade do seu comportamento. Na indagação
da existência dessa boa-fé, devem ser considerados o poder
econômico do poluidor, a sua capacidade técnica e estrutura
administrativa, que podem levar a presunção da sua "má-fé"
em relação a seu comportamento.
-
Para evitar os danos ao meio ambiente, a solução adequada
nos parece ser a melhoria das condições de trabalho dos órgãos
da Administração Pública incumbidos
da defesa do meio ambiente, seu equipamento com recursos humanos e materiais
suficientes para o exercício mais eficiente de suas tarefas legais.
-
Nesse processo é indispensável a participação
das populações atingidas pelos problemas ambientais, que
devem exercer uma maior pressão política em relação
aos governantes, parlamentares e administradores de todas três esferas
federativas para que estes apertem as exigências técnicas
nos licenciamentos e na fiscalização das atividades poluidoras.
-
Outro caminho de uma aplicação mais conseqüente do princípio
do "poluidor-pagador" no direito ambiental brasileiro seria a cobrança
de impostos e taxas pelo fato de determinada atividade poluir o
meio ambiente. (Ricardo de Angel Yágüez, Algunas previsiones
sobre el futuro de la responsabilidad civil, 1995, Editoral Civitas,
Madrid, p. 54; José Marcos Domingues de Oliveira, Direito Tributário
e Meio Ambiente, 1995, Edit. Renovar, p. 19ss. passim). Esses
instrumentos, por enquanto, dificilmente estão sendo utilizados
por parte dos governos nos três níveis da federação
brasileira. Há também necessidade da exigência legal
de um seguro obrigatório para atividades potencialmente causadoras
de danos ambientais, com a fixação de valores mínimos
de indenização.
-
Uma responsabilização indiscriminada de pretensos "poluidores"
não parece ser a solução adequada para um Estado de
Direito, onde existe o princípio da segurança e previsibilidade
da situação jurídica e patrimonial do cidadão.
Podendo ser justa a responsabilização do poluidor particular
em alguns casos, pode se tornar esta solução injusta
em outros como nos que envolvem pequenos produtores e fazendeiros bem como
donos de pequenos e médios empreendimentos.
E-mail do autor: krell@mac.sol.com.br
Retirado de jus.com.br