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Da organização dos poderes

 

Reis Friede

 

Mestre e Doutor em Direito Público. É Magistrado Federal e autor de inúmeras obras jurídicas, dentre as quais “Lições objetivas de direito constitucional”, publicada pela Editora Saraiva.

 

A expressão poder, em sua concepção político-jurídica, pode adquirir os mais variados significados, que vão desde a “capacidade para alterar condutas” (na tradução de efetiva aptidão para determinar, influenciar, modificar ou manter algo ou alguma coisa), até o sinérgico “exercício da força” (no sentido de disposição de autoridade ou mesmo de simples robustez, vigor ou potência), passando pela noção de “direito de deliberar, agir ou mandar”. Mesmo no sentido restritivo, de feição constitucional, o termo em questão também apresenta pluralidade de traduções, tais como: soberania (art. 1º, parágrafo único, da CF/88), órgão (art. 2.º da CF/88) ou função (arts. 44, 76 e 92, todos da CF/88).

Todavia, independente de qualquer discussão de cunho semântico, o significado próprio e específico do vocábulo que mais interessa ao estudo do Direito Constitucional passa pela noção básica de poder político na qualidade de insuperável exercício da capacidade de alternar ou modificar condutas dos integrantes da comunidade para o seu benefício último. Neste particular aspecto, não só o poder é uno e indivisível, como ainda é inerente ao Estado (como Nação política e juridicamente organizada ainda que seu exercício, no âmbito estatal, possa ser eventualmente dividido em funções essenciais, numa autêntica tríade funcional relativa ao exercício final do poder.

(Muito embora reste indiscutível que o poder político, inerente ao Estado, seja uno e indivisível – até porque traduz, em sua concepção mais ampla (Constituinte), a expressão máxima da soberania nacional monolítica –, é  certo que o exercício deste mesmo poder, por outro lado, não deve (embora, eventualmente, possa) ser efetivado por um único órgão (ou, muito menos, por uma única pessoa), evitando, neste sentido, que o “exercício último da capacidade de alterar ou modificar condutas dos integrantes da comunidade (povo)” nunca deixe de ser realizado com o único e exclusivo intuito de beneficiar estes que se constituem, em essência, os verdadeiros titulares (ainda que não exercentes) do próprio poder originário.

Neste diapasão, influenciados pelas teses de Montesquieu publicadas em 1748 (O Espírito das Leis), foi concebida a noção dos freios e contrapesos ao exercício do poder, permitindo, mais tarde, a concepção tríade do exercício do poder, por meio da criação das funções executiva, legislativa e judiciária, de forma independente e através de órgãos próprios que, pelas suas dimensões, acabaram mais tarde conhecidas pela denominação clássica (porém pouco técnica) de Poderes Constituídos, permitindo, neste aspecto, reservar a expressão órgão (inicialmente catalisadora da noção básica das três funções elementares do exercício funcional do poder) para a tradução das partes e divisões inerentes a cada um dos “poderes estatais”, tais como o Senado Federal e a Câmara dos Deputados (no caso do Legislativo), os diversos juízos e tribunais (no caso do Judiciário) e os vários órgãos de assistência e de assessoramento da Presidência da República (no caso do Executivo).)

Tríade Funcional do Poder

Essencialmente, a idéia básica da divisão do exercício do poder nasceu com a obra de Montesquieu (O Espírito das Leis) como uma necessidade intrínseca de impedir a tirania típica (por parte dos governantes) que caracterizou, sobremaneira, os Estados absolutistas do passado.

A crença, em termos simplificados, era de que a concepção fundamental da partição do poder, em forma tríade, permitiria que as três funções básicas do poder (executiva, legislativa e judiciária), em sua particular interação, operassem como autênticos sistemas de freios e contrapesos, impedindo, pelo menos em tese, que o soberano, ainda que legitimamente eleito, se corrompesse, posteriormente – pela ausência de mecanismos de restrição ao exercício do poder –, desviando-se dos rumos pré-estabelecidos em sua inicial empreitada política.

Muito embora o ideal teórico, em alguns casos, não tenha sido atingido na prática política (e, em outras tantas, a concepção basilar da separação funcional do exercício do poder apenas funcionou (ou funciona) em termos relativos), a verdade é que a concepção histórica de Montesquieu não só restou consagrada pela doutrina, como contaminou a quase-unanimidade dos Estados contemporâneos da atualidade, forjando uma complexa teoria política da separação dos poderes, em forma triangular, muito embora alguns autores tenham ousado sustentar, no passado, que a função judiciária seria apenas um apêndice da função executiva que, neste sentido, faria par exclusivo com a função legislativa.

(No que concerne ao Estado brasileiro, deve ser consignado que o princípio da separação dos poderes (em essência, divisão do exercício do poder (posto que o poder, inerente ao Estado, é uno e indivisível)) se encontra consignado desde a edição da primeira Constituição (de 1824), não obstante, naquela época do Império, sob a égide do chamado Poder Moderador.

Posteriormente, com o advento da República, todas as demais Constituições brasileiras (1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) expressamente registraram a concepção tríade do exercício do poder, aproximadamente de forma análoga à atual disposição constitucional ínsita no art. 2.º da CF/88, verbis:

“São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Deve ser observado que o art. 60, § 4.º, III, da CF/88 inclusive enumera como cláusula pétrea constitucional o princípio da separação dos poderes, afirmando que este é insuscetível de ser objeto de reforma constitucional (por emenda ou revisão), verbis:

“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(...)

a separação dos Poderes (...)”.

Michel Temer ensina que a palavra poder pode adquirir vários significados: soberania (art. 1.º, parágrafo único), órgão (art. 2.º) ou função (arts. 44, 76 e 92). Além dessas definições, é possível entender poder como ‘capacidade para alterar condutas’. Assim, tem poder quem tem aptidão para determinar, modificar, manter algo ou alguma coisa, etc. Política nada mais é do que o exercício do poder. Poder político é o  exercício da capacidade de modificar condutas dos integrantes da coletividade, a bem desta.

O primeiro poder que interessa ao estudo jurídico é o de criar um Estado (Poder Constituinte). Esse ente criado terá um conjunto de decisões políticas básicas (a Constituição). Esta decisão fundamental estabelecerá uma superestrutura (o Estado), a quem competirá realizar materialmente o que foi decidido. Assim, se o constituinte determinou, na Constituição, que se assegure educação e saúde, caberá ao Estado providenciar escolas e hospitais, além da contratação de professores e médicos, etc.

Vê-se, pois, que o poder é um só, é uno. Este poder, contudo, se triparte para exercer melhor as três funções essenciais em qualquer grupo social: estabelecer as regras da comunidade, administrá-la e decidir os conflitos em seu seio. São as três funções básicas, que são assumidas por três órgãos descomunalmente grandes, que são chamados (ainda que de forma atécnica) de Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Cada um dos três poderes exerce precípua e prioritariamente uma função e, de modo secundário, as duas demais.

A tripartição do poder e o exercício das três funções pelos três poderes, só variando a especialização e preponderância, serve como forma de limitar cada um deles. Nada mais demonstrado de que o poder corrompe, de que o detentor do poder tende a abusar dele. Assim, o exercício parcelado e mutuamente controlado é a grande mola de funcionamento do Estado moderno. A esse sistema se designou checks and balances (“freios e contrapesos”). O ideal é que os Poderes atuem em conjunto e harmonicamente, a bem da sociedade. A independência dos Poderes deve ser assegurada para que possa ser satisfatório o sistema de freios e contrapesos. Essa independência se manifesta primeiro através da consciência e espírito público dos agentes políticos, da administração de cada Poder por si próprio e, de modo cabal, pela autonomia orçamentária. O equilíbrio e separação entre os Poderes também se garante pela definição constitucional das funções de cada um, bem como das prerrogativas de cada um de seus agentes políticos.

Por estas razões, só se admite a delegação de atribuições quando expressa na Constituição, vedado o exercício simultâneo de funções de Poderes distintos”. (Sílvio Motta e William Douglas, Concursos Públicos, Direito Constitucional – Teoria e 580 Questões, Oficina do Autor, Rio de Janeiro,  1996, ps. 191/192) (acréscimo nosso)

Diagrama 1: Tríade Funcional do Poder

Executivo

Administração Pública

 

 

 

 

Legislativo

criação do direito

positivo infraconstitucional

 

Judiciário

prestação da tutela jurisdicional com a correspondente aplicação e interpretação do direito positivo constitucional (produzido pelo Poder Constituinte) e infraconstitucional (produzido pelo Legislativo)


Funções Principais e Secundárias

A clássica concepção tríade, em sua operacionalização efetiva, em que o exercício do poder estatal é dividido em três funções básicas (executiva, legislativa e judiciária), também merece algumas considerações, posto que cada um dos Poderes Estatais (em essência, órgãos do poder) não só exerce a atividade fundamental relativa a sua função, como ainda exerce a atividade de auto-administração e, em caráter secundário ou complementar, as duas outras funções relativas aos demais Poderes Políticos.

Dessa forma, incumbe ao Executivo, como função principal, por exemplo, a administração da coisa pública, ao passo que, como função secundária, julgar (através, dentre outros, do Tribunal Marítimo, do Conselho de Contribuintes etc.) e mesmo legislar (através dos chamados atos administrativos normativos, como são exemplos os decretos presidenciais). De igual modo, incumbe ao Legislativo, como função principal, criar o direito positivo infraconstitucional, e, como funções secundárias, julgar (através, por exemplo, do Tribunal de Contas) e administrar (contratando diretamente pessoal, procedendo a licitações etc.). Finalmente, no âmbito do Judiciário, incumbe a este Poder, como função principal, a aplicação da lei (julgar), e, como funções secundárias, legislar (criação dos regimentos internos dos tribunais, por exemplo) e administrar (contratando pessoal, procedendo a licitações etc.).

Retirado de: www.saraivajur.com.br