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A
constitucionalização do déficit público
Ives Gandra da Silva Martins *
Há dez anos, li um livro escrito por autor americano, sobre a
hiperinflação da República de Weimar de 1923, em que analisa todas as teorias
formuladas por economistas sobre a estabilização conseqüente, determinada pelo
Ministro Sachs, em 15 de novembro de 1923.
O livro é de Stephen
Webb e intitula-se "Hiperinflation and stabilization in the Republic of
Weimar" (Ed. Stanford, EUA). Conclui, o eminente autor, que a
principal causa da hiperinflação era o "deficit" público alemão e a
certeza dos agentes econômicos de que o Governo não conseguiria controlá-lo.
No momento, em que as autoridades alemãs decidiram não transigir com o
"deficit", a qualquer custo, de um dia para o outro a hiperinflação
cessou, com a introdução de uma nova moeda (o marco forte) e a redução do custo
do Estado às forças da sociedade. À evidência, o processo recessivo foi a
conseqüência imediata, mas, mesmo assim, menos oneroso que o processo
hiperinflacionário numa economia desorganizada e recessiva.
O "deficit" público, de rigor, é a essência de todos os
problemas do Estado. Os governos complacentes em concessões, desperdícios e
corrupção terminam gerando "déficits" maiores do que sua capacidade
de gerí-los e, no momento em que os agentes econômicos passam a duvidar dessa
capacidade, a moeda não se sustenta e a economia se descompassa.
O Brasil é típico país, em que o "deficit" público é derivado
desta "auto-complacência" dos agentes governamentais da União, dos
Estados e Municípios, que se auto-outorgam toda a espécie de privilégios e,
apesar de achacarem a sociedade com a mais alta carga tributária dos países
emergentes --equivalente a dos países mais desenvolvidos (EUA e Japão)-- não
conseguiram segurar o "deficit" público da artificial Federação
brasileira, composta de 5.500 entidades, à falta de coragem para combatê-lo.
O desmoronamento do real, cujo modelo já se mostrara obsoleto em 1996,
conforme muitos analistas denunciavam, inclusive eu (Uma visão do mundo
contemporâneo, Ed. Pioneira), e que foi mantido por uma teimosia
irracional, desventrou o fato de que o "deficit" cresceu em face de
equívoco governamental de manter a moeda sobrevalorizada, juros elevadíssimos e
carga tributária cumulativa favorável a produtos estrangeiros (COFINS, PIS,
CPMF), que terminou por tirar competitividade a produtos nacionais, fora e
dentro do país, sucateando o parque empresarial e gerando recessão, desemprego
e uma economia devastada atrás.
As medidas extremas de flutuação do câmbio, tomadas com muito atraso pelo
governo, não estão permitindo que o náufrago respire, pois o fulcro central dos
problemas econômicos não foi atingido.
A crise, que decorre, em grande parte, do modelo constitucional que
instituiu uma Federação maior que o PIB e outorgou benefícios maiores aos
servidores públicos e às estruturas governamentais que à sociedade, de rigor,
só poderá ser combatida se a realidade for enfrentada como deve ser, ou seja,
com o encolhimento da Federação brasileira, pois não há mais sentido em a
sociedade trabalhar para sustentar privilégios de governantes.
Nos Estados Unidos, por exemplo, em todos os municípios pequenos, seus
representantes de Conselho não são remunerados e, às vezes, nem o próprio
prefeito. No Brasil, qualquer vereador de qualquer um dos 5.500 municípios é
remunerado, razão pela qual os 250 bilhões de reais que o país ofertou, no ano
passado, de tributos, foram em mais de 60% destinados a pagar vencimentos de
ativos e inativos das 5.500 "repúblicas" da Federação brasileira,
única no mundo a outorgar "status" federativo aos municípios.
Grande parte dos Estados brasileiros deveriam ser territórios federais,
pois não se auto-sustentam, nem têm a mínima condição de se auto-sustentarem,
razão pela qual o "custo político" de suas estruturas é suportado por
toda a nação, sem que prestem serviços públicos de qualidade. Por força desta
estrutura corporativista que leva o povo brasileiro a trabalhar para sustentar
políticos e servidores, a carga tributária brasileira, de mais de 30% do PIB, é
insuficiente para que o Estado preste o mínimo de serviços públicos adequados.
Temos carga tributária de EUA ou Japão e serviços públicos de Ruanda ou de
Etiópia.
De rigor, não há plano de estabilização possível, num país em que toda a
sociedade trabalha apenas para privilegiar os detentores do poder. E a
artificialidade do "Plano Real", a partir de 1996, ditou o custo para
a Nação, com juros elevadíssimos para manter uma insustentável âncora cambial,
que liquidou com a União, Estados e Municípios, mas, principalmente, com
aqueles que garantem a Federação, que são os empresários e os trabalhadores.
À evidência, as medidas corretivas na procela são tentativas sem
horizontes definidos, pois não se visualiza a extensão do seu sucesso. São
apenas medidas para tentar tirar o barco da tormenta. O barco está adernado por
esta Federação maior do que o PIB e pelo "deficit" público das 5.500
entidades federativas, causado por um "pacto federativo" desfigurado.
Se não começarmos, seriamente, a discutir o tamanho da Federação, dificilmente
a nação vencerá o "deficit", que quanto mais for combatido pelo
aumento de receitas e não pelo corte de despesas, mais tempo permanecerá.
Desde o início, todos os que estudam a Constituição de 1988 têm procurado
mostrar que a Federação Assimétrica brasileira seria o grande fator dos
descompassos nacionais, o que, infelizmente, 10 anos após, tem sido confirmado.
Creio que nunca foi tão importante estudar o modelo federativo adotado, que
pode ser alterado, até porque a cláusula pétrea da lei de 1988 é a proibição de
"abolir" o sistema federativo (art. 60, § 4º, inciso I) e não o de
"mudá-lo", se a mudança for para o bem do país e para que a Nação
comece a crescer, pelo fortalecimento da sociedade, e não das estruturas
esclerosadas do poder.
* Advogado em São Paulo (SP), professor emérito de
Direito Econômico da Universidade Mackenzie.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1930>. Acesso em: 25 jul. 2006.