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Um discurso sobre a história do direito no Brasil

 

Renan Aguiar

 

Mestre em Teoria do Estado e Professor de Políticas Públicas da PUC/RJ

 

A História do Direito no ensino jurídico brasileiro não gozou de períodos estáveis que proporcionassem o amadurecimento da historiografia jurídica; sua ausência nos currículos dos cursos de Direito deu-se por negligências, preconceitos e até mesmo incompreensão dos legisladores quanto ao papel dessa disciplina para a formação do bacharel. Para uma compreensão do percurso da História do Direito no Brasil faz-se necessária a leitura de documentos históricos, de obras consagradas ao ensino jurídico, assim como de textos sobre a História do Direito e História do Brasil 1. Com características de uma breve introdução, o texto que segue abordará a inclusão e a exclusão da História do Direito dos currículos jurídicos, indicando suas possíveis conseqüências para o debate historiográfico-jurídico brasileiro e buscará, ainda, sucintamente traçar o quadro atual da História do Direito no Brasil.

No Império, antes da criação dos cursos jurídicos no Brasil, motivada pelo projeto de Lei da autoria dos deputados Januário da Cunha Barbosa e José Cardoso Pereira de Melo, de 5 de julho de 1826, a Câmara dos Deputados discutia a inclusão de História da Legislação Nacional no currículo dos cursos jurídicos brasileiros. Os debates em torno da História do Direito dividiram-se, então, em dois grupos: os contrários à inserção da disciplina; e os favoráveis. Os argumentos que se opunham à disciplina histórica concentraram-se na inexistência de uma História legislativa nacional, o que, necessariamente, levaria os alunos ao estudo das legislações adotadas pela antiga metrópole, de tal modo que, para alguns deputados, como Almeida de Albuquerque e Custódio Dias, isso proporcionaria aos estudantes uma educação calcada em valores e institutos estrangeiros (portugueses), prestando, assim, um desserviço à legitimação do Direito brasileiro e à instituição da nação brasileira. Os argumentos favoráveis à inclusão da disciplina histórica fundaram-se na vigência do Direito de origem portuguesa, recepcionado pela Constituição, e tiveram em Lino Coutinho, Sousa França e Clemente Pereira fiéis defensores2. A corrente contrária à História Legislativa, vitoriosa no debate parlamentar, impôs a primeira derrota da História do Direito, excluindo, assim, a disciplina histórica dos currículos dos cursos de Direito que viriam a ser criados em Olinda e São Paulo, conforme o estatuto legal de 11 de agosto de 1827.

No início do período republicano, objetivando a criação de um nacionalismo jurídico que rompesse com as bases do Direito Português e Eclesiástico3, a disciplina de História do Direito Nacional é introduzida nos currículos acadêmicos pela Reforma Benjamin Constant (Decreto republicano n. 1.232, de 2-1-1891). Acolhida pela Lei n. 314, de 30 de outubro de 1895, no que tange ao ensino da História do Direito Nacional, a Reforma Benjamin Constant sobrevive até 1901, quando entra em vigor o Código dos Institutos Oficiais de Ensino Superior, que retira da grade curricular dos cursos oficiais a História do Direito Nacional, sendo mantida tal ausência pela Reforma Rivadávia Corrêa (Decreto n. 8.659, de 5-4-1911), assim como pela Reforma Carlos Maximiliano (1915) e Reforma Francisco Campos (1931). Em 1962, de forma mais flexível, o Parecer n. 215 da Comissão de Ensino Superior e seus sucessores: Resolução n. 3 do CFE (1972) e a Portaria n. 1.886/94, que não incluíram a História do Direito em seus currículos mínimos. 

O desprestígio da História do Direito nos currículos jurídicos, cujo estudo obrigatório se resumiu por pouco mais de 10 anos, e o desinteresse dos historiadores pelo tema acabaram por criar uma lacuna nas reflexões jurídicas. As publicações sobre História do Direito são raras, podendo ser enumeradas sem o risco de causar injustiças. O ambiente acadêmico não se desenvolveu, e a História do Direito sobrevive com poucos espaços para o debate científico. O ambiente tende a tornar-se mais desolador se incluirmos ao desprestígio o processo de revolução que a historiografia vive desde 1929, quando o estudo da História passou, a partir da fundação da Escola dos Annales, na França, por profunda reformulação. Até então se fazia narrativa de fatos políticos e militares, período em que os historiadores começam a introduzir no estudo da História métodos e objetos das ciências sociais, alterando radicalmente o ofício de historiografar. As narrativas e descrições legais, predominantes nas obras de História do Direito, para o historiador herdeiro dos annales, são desprovidas de sentido. A História não deveria apenas narrar, mas propor compreensões, assim como não poderia preocupar-se exclusivamente com os grandes acontecimentos, mas com as práticas sociais, com as mentalidades de uma época, ou seja, com um conjunto infinito de objetos que poderiam ser abordados por metodologias diversas. Assim, o Direito já carente de uma narrativa legislativa, diante da Nova História, torna-se órfão.

O quadro desolador a que está submetida a historiografia jurídica brasileira, no entanto, tende a modificar-se. A obrigatoriedade do estudo de Filosofia, Sociologia, Economia e Ciência Política fornece ao estudante o instrumental crítico para a compreensão da História, permitindo a análise qualificada exigida pela historiografia contemporânea. Se as disciplinas propedêuticas, acima relacionadas, tradicionalmente ocupam-se de teorias gerais, cabe à História do Direito o fornecimento dos objetos de estudo contextualizados historicamente, fornecendo uma compreensão dos problemas sociais, econômicos e políticos que envolvem o fenômeno jurídico brasileiro, através de suas continuidades e rupturas.

As crescentes inclusões da Disciplina de História do Direito nos currículos jurídicos têm provocado aumento significativo das publicações e debates, proporcionando o nascimento de um ambiente acadêmico propício ao desenvolvimento das pesquisas histórico-jurídicas, além de contribuir, numa época em que as humanidades possuem a real dimensão de sua historicidade, para o preenchimento das lacunas na formação dos juristas. É, portanto, este o quadro atual da historiografia jurídica nacional: construção de um saber imerso na desconstrução dos dogmas do passado.


1 A clássica obra de Venâncio Filho, Das arcadas ao liberalismo, e o excelente trabalho de Aurélio Wander Bastos, Ensino jurídico no Brasil, constituem as duas principais obras sobre o ensino do Direito no Brasil e devem ser consultadas por todos que desejem um estudo completo sobre o percurso do ensino jurídico brasileiro. Destaque, também, no campo da História do Direito brasileiro, deve ser oferecido para Antônio Carlos Wolkmer em História do Direito no Brasil, obra de referência para os estudos de História do Direito. No campo da História e das ciências sociais os clássicos Raízes do Brasil e Os donos do poder; o primeiro, de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, e o segundo, de Raymundo Faoro, são trabalhos obrigatórios a todos que almejem compreender nossa História.


2 Cf. Aurélio Wander Bastos, O ensino jurídico no Brasil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 26-7.


3 Cf. Aurélio Wander Bastos, op. cit., p. 138.

 

 

Retirado de: www.saraivajur.com.br