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Um
modelo econômico ultrapassado
Ives Gandra da Silva
Martins *
O sucesso inicial do Plano Real deveu-se à tríplice conjugação de fatores
econômicos bem conduzidos, os quais permitiram, pela primeira vez, em décadas
de tentativas frustradas, reduzir a inflação a quase nenhuma expressão, a
saber: sensível redução do "déficit" público em seu conceito nominal,
em fins de 1993, acumulação de reservas cambiais expressivas e adoção de um
único indexador na economia.
Com a redução do "déficit" público, deixou de haver pressões
inflacionárias por parte do Tesouro sobre o valor da moeda. Com a manutenção de
reservas elevadas, pôde-se enfrentar ataques especulativos ao plano de
estabilização, e com eliminação de uma infinidade de índices e a adoção quase
que total de um único indexador (URV) foi possível, em um único dia,
transformando-se a moeda de conta (URV) em moeda de pagamento (Real),
liquidar-se com a inflação.
A atual equipe econômica agiu com maestria nesta transformação.
A partir desta revolução, todavia, não estou convencido de que a
habilidade foi a mesma.
De início, permitiu, a equipe econômica, que o "déficit"
público voltasse, principalmente à luz de uma política autofágica, de aumentar
o endividamento interno através de juros elevadíssimos. Conseguiu implodir as
finanças públicas e a economia privada, com a sextuplicação da dívida interna e
o sucateamento de parcela considerável do parque empresarial brasileiro.
Justificou o governo que, sem juros elevadíssimos, não atrairia
"especuladores" para o país a fim de manter reservas elevadas. O erro
fundamental, todavia, residiu na "calibragem" de tais juros,
muitíssimo mais elevados do que aqueles oferecidos pelos demais países
emergentes, como Argentina e México. Estou convencido de que juros duas ou três
vezes maiores do que os do mercado internacional já seriam suficientes, naquele
momento, para atrair investimentos, talvez de natureza menos especulativa, pela
própria expressão de uma economia que saía de um processo de alta inflação, sem
estar desorganizada. O Brasil não teve um processo
"hiperinflacionário", pois sua economia nunca se desorganizou, mas
apenas de elevadíssima inflação.
O segundo erro foi cometido pelo Ministro Ciro Gomes que, pretendendo
manter os preços baixos, reduziu, sem qualquer negociação com outros países, as
alíquotas de importação de 13.000 produtos, destruindo considerável parcela de
indústrias nacionais, que não suportaram uma concorrência privilegiada, em que
os produtos estrangeiros chegavam com carga tributária inferior, juros menores
e câmbio favorável pela supervalorização do Real.
A supervalorização do Real foi outro erro. O Governo deixou, por este
erro de calibragem de juros e de câmbio, que o dólar, que valia um real em
1/7/94, despencasse, tornando impossível à empresa autenticamente nacional
enfrentar o duplo problema de juros extorsivos e câmbio sobrevalorizado. Basta
dizer que, até hoje, contra uma inflação de 65% no período, o câmbio se
desvalorizou apenas 18% desde 1/7/94, em clara demonstração de que algo de
errado permanece na matemática governamental.
Por fim, o Governo, com exceção da emenda da reeleição, não se empenhou
nas reformas administrativas, previdenciária e tributária, esta sem um projeto
final definido, embora eu considere boa a proposta apenas delineada por Pedro
Parente e Everardo Maciel.
Acresce-se que, para cobrir o crescente "déficit" público,
gerado por uma rolagem da dívida de incrível magnitude, foi obrigado a elevar
consideravelmente os tributos, passando o Brasil a ter a mais alta carga
tributária dos países emergentes, a qual, se considerada a capacidade
contributiva do povo em relação ao nível de prestação de serviços, representa a
mais alta carga tributária do mundo.
O governo, portanto, ficou prisioneiro de sua própria armadilha e, no
momento em que a crise mundial estourou, estava mais vulnerável que os demais
países, pela inevitável desnacionalização de seu parque empresarial, pela
brutal perda de competitividade da indústria brasileira, pelo fantástico
endividamento externo e interno, pelo descomunal "deficit" das contas
externas e pela nenhuma capacidade de enfrentar pelos próprios meios a crise,
mais produzida dentro do país que fora dele.
Não houve, portanto, um ataque de "especuladores" contra o Real
--os especuladores que tanto foram atraídos pela política governamental para o
país-- mas uma defesa desses especuladores contra o Real, pela própria
fragilidade de um modelo monetário duvidoso, de um modelo cambial
desestruturado, da inexistência de uma política empresarial capaz de recolocar
o país na trilha do desenvolvimento.
À evidência, a fragilidade do modelo econômico brasileiro provocou pânico
no mundo.
Uma eventual desvalorização do Real em 15%, como desejado por muitos
economistas, arrebentaria a América Latina, embora recolocasse o país em
condições de competir dentro e fora de seu mercado.
Em face de qualquer crise monetária e cambial, têm os governos 3
caminhos: desvalorização cambial, aumento de tributos, aumento de juros. O
primeiro, se tomadas medidas anti-inflacionárias, como redução da carga
tributária condicionada, para manutenção de preços baixos e reativação da
economia, não onera o Governo, nem a indústria, salvo exceções, mas apenas o
setor financeiro que, todavia, corre os riscos inerentes ao fato de ser
trocador de dinheiro. A elevação dos juros prejudicam a indústria e o Governo e
a elevação dos tributos apenas o segmento produtivo.
O Brasil escolheu o pior dos regimes, por aumentar juros e tributos, no
atual ajuste, mantendo estável o câmbio, notoriamente valorizado, o que vale
dizer, passou a tirar maior competitividade do produtor nacional, facilitando a
vida dos produtores estrangeiros, não só no mercado interno, como no externo.
Pior, escolheu para aumentar a imposição fiscal os dois mais retrógrados
tributos do sistema, pois incidem em cascata. Aqueles que só oneram o produtor
brasileiro, criando notável descompetitividade perante os produtores externos.
Em outras palavras, o aumento da CPMF e da COFINS, que incidem em cascata
"n" vezes sobre a produção interna e uma vez apenas sobre os produtos
importados, auxilia, ainda mais, as indústrias estrangeiras que exportam para o
país, com juros civilizados --e no Mercosul sem tarifas aduaneiras, fora a
lista de exceção-- prejudicando a nacional.
Como se percebe, escolheu para sair da crise um modelo que, a médio e
longo prazos, é extremamente negativo para o país, muito embora agrade todas as
nações que vendem para o Brasil e agrade ao FMI que, enquanto o "câmbio
for estável", vê os problemas da América Latina estabilizados, por
garantir-lhe o mercado brasileiro. Os produtos nacionais perdem
competitividade, com esta prática, mas vivem a ilusão de que a circulação do
dinheiro emprestado dos grandes países gera estabilidade.
Neste quadro, enquanto os juros do mundo inteiro despencam, o Brasil
promete juros de 42% ao ano em 1998, 25% para 1999, 20% para 2000 e 15% para
2001, isto é, promete manter taxas 5, 4 e 3 vezes superiores ao juros
internacionais nos próximos 3 anos, a serem suportados exclusivamente pelos
produtores nacionais e pelo Tesouro, ofertando fantástico benefício a todos
aqueles que aplicaram no mercado tais recursos. E, enquanto todos os países em
crise reduzem sua carga tributária para salvar a economia, o Brasil aumenta
para gerar recessão.
O Japão, por exemplo, desvalorizou sua moeda mais do que o Real, apesar
de ter inflação menor, no período.
Pergunta-se: haveria possibilidade de um outro modelo? Estou convencido
de que sim. O fortalecimento do empresariado nacional, com possibilidade de
reconquistar mercados internacionais, embora retirando mercado dos países
desenvolvidos, é o melhor caminho para a estabilidade futura do país e do
mundo.
Manter um modelo que aposta na recessão para manter estável uma moeda
sobrevalorizada, dentro de uma Federação que retira o equivalente a 33% de
tributos do PIB para não prestar serviços públicos, enquanto a Argentina retira
15%, o México 17%, o Paraguay 11%, é continuar apostando em um modelo duvidoso
que torna a Federação mais endividada, as contas externas mais vulneráveis, o
empresariado nacional mais fragilizado, o desemprego mais acentuado e as
perspectivas de recuperação mais distantes, pois, uma vez mais, o Governo, que
fracassou em todas as tentativas de reduzir suas despesas, chama esta sociedade
combalida a pagar a conta de seus fracassos orçamentários.
Não estou convencido de que uma desvalorização viesse a enfraquecer o
país, nem que gerasse impacto inflacionário se se reduzissem os tributos
circulatórios, condicionada a redução ao seu repasse para o consumidor,
mantendo-se preços abaixo dos atuais.
A adoção exclusiva de uma contribuição de intervenção no domínio
econômico sobre produtos importados, para compensar a carga tributária
cumulativa que o produtor brasileiro paga a mais do que o estrangeiro, geraria
receitas sem provocar problemas consideráveis de competitividade do produto
brasileiro. E nem seria contrária a OMC, visto que, desde os tempos do GATT, é
proibido que haja tributos incidentes sobre os produtos estrangeiros superiores
aos incidentes sobre os produtos nacionais. Ora, no caso, a recíproca é também
verdadeira. Não é possível continuar com este protecionismo às avessas, em que
CPMF, PIS, COFINS atingem incomensuravelmente mais o produto nacional que o
estrangeiro.
Creio que o modelo adotado faliu. Há necessidade de se dizer que o rei
está nu. E ainda há tempo para que revertamos o quadro, que se bem negociado,
não teria, a meu ver, retaliações maiores das instituições internacionais.
Antes, se bem explicado, mostraria que o Brasil está garantindo o melhor, a
longo prazo, com uma economia em recuperação, do que com uma economia ainda
mais destinada ao sucateamento, a partir do ajuste fiscal.
A matéria merece, pois, reflexão.
* Advogado em São Paulo (SP), professor emérito de
Direito Econômico da Universidade Mackenzie.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1927>. Acesso em: 25 jul. 2006.