Informática
Jurídica, Direito e Tecnologia |
A TÉCNICA E OS RISCOS
DA MODERNIDADE
Franz
Josef Brüseke
Professor do
Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina.
Referência:
BRÜSEKE, Franz
Josef. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2001. 216 p.
Resumo
elaborado pelo Grupo Linjur
Capítulo 1 - Liberdade e risco
Desde o momento em que o homem se
levantou para enxergar melhor os perigos do horizonte e as chances que ele
escondia foi atraído a tentar ultrapassar os limites na direção do reino da
liberdade.
Liberdade de quê (liberdade política)
A liberdade política é a mais refletida e
possui hoje um status amplamente reconhecido e até juridicamente definido. O
próprio conceito de cidadania é, nas sociedades democráticas, impensável sem o
exercício permanente da liberdade política. Para que a liberdade não sirva de
base de arbitrariedades ou dominação de uns sobre os outros ela deve ser gozada
por toda a sociedade. A liberdade política é a liberdade dos outros, e a minha
liberdade afirma-se no processo da realização da liberdade de todos.
Liberdade para quê ? (decisória e
auto-realizadora)
Na alta modernidade o que aflige o homem
é a falta de critérios para definir os rumos da própria vida. Mesmo possuindo
liberdade de escolha, perderam-se as certezas religiosas e as perspectivas
históricas. Na medida em que a fé em uma instância transcendental diluiu-se, a
própria liberdade tornou-se um problema, pois a mera decisão para este ou
aquele caminho não resolve de antemão todos os problemas.
Liberdade Anômica
A liberdade anômica pode até ganhar uma
conotação negativa na medida em que pode ser definida como a ausência de um
compromisso social antes do ato que religa o indivíduo com sistemas de valores.
A liberdade anômica deixa o homem descoberto da moral social, de rituais e
hábitos, de costumes e tradições. Ela faz do indivíduo algo incalculável para
os outros e para si mesmo.
Desencaixe
Segundo Anthony Giddens, nas sociedades
pré-modernas espaço e tempo estão inseparavelmente ligados. Com a introdução do
relógio o lugar sofre influência de diversos fenômenos e o tempo torna-se
vazio, isto é, não é mais o ritmo das estações do ano e as práticas a elas
ligadas que dominam a sociedade e sim o tempo linear medido mecanicamente. A
separação de espaço e tempo é a precondição da dinâmica extrema da modernidade,
com instituições cuja atuação abrange vastas distâncias e depende de diversos
mecanismos de coordenação temporal e espacial novos. Daí Giddens explica seu
problema de desencaixe: "Deslocamento das relações sociais de contextos
locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de
tempo e espaço".
Confiança e risco
A sociedade moderna complexifica-se e
cria mais sistemas abstratos - por causa dos distanciamentos temporais
espaciais - que exigem confiança dos cidadãos, os quais ou confiam, ou sabem do
risco da confiança, ou não confiam.
A consciência infeliz
Os que confiam não sofrem com a
inquietude da consciência do risco, alimentam-se do desejo de excluir o
temível.
Artefatos e contingência
Exemplo das mudanças no mundo e na vida do
homem são a acumulação crescente de artefatos e as novas realidades por eles
criadas.O trabalho faz com que eles circulem pelo espaço e ganhem um sentido
funcional.
A contingência da ação social
Devido a reflexitividade da modernização,
ela se descobriu como um contingente, despertando surto para uns e esperança
para outros. O futuro está aberto e a sociedade poderia ser diferente. O homem
se vê com a oportunidade de fazer a sua história com as próprias mãos. “Tudo é
necessariamente como é, mas poderia ser diferente". Porém assumindo essa
responsabilidade pela própria ação, o homem também enfrenta a possibilidade, o
risco de um fracasso dela. O efeito não intencionado torna-se conseqüência da
ação. Ainda, uma decisão tomada não influi somente na trajetória do indivíduo,
mas repercute também sobre o percurso da vida dos outros.
Capítulo 2 - Risco social, risco
ambiental, risco individual
Segundo Ulrich Beck, a sociedade
industrial entrou em uma fase de modernização reflexiva, tornando-se tema para
si mesma. O próprio processo de modernização transformou-se em um problema por
causa das instabilidades e riscos que as novidades tecnológicas e
organizacionais, introduzidas na sociedade de forma não refletida, provocam.
Estamos assistindo ao surgimento de uma sociedade que produz e distribui, de
forma desigual, os riscos ambientais e sociais.
Beck diferencia riscos individuais de
riscos globais. Os riscos individuais existiram sempre, já o risco global é um
risco da civilização. O mundo encontra-se hoje em uma disposição ao perigo que
o atinge como um todo, e sua grandeza é percebida por poucos, por exemplo, a
ameaça nuclear.
Os riscos da modernização tiveram início
com o surgimento da sociedade moderna, que aumentou os riscos à saúde, os
riscos da qualificação, o risco de empobrecimento; causados pela empresa
capitalista.
Segundo Beck, os riscos relativizam as
posições de classe. Ricos e pobres podem sofrer com a poluição do ar, chuva
ácida. , produzem um efeito bumerangue que recai sobre grupos até então
protegidos contra os males da industrialização. Ele também destaca o papel da
consciência na sociedade de risco e exige da sociologia uma contribuição para
uma teoria do surgimento e da divulgação da consciência de risco. Além disso, coloca
a sociedade de risco como catastrófica, onde o estado de emergência ameaça
tornar-se o estado normal.
A modernização é reflexiva num duplo
sentido, tanto persiste na auto-aplicação dos seus próprios princípios e suas
próprias lógicas, como também por causa da reflexão crítica e científica que a
própria modernidade procura hoje como seu objeto.
O que é um risco?
Não existe nenhum risco sem a valorização
positiva de algo, sem algo que alguém possa perder. O risco é um acontecimento futuro,
um momento esperado ou temido no qual essa perda pode acontecer.
O risco percebido torna-se claramente um
perigo, porém, o perigo tem algo claramente ameaçador que o risco nem sempre
possui. Enfrentar o perigo foi sempre considerado algo que honra o homem. A
valorização da pessoa capaz de enfrentar o perigo contrasta com a estima
negativa que acompanha aquela que procura o risco. Arriscar significa brincar
com o acaso. O azar ou a sorte acontece independentemente das minhas virtudes.
Todo mundo pode ter sorte, mas nem todo mundo mostra coragem em uma situação
perigosa.
Pelo temor que teme
Um erro de Beck é que em vez de assumir o
inevitável, projeta o temível na sociedade. Surge então o conceito de sociedade
de risco, que absorve todos os temores individuais e interpreta
exclusivamente como disposição social o que, na verdade, pelo menos é também
uma disposição da existência individual.
Risco e perigo
Niklas Luhmann afirma que: “Falamos sobre
os riscos e perigos em relação aos possíveis danos. Os dois conceitos podem ser
usados para denominar qualquer tipo de desvantagem”. Ele propõe uma distinção
entre risco e perigo: “Se possíveis danos estão sendo interpretados como
conseqüências da própria decisão, tratam-se de riscos (...) Não obstante, falamos
de perigos quando alguém relaciona os próprios danos com causas fora do próprio
controle”.
“A sociedade de risco contém uma
tendência para um totalitarismo legítimo da defesa contra perigos...” defende
Beck. É a vinculação do temor com as profundezas do nosso ser que nos faz
vulneráveis a projeções políticas que prometem afastar o temível.
A expectativa de perda
O risco refere-se sempre a alguma coisa
ou a um estado de coisas que se pode perder. Um risco constitui-se na base de
uma expectativa e da possibilidade de que ela se realize. Inclui a chance da
catástrofe e o fato de que ela pode não se realizar, contrariando as
expectativas.
Self-defeating prophecies
Self-defeating prophecies (profecias que se auto-destroem): o
ambientalismo não teria sentido político se suas terríveis profecias se
concretizassem. Ele ganha a sua força do risco, da chance da catástrofe e,
também da chance do movimento social que tente evitar o que os seus líderes
prognosticam. A chance da catástrofe abre a chance da ação, porém, cada ação
social corre o risco de causar efeitos não intencionados.
Utopia e risco
A consciência do risco lembra o
pensamento utópico, que também se volta contra um estado futuro e as suas possibilidades,
interpretadas como positivas. A utopia não tem noção da possibilidade do seu
próprio fracasso. A consciência do risco finalmente destruiu o utopismo dos
movimentos sociais do século XIX.
Estratégia de minimização de riscos
Grande parte da soma do trabalho social é
despendida para minimizar o risco de perder algo. A estratégia de minimizar os
riscos é algo extremamente defensivo, interessando ao status quo e à sua
conservação. Em geral, somente interessa o risco que o próprio grupo ou pessoa
sofre, sem preocupação com o risco dos outros. Todavia, existem riscos que
atingem cada vez mais grupos sociais maiores, independente de sua posição
social, dentre estes, os riscos ambientais.
Risco
ou the point of no return
Parte da sociedade, grupos deslocados,
elites derrotadas, indivíduos desclassificados ou até populações inteiras,
embora marginalizados pelo processo de modernização, resistem aos novos tempos.
Todo tipo de saudosismo, assim como o desejo de conservar valores e práticas
sociais anteriores, faz parte de um projeto sem futuro: a tentativa de frear ou
reverter o percurso da história moderna.
O risco dos herdeiros
Existe também um risco que vem do
passado, como os resíduos radioativos das usinas nucleares construídas nos anos
70 e 80. É claro o tamanho do risco que o uso da tecnologia nuclear produz para
os contemporâneos e para as gerações futuras. A sociedade moderna, com seus
novos hábitos de consumo, produziu uma série de novas matérias que resistem
muito tempo nos circuitos naturais.
O risco ambiental tem um efeito
nivelador, mais importante que do que o nível socioeconômico tornou-se o fato
de se ter sorte ou azar.
Capítulo 3 - Heidegger como crítico da
técnica moderna
A crítica da técnica moderna de Heidegger
abrange todos os aspectos que contribuem para o esquecimento do Ser como a
natureza retificada e objetivada, a cultura como indústria, a política
usurpadora e os ideais cobertos por construções apressadas e fugazes.
A questão da técnica
Heidegger se distancia da idéia comum de
técnica. Essa partiria do pressuposto de que a técnica seria a)um meio para
alcançar certos fins e b)um fazer do homem. Ele considera que enunciados dessa
idéia comum podem ser corretos sem serem verdadeiros. “A técnica não é algo
meramente passivo, ela influencia de forma decisiva a relação que o homem tem
com seu mundo, ela participa dessa forma na fundamentação do mundo”.
Desocultamento
Definir a idéia da técnica como uma
maneira de desocultamento significa entender a essência da técnica como a
verdade do relacionamento do homem com o mundo. A técnica não é mais algo
exterior exclusivamente instrumental, mas a maneira como o homem apropria-se e
aproxima-se da natureza. Esse aspecto do desocultamento foge da vontade humana
de manipular as coisas. Se somos incapazes de entender o que transcende o nosso
horizonte, também não conseguimos entender o retroceder do real. O
desocultamento técnico moderno esquece este outro lado do desocultar, que é a
permissão limitada, dada pelo próprio Ser, de participar do seu segredo.
Desocultar o Ser significa sempre deixar algo no escuro, o Ser nunca se revela
na sua plenitude.
O livre da liberdade mostra-se não como
algo que resulta da vontade do homem ou algo que impõe à sua própria causa,
ficando assim preso a causalidade, mas como algo intimamente ligado com o
desocultado e sua verdade.
Materialização
“O fato de que o homem é a matéria-prima
mais importante permite a expectativa de que um dia, na base da pesquisa
química contemporânea, serão construídas fábricas para a procriação artificial
de material humano. Nós não refletimos que, com os meios da técnica, está se
preparando um ataque à vida e à essência do homem que, comparando com a
explosão da bomba de hidrogênio, significa pouco”. (Heidegger)
Homogeneização
Heidegger caracteriza a era do átomo como
uma época em que a singularidade e o significado do indivíduo se dissolvem em
um processo que tende cada vez mais à uniformização. A homogeneização ignora as
propriedades das coisas, nivela suas diferenças e relaciona-se com elas no ato
do desocultamento técnico tratando-as como massa amorfa.
Funcionalização
O desocultamento técnico funcionaliza e substitui
formas antigas ou alternativas de desocultamento como cuidar, guardar ou
preservar.
Polarização entre sujeito e objeto
A vontade de poder lança o sujeito homem
como dominador sobre o mundo e sobre o próprio homem, sobre os fracos que não sabem
se impor. A transformação do Ente, os materiais do real, em objetos do
desocultamento técnico não fica sem conseqüências para aquele que se acha
sujeito do processo de modernização. O “objetivismo absoluto” atinge finalmente
o sujeito, o homem amolda-se a seus objetos.
A técnica moderna é tanto causa como
conseqüência de formação das modernas sociedades de massa com seu elevado
potencial homogeneizador e anômico. A polarização sujeito-objeto formou a base
do ataque do homem ao seu próprio mundo e contribui para o esquecimento do Ser
do qual o próprio homem faz parte.
O cálculo
A técnica moderna submete os entes do
cálculo. O cálculo de que Heidegger fala inclui tanto contar com algo como
planejar e esperar. O que aparece no cálculo é sempre o que no próprio cálculo
retirou de algo mais complexo.
Vontade, imposição, dominação
A vontade de dominar é também expressão
do desocultamento técnico do mundo> Heidegger volta-se de forma crítica
contra a vontade moderna, e apresenta-se como ponto de partida da imposição e
dominação.
Consumo e substituição
“A consumação de todos os materiais,
inclusive a matéria-prima homem, para a fabricação de tudo está sendo
determinada veladamente pelo vazio completo no qual o Ente, os materiais do
real, está suspenso”.
Heidegger apresenta nada menos do que uma
interpretação ontológica da sociedade de consumo. A crítica à sociedade de
consumo não se refere unicamente ao consumo daqueles que os economistas chamam
os consumidores; também o uso, que na verdade é um uso final das
matérias-primas e fontes não renováveis de energia, é alvo da crítica
heideggeriana.
O vazio do Ser não significa
exclusivamente algo como o espaço vazio, mas também e, sobretudo a falta de
parâmetros próprios e autênticos na sociedade, moldada pelo desocultamento
técnico.
O Ser como de-pósito
Heidegger denomina o tipo de
não-velamento ou descobrimento, resultado da demanda com seu caráter mandatório
e desafiador, como de-pósito aparecem as coisas somente na sua funcionalidade e
dis-posição.
No processo de apropriação das
propriedades das coisas, a técnica desapropria-as do próprio.
A destruição do próprio
O conceito do desocultamento técnico
mostrou-se como um conceito crítico, ficando evidente o descontentamento de Heidegger
com o percurso real da história humana, ainda mais nos tempos modernos com seu
aceleramento da materialização, da uniformização, da funcionalização, da
polarização sujeito-objeto, do cálculo, da imposição e da dominação, do
produtivismo, do consumo e da substituição das coisas do homem. A fala do
impróprio pressupõe uma noção de próprio.
Crítica à vontade de poder
Heidegger dedica-se a leitura e análise
da obre de Nietzsche. Para Nietzsche o niilismo não é uma interpretação do
mundo que aparece em algum lugar em algum momento, mas é o caráter fundamental
do acontecer na história ocidental.
Nietzsche diz: “O que significa niilismo?
Que os valores supremos estão sendo desvalorizados. Falta objetivo; falta uma
resposta à pergunta ‘para quê?’. Esse niilismo não é uma posição filosófica,
mas um processo, ele tem história e faz história”.
O niilismo expressa algo paradoxal, por
um lado, a crise mais profunda da história européia e, por outro, o
questionamento da base moral dessa crise. Aparecem os que tentam superar o
niilismo através da mera vontade de poder: niilistas. Esse niilismo acompanha o
desocultamento técnico, é a expressão e a essência da modernidade, e permeia
todas as suas transformações políticas.
O fim do nacional-socialista e da segunda
guerra não terminou com o perigo da técnica moderna. Para Heidegger as
primeiras explosões nucleares sobre o Japão transformaram-se em anúncios da
continuação dos males do esquecimento do Ser.
Crítica às ciências modernas
A era do átomo seria impensável sem a
contribuição das ciências modernas. Constata Heidegger que a Física é a base de
toda a técnica da comunicação, das usinas elétricas, dos aviões, etc. e que
essa técnica em íntima relação com a ciência moderna transformou o mundo
radicalmente.
“A ciência moderna é como teoria no
sentido do observar um trabalhar assustadoramente inventor no real. A ciência
demanda o real, de maneira que ele se apresenta cada vez como mecanismo, isto
é, como algo previsível nas suas conseqüências de causas colocadas”.
Superação da técnica
Bastante comum é a idéia de que as
conseqüências negativas da técnica poderiam ser superadas através da ética
social. Outros exigem um comportamento individual dos cientistas que evite
contribuições para um desenvolvimento negativo da técnica. Essas propostas de
superar a técnica através da moral são propostas, evidentemente,
antropocêntricas. Elas partem, primeiro, do pressuposto de que o homem fez a
técnica; segundo, que ele tem a possibilidade de domina-la; e, terceiro, exigem
o cumprimento de normas morais que fazem o controle da técnica pelo homem
vigorar.
Perigo máximo
“O conhecimento da ciência, dominante na
sua área, que é a dos objetos, já destruiu as coisas como coisas muito antes da
explosão da bomba atômica. Sua explosão é somente a mais grosseira de todas as
confirmações grosseiras da destruição da coisa, já acontecida muito antes: a
confirmação de que a coisa como coisa fica nula. O que caracteriza a coisa como
coisa fica ocultado, esquecido. A essência da coisa chega à revelação, isto é,
à fala. Isso significa dizer da destruição da coisa como coisa”.
“A revolução da técnica, que está
deslanchando na era do átomo, poderia prender, enfeitiçar, iludir e cegar o
homem, de modo que um dia o pensar calculador ficaria como válido e em
exercício. Qual grande perigo se aproximaria então? Então se juntaria o
intelecto mais agudo e eficaz do planejamento calculador e do inventar com a
indiferença contra o refletir, com a total falta de pensar. E então? Então o
homem teria negado e jogado fora o que é mais próprio dele, que ele é um ser
pensante”.
Existe uma perspectiva?
Nenhuma invenção de normas ou de uma
moral do mundo técnico seria capaz de negar sua artificialidade.
“Toda lei continua sendo uma usurpação da
razão humana. Mais essencial do que todo estabelecimento de regras é que o
homem encontre a presença na verdade do Ser. Somente essa presença admite a
experiência do sólido. O suporte para todo o comportamento presenteia a vontade
do Ser”.
Heidegger aponta como fonte de uma (nova)
moral a experiência da vontade do Ser, substituindo dessa maneira tanto deus,
ou uma outra instância metafísica, quanto à razão centrada no sujeito que,
consciente de sua fraca força legitimadora no campo da moral, submeteu-se aos
chamados imperativos categóricos. Somente além da razão está sendo localizada a
fonte de regras inquestionáveis.
Heidegger convida para uma meditação
prática além do tempo do próprio homem e seu estado precário de organização, convida
para uma viagem que tem como objetivo chegar ao seu ponto de partida, convida o
seu leitor a ser o que ele já é.
Vulgarização e polifonia
Pierre Bordieu faz uma leitura dupla de
Heidegger, uma leitura no mesmo momento filosófico e político. Diz Bordieu: “ O
vínculo que atesta a concomitância entre o tema ecológico da volta à natureza e
o termo hierárquico do direito natural reside provavelmente numa espécie de
jogo fantástico com a noção de natureza. A exploração ideológica da nostalgia
da natureza rústica e do mal-estar da civilização urbana repousa sobre a
identificação sub-reptícia da volta à natureza como uma volta ao direito
natural, que pode se operar por vias diferentes, como a restauração das
relações admiráveis do tipo patriarcal ou paternalista, associadas ao mundo
rural ou, mais grosseiramente, a invocação das diferenças e das pulsões
universalmente inscritas na natureza...”
Bordieu situa Heidegger no campo social,
que permite, além de entender melhor a sua relação com a natureza e a técnica
moderna e também reconstruir a história do ambientalismo. Este seria impensável
sem o misticismo ecológico dos anos 20 e, em especial no caso dos movimentos
ecológicos da Alemanha, podemos identificar uma continuidade histórica negada
pelo próprio movimento. Vertentes da cultura alternativa dos anos 70,
movimentos organizados dos jovens conservaram em seu bojo uma relação com a
natureza e uma cultura de rejeição a técnica moderna que surpreendem na sua
continuidade.
O esquecimento das próprias raízes históricas,
causado pelo trauma nazista, impossibilitou por muito tempo perceber e ler
Heidegger como um crítico da técnica moderna e como um dos precursores
filosóficos do ecologismo.
Ética e técnica
Heidegger desenvolveu uma ética capaz de guiar
a ação humana e limitar os resultados desastrosos da técnica moderna? O próprio
Heidegger assinala na Carta sobre o Humanismo : “A aspiração por uma
ética urge com tanto mais pressa por uma realização quanto mais a perplexidade
manifesta do homem e, não menos, a ocultar se exacerba para além de toda
medida. Deve-se dedicar todo o cuidado à possibilidade de criar uma Ética de
caráter obrigatório, uma vez que o homem da técnica, entregue aos meios de
comunicação de massa, somente pode ser levado a uma estabilidade segura através
de um recolhimento e coordenação do seu planejar e agir como um todo,
correspondente à técnica”.
A ética da finitude, que Loparic
des-cobre em Heidegger, revela-se como a ética da conservação, do poupar, o
resguardar e do proteger, enfim, como a ética que os movimentos ecológicos,
desde os seus primórdios e muito antes dos tempos atuais, propõe.
Uma voz entre outras
Em 1953 parece o romance Brave New
World , Aldous Huxley, no qual o autor evoca um futuro dominado pela
técnica, onde o homem é algo completamente, também emocionalmente, manipulado.
Em A Perfeição da Técnica, George Friedrich Jünger mostra que a técnica
deixou de ser um instrumento na mão do homem e molda hoje a sua percepção, sua
fala, sua audição. Ela volta-se contra a natureza e acelera no processo da
apropriação dos recursos energéticos a execução da lei da entropia.
A partir da segunda metade dos anos 60 a
crítica à técnica mistura-se com a crítica social e ganha, nos anos 70, no
movimento ecologista, um propagador e vulgarizador.
A crítica à técnica moderna está
inseparavelmente ligada com a experiência negativa da técnica. Mas a crítica
que identificou a maquinaria como motivo de desemprego, fome e miséria, foi
logo absorvida e transformada. Os primeiros teóricos da sociedade industrial em
formação identificaram como origem dos problemas sociais a falta da realização
de virtudes humanas, como caridade e fraternidade, ou apontaram para as falhas
nas relações econômicas. As relações de produção, e não as forças produtivas,
foram identificadas como causa dos problemas sociais.
Marx e Engels, apesar de serem opositores
radicais do capitalismo industrial, compartilharam com seus contemporâneos a
visão positiva do desenvolvimento técnico, interpretada como base do aumento da
produtividade do trabalho.
1914-1918: a primeira experiência da
técnica militar moderna
A visão progressista da técnica cedeu
pela primeira vez a um surto de crítica quando foi usada em larga escala no conflito
militar entre as superpotências européias da época. Novidades técnicas para
facilitar a matança do outro se tinham acumulado e não faltavam na praça de
guerra.
Modernismo reacionário
Herf identifica no nacional-socialismo
alemão uma mistura de elementos contraditórios: por um lado, uma ideologia
reacionária e antimoderna, com o racismo no seu centro, e, por outro, um
discurso modernista, o qual refere-se somente a um aspecto da modernidade,
destacando o desenvolvimento técnico como positivo e tentando integrá-lo no
“culturalismo” alemão. Mas a modernidade está inseparavelmente ligada com uma
noção da dignidade e do valor do homem, do estado de direito e com as idéias de
liberdade, de igualdade social e de democracia liberal.
Entendemos o conceito de modernismo
reacionário de Herf com a sua noção ampla de modernidade somente quando
percebemos que a modernidade inclui ciência e técnica, mas não se deixa reduzir
a ela. Este conceito quer transmitir exatamente essa ambigüidade do
nacional-socialismo: a rejeição ao iluminismo e ao liberalismo democrático e ao
mesmo tempo a aceitação da técnica moderna.
1939-1945: a segunda experiência da
técnica militar moderna
O que a Primeira Guerra ensaiou, realizou
a Segunda em grande estilo: a aplicação da técnica moderna no campo de batalha
no qual se transformou a terra, o céu, o mar. A crença mo progresso histórico e
na razão cedeu uma visão crítica da razão instrumental e dos riscos da
sociedade moderna, entre os quais o risco da sua auto-extinção .
Heidegger e a crítica filosófica da
técnica moderna
Heidegger, em vez de tentar fazer uma
ponte entre a técnica moderna e a ideologia reacionária, vê na técnica uma
expressão do esquecimento do Ser, conseqüência da metafísica ocidental e
especificamente da ciência moderna que se desenvolveu no bojo dela. Heidegger
desenvolveu então uma crítica filosófica à técnica moderna e não uma apologia.
Heidegger entende a sociedade
contemporânea como presa no desocultamento técnico do Ser. Esse desocultamento,
apesar de possibilitar um certo acesso ao Ser admitido por ele mesmo, deixa
sempre algo no escuro.
A crítica revela que toda modernidade é
técnica e corre o risco de perder o essencial no auge do aperfeiçoamento das
ciência e dos instrumentos e métodos que descobrem cada vez mais detalhes sobre
o funcionamento das coisas. O que seria o essencial? Seria um contato revelador
com a plenitude do Ser , somente possível quando nos despedimos da ilusão de
poder dominar o que está à nossa mão.
A argumentação de Heidegger é compatível
com as críticas contemporâneas à superficialidade da ciência positiva e da
sociedade de consumo, a qual se perder nas possibilidades quase infinitas que
os conhecimentos técnicos abriram. A busca do essencial é um ponto que o
filósofo tem em comum com os críticos contemporâneos da sociedade industrial.
A alma na era da técnica: Arnold Gehlen
(1949)
Gehlen aponta para uma interpretação
diferenciada da técnica na Alemanha em comparação com os Estados Unidos e a
União Soviética. Na Alemanha tratar-se-ia de uma visão negativa que vê na
técnica algo ameaçador à cultura e à personalidade individual, evocando um
futuro de uma sociedade massificada e, graças à técnica, uniformizada e
manipulada.
A técnica em si não é uma novidade, ela
tem a mesma idade do homem. Também a ambigüidade da técnica é conhecida desde
os tempos mais remotos e não é uma característica exclusiva da técnica moderna.
Com a pedra lascada o homem pôde tanto trabalhar como matar.
Gehlen deriva o surgimento da técnica da
deficiência orgânica do homem. O homem é pobre de sentidos agudos e
especializados e, por causa disso, depende da ação e da adaptação inteligente
do ambiente natural às suas deficiências. A técnica teria então, primeiro, a
função de substituição de órgãos (armas,fogo etc.); segundo, a função de
fortalecimento de órgãos (armas, microscópio, telefone etc.) e terceiro, a
função de amparo (roda, carro etc.).
A partir do século XVII o modo de
produção capitalista se junta com a jovem ciência e a técnica inovadora para
revolucionar finalmente todas as estruturas socioeconômicas e culturais do
ocidente.
Como o autor diz: “A fascinação pelo
automotismo constitui a propulsão pré-racional e metaprática na técnica, que mostrou
seu efeito primeiro durante milhares de anos na magia, a técnica do
supra-sensitivo, até que ela encontrou somente em tempos mais recentes sua
plena realização nos relógios, motores e máquinas rotativas de qualquer
espécie”.
A crítica da razão instrumental:
Horkheimer e Adorno
Horkheimer e Adorno escreveram A
Dialética do Esclarecimento . Este livro reflete duas experiências
cruciais, de um lado a barbárie do fascismo e da Segunda Guerra Mundial e do
outro a experiência de uma sociedade industrialmente desenvolvida, formalmente
democrática e com nível elevado de consumo de massa, os Estados Unidos da
América.
Esclarecimento tinha como objetivo o
desencantamento, a libertação do homem e dos mitos e a substituição da
imaginação pelo conhecimento dos fatos das relações verdadeiras entre os
homens. A razão deveria substituir a superstição e erguer seu domínio sobre a
natureza. A técnica é a essência desse saber, que objetiva o método, a operação
e a exploração.
O preço que os homens pagam pelo aumento de
seu poder é alienação daquilo sobre o que exerce poder. O desocultamento
técnico “acessa” o Ser, apropria-se no nível do saber e do fazer de algumas
características do mesmo, consegue até manipular na base do saber técnico
algumas manifestações do Ser como Ente, mas confronta-se no mesmo momento com a
subtração do Ser. O Ser revela-se e subtrai-se no mesmo momento. Ou como dizem
Horkheimer e Adorno: O homem da ciência conhece as coisas somente na medida
em que ele pode fabricá-las. Fica muito clara a identificação da técnica
com a dominação do homem sobre o homem, isto é, a dominação dos mais fortes
sobre a sociedade.
O conteúdo político da razão técnica:
Marcuse (O Homem Unidimencional)
“Não somente a sua utilização, a própria
técnica já é dominação, dominação metódica, científica, calculada e
calculadora. Certos fins e interesses de dominação não são a posteriori e
de fora impostos à técnica – eles já estão inseridos na construção do próprio
aparelho técnico; a técnica é sempre um produto histórico-social; nela é
projetado o que uma sociedade e os interesses que a dominam pretendem fazer com
os homens e com as coisas”.
Apesar de identificar ainda a burguesia e
o proletariado como classes básicas da sociedade, Marcuse afirma que elas
deixaram de ser agentes de transformação histórica. Prevalece um interesse
geral e comum dos dois protagonistas na preservação do status quo .
Parece possível, aos olhos da maioria da população, uma evolução gradativa,
conforme o desenvolvimento técnico, que garanta tanto o crescimento como a
coesão da sociedade. Isto deixa a teoria crítica num dilema”Na falta de agentes
de veículos de transformação social, a crítica é, assim, levada a recuar para
um alto nível de abstração. Não há campo algum no qual teoria e prática, pensamento
e ação se harmonizem”.
“A união da produtividade crescente e da
destruição crescente, a união da produtividade crescente e da destruição
crescente; a iminência de aniquilamento; a rendição do pensamento, das
esperanças e do temor às decisões dos poderes existentes; a preservação da
miséria em face de riqueza sem precedente constitui a mais imparcial acusação –
ainda que não seja a razão de ser dessa sociedade, mas apenas um
subproduto, o seu racionalismo arrasador, que impele a eficiência e o crescimento,
é, em si, irracional”.
“O método científico que levou à
dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos
puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem
por meio da dominação da natureza. Hoje, a dominação se perpetua e se estende
não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a
grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da
cultura”.
Rumo a uma sociologia da técnica?
Desde o início dos anos 80 já podemos
constatar a tentativa de fundamentar uma nova disciplina: a sociologia da
técnica. Esta subdisciplina sociológica, ainda em fase de construção e
consolidação, concentra-se essencialmente na gênese da técnica, isto é, no
contexto social das inovações técnicas, e tematiza as conseqüências sociais da
sua introdução.
Ainda está em discussão uma definição
mais precisa da sociologia da técnica, que devia depender do conceito de
técnica adotado. São basicamente duas concepções possíveis. Uma entende como
técnica o arsenal de artefatos criados pelo homem com o fim de alcançar, usando
estes artefatos como instrumentos (aparelhos, máquinas), certos objetivos. Uma
definição mais ampla vê na técnica um conjunto de estratégias operacionais
mobilizadas para realizar um fim desejado. Isto inclui tanto o pensamento e o
imaginário como as ações sociais voltadas para o efeito definido.
O nome de Marx está ligado à reflexão
sobre o papel da técnica no processo do desenvolvimento histórico da sociedade.
Para Marx a maquinaria é tanto a combinação do trabalho humano especializado
quanto um aparelhamento complexo introduzido para aumentar a produtividade do
trabalho.
A vertente na sociologia da técnica que focaliza
a questão da racionalidade e da racionalização não pode negar o trabalho
pioneiro de Weber neste campo. A técnica de uma ação significa para nós a soma
dos meios nela empregados, a técnica racional significa a aplicação dos meios
que, consciente e planejadamente, está orientada pela experiência e pela
reflexão e pelo pensamento científico.
A contingência da técnica
Perceber algo como contingente significa
vê-lo sob uma perspectiva diferente. Algo é como é, mas poderia ser diferente.
A inclusão da técnica na percepção da
contingência assusta porque a revela como produto das escolhas ocasionais,
impulsionadas por hábitos culturais, interesses econômicos ou irracionalidades
de qualquer espécie.
Sabemos que a indústria pesada perde cada
vez mais espaço e o setor de serviços torna-se cada vez mais dinâmico e
importante. Sabemos também que estas mudanças expressam-se ainda nas técnicas
adotadas que incorporam de forma crescente elementos eletrônicos e mostram uma
flexibilidade e uma variedade que escapam de uma definição ainda inspirada pela
“maquinaria” do séc. XIX.
Evitando os riscos ?
Hoje, uma boa parte das publicações e
eventos científicos concentra-se na questão das instabilidades e riscos
provocados pela introdução de novas técnicas em uma sociedade e em um ambiente
natural não preparado para elas.
Podemos identificar pelo menos três
vertentes de pesquisa sobre as conseqüências de técnicas. Primeiro, pesquisas
sobre os impactos das tecnologias no âmbito da engenharia usando métodos
técnicos provenientes das ciências exatas. Segundo, pesquisas sobre os impactos
das tecnologias provenientes da filosofia e das ciências humanas com orientação
antropológica e freqüentemente partindo de uma posição ética. Terceiro,
pesquisas sobre as conseqüências das tecnologias no campo das ciências sociais
trabalhando com métodos empíricos sobre a aceitação e adaptação social de uma
determinada inovação técnica.
Nos últimos anos crescem as tentativas de
ampliar as pesquisas que se voltam para a gênese da técnica e/ou às suas
conseqüências, que visam influenciar o desenvolvimento da técnica para evitar
tanto danos ecológicos como certas conseqüências socioeconômicas mantidas como
negativas.
Tecnologia social versus crítica
da técnica
Diversos autores, de Heidegger até Beck,
escolhem, nas suas cogitações sobre a técnica moderna, um tom alarmista e falam
sobre o perigo máximo, ou sobre riscos, que o surgimento dessa técnica traria
para a sociedade humana e seu ambiente natural.
A sugestão de entender a técnica exclusivamente
a partir de procedimentos cognitivos provenientes da sociologia está relegada
ao fracasso de antemão; o mesmo vale, subentende-se, para qualquer outra
disciplina confrontada com o fenômeno da técnica.
Os investimentos gigantescos no
desenvolvimento de “novas tecnologias”, sejam pelo Estado ou pela própria
indústria, contrastam com o mal-estar que os críticos da técnica expressam.
Aparentemente, tanto os países industrializados quanto às regiões que abrigam a
maioria da população da sociedade global continuam com uma política que
favorece a introdução acrítica de qualquer inovação técnica ao alcance dos
governos e do empresariado local.
A uniformização conduzida pela técnica
também leva à uniformização dos problemas que afligem os continentes e suas megalópoles.
A complexificação é uma das
características da sociedade moderna, e a técnica moderna tem um papel
acelerador nesse processo. A técnica oculta os segredos de seu funcionamento
perante os olhos do leigo. Peritos, altamente especializados, sabem sobre um
determinado complexo técnico o que nós não sabemos; aliás, nós temos que
confiar no que eles sabem, e temos que confiar, também, que eles usam esse
conhecimento de forma responsável.
Podemos somente apontar na direção da relevância
da discussão sobre a técnica para o debate e a prática de um desenvolvimento
sustentável que busca soluções economicamente eficazes, socialmente
equilibradas e ecologicamente prudente.
Fechamos este capítulo conscientes de que
a crítica de um estado insustentável não é uma solução. No entanto, a crítica é
algo indispensável para a descoberta do ainda-não na história do Ser.
Capítulo 5 - A técnica moderna e o
retorno do sagrado
A técnica e o sagrado: Heidegger
A crítica da técnica de Heidegger é
instigante. Ela nos leva para uma reflexão sobre aquilo que o desocultamento
meramente técnico não sabe revelar, ela nos remete sutilmente ao sagrado,
apresentado como uma pista dos deuses desertados. Outros meios de pensar
fazem-se necessários; outras fontes, geralmente negligenciadas pela razão
calculadora, devem ser valorizadas. Uma delas é o canto dos poetas.
O nosso tempo torna-se cada vez mais
necessitado e é finalmente incapaz de sentir falta da falta do seu próprio
fundamento. Estando sem fundamento, o nosso tempo fica pendurado sobre o
abismo, sobre o sem-fundamento. Uma mudança, uma virada radical, só pode
acontecer quando este abismo for percebido e vivido. Para que isso aconteça é
preciso capacidade para atingir o sem- fundamento.
São os poetas que mostram, nesses tempos
necessitados, sensibilidade para os rastros fugazes e quase imperceptíveis dos
divinos. Devemos nos despedir da razão calculadora, que nos engana sobre nosso
tempo ocultado e abrigado pelo Ser, na medida em que ela se fixa no Ente
querendo manuseá-lo. Em vez disso devemos aprender a ouvir a fala desses
poetas.
Nestes tempos necessitados perdemos todas
as certezas; nem podemos saber com segurança se o sagrado nos dá ainda a
experiência do divino, e até o caminho para um encontro com o próprio sagrado
fica obscurecido.
Arriscar-se mais significa também se
aproximar sem proteção do perigo.
Evitando o sagrado sociologicamente:
Durkheim e Weber
O sagrado tem duas faces: a primeira
assusta e aterroriza o homem, quando ele entra na circunferência mais ampla do
divino. Assusta na medida em que o homem sente-se atraído e repelido por algo
enigmático e muito mais poderoso que ele mesmo. A outra face do sagrado dá
notícia de algo conciliante e harmonioso que mergulha o real no brilho do
ideal. A antropologia designa como sagrado os fenômenos naturais, sociais ou
humanos sobrevalorizados, que simbolizam conhecimentos e poderes e fogem do
controle humano.
Quando Durkheim pensa o sagrado, ele
parte de uma cumplicidade com a sociedade. É ela que dá os parâmetros , é ela
que interessa . Sobre questões metafísicas, a sociologia não pode e não deve
opinar.
Já Weber alerta para o preconceito
racionalista que a própria sociologia compreensiva tenta evitar. As
irracionalidades de qualquer espécie cruzam na vida real a trajetória da ação
social, mas são negligenciadas como fatores de distúrbio, e a sociedade moderna
é então apresentada como se esses fatores não existissem.
O sagrado e o numinoso: Rudolf Otto
O sagrado é um conceito composto – sempre
integra um momento ético e um momento racional. Atrás dessa concepção madura e
complexa do sagrado existe um outro momento, que uma concepção racionalizante
do sagrado perde facilmente de vista. Otto chama esse momento “o numinoso”, que
não somente foge do alcance dos conceitos como é possuidor de uma série de
qualidades. Seu cerne é irracional por excelência, como tal dificilmente
explicável ou acessível pelos meios da reflexão científica.
Otto devolve ao numinoso o status de
fonte primária, para não dizer de um sujeito poderoso e terrivelmente estranho
que é independente de qualquer projeção social e perante o qual o homem treme
ou se derrete em delícias máximas.
Sublinhamos que o numinoso é o sagrado
sem o seu momento ético e seu momento racional. Apesar do fato de que o
numinoso é completamente inacessível para qualquer conceituação racional, o
autor apresenta sete características ou momentos do numinoso, que são: o
momento tremendum, o momento do poder superior (majesta), o
momento do enérgico (orgé), o momento do mistério (o completamente
outro), o fascinans, o augustus (valor numinoso), e o terrivelmente
estranho (das Ungeheure).
O tremendum
A irracionalidade do numinoso torna
necessária a referência aos sentimentos que o próprio numinoso provoca. Um
desses sentimentos é o misterium tremendum , quando o homem entra em
contato com o segredo da criação, o que pode resultar nas manifestações
emocionais mais diversas como temor, medo ou pânico; mas encontramos também
formas mais brandas de sentimentos e reações, uma delas é simplesmente o
silêncio diante de algo indizível e inexplicável.
O momento do poder superior (majestas)
O sentimento da majestas transmite a
sensação de anulação da própria existência por um lado, e da onipotência da
transcendência por outro. “Eu sou nada, você é tudo!”. É um sentimento de
dependência, e muito mais a impressão do poder irrestrito do completamente
outro.
O momento energético (orgé)
Vontade, força, movimento, agitação,
atividade e paixão caracterizam o numinoso como algo energético que se mostra
tanto no demoníaco como na idéia do deus vivo.
Momento do mistério (o completamente
outro)
Uma máquina complicada demais o uma
máquina cujo funcionamento não entendemos não é misterioso. Misterioso é aquilo
que se subtrai principalmente e para sempre de um acesso cognitivo. Além disso,
na experiência do misterioso fazemos a experiência do completamente outro, que
nos repele e nos atrai.
O fascinans
No fascinans o numinoso promete o São,
acena com algo que é sempre mais ou ainda mais. Em contato com este ainda-mais,
o homem sente uma felicidade plena, que transcende qualquer estado emocional
comum. A impressão que o fascinans deixa na alma humana é indizível, a língua é
incapaz de expressar o que a alma sente. Isto, mais uma vez, sublinha o caráter
profundamente irracional do numinoso; desta vez de forma atraente e fascinante.
O enormemente estranho (das Ungeheure)
O sentimento do enormemente estranho une,
num certo sentido, momentos do mistério, do tremendum, da majestas, do enérgico
e do augustum. O enormemente estranho ultrapassa o nosso horizonte racional
pois coloca o homem numa posição de humildade diante das dimensões tanto do
universo como da nossa existência e dos nossos feitos.
O augustum
O numinoso possui uma força que
fundamenta finalmente qualquer valor ético. Sem o valor numinoso não existiria
base sólida para as exigências morais. A ética não é uma construção meramente
social, mas algo derivado desse valor numinoso. O augustum significa um valor
objetivo, um valor em si a ser respeitado pelos homens.
Sacralização
O próprio homem sacraliza coisas,
momentos, objetos de consumo e hábitos adquiridos. Na sacralização desvirtuada
esgotam-se as últimas energias religiosas, as quais se tornam surtos de uma
paixão que não conhece mais a direção nem o nome do seu amor. Por isso a
sacralização chama a atenção pelo seu caráter maníaco e freqüentemente
violento.
A sacralização é feita pelo, diferentemente
do sagrado, que é dado como pista dos deuses desertados. Na medida em que a
sociedade moderna se autodefiniu como auto-organizada, ela direcionou as
energias religiosas para si mesma, ela sacralizou-se.
O retorno do sagrado?
A fala do retorno do sagrado quer apontar
na direção de algo bem distinto; alerta então para uma confrontação ambígua do
homem moderno com o mundo que ele habita e desoculta. Essa confrontação porque
acontece na base da imposição intermediada pela técnica moderna e, guiada pela ciência,
ela aproxima o homem cada vez mais, e isto com meios entendidos como racionais,
do enigma do Ser. Enigma que não se deixa reduzir a uma mera pergunta aberta a
ser respondida pelos cientistas futuros. A pergunta como enigma reaproxima o
sagrado, mantido como extinto pelas ciências positivas e mecanicistas do século
XIX.
Primeiro, o próprio sagrado se decompõe
no processo de modernização com seu avanço da ciência e da técnica moderna. As
camadas mais racionalizadas do sagrado estão sendo apropriadas pela sociedade
moderna e desvinculadas do seu contexto religioso. Também a arte moderna se
libertou do caráter simbólico e figurativo da arte sagrada.
O sagrado esta tanto na raiz da idéia da
justiça como fornece a energia proibitiva do sistema jurídico. Pois, na medida
em que o Estado de Direito moderno se afasta de sua inspiração ética,
enfraquecem as energias que o fundamentam.
A busca da moralização da sociedade é
muito mais sintoma da desorientação que resulta da distância entre uma ética
ainda não separada das suas fontes do que qualquer outra coisa.
O homem tende a violar as grandes regras.
A queda quotidiana no impróprio, da qual Heidegger fala, está freqüentemente
acompanhada pela perda temporária da capacidade de distinção entre o Bem e o
Mal.
As hierofanias: manifestações do sagrado
Hierofanias são carregadores do sagrado.
Elas são qualquer coisa na qual o sagrado se manifesta.
Sacrificium intelectum
A afirmação da existência de hierofanias
é algo que a consciência científica comum registra numa manifestação da fé.
Concedemos à fé o que banimos das ciências: a mera postulação da existência de
algo cuja existência não podemos provar.
O impulso inovador da Física, que não se
restringiu a ela pois invadiu toda nossa consciência espacial e temporal,
acelerou os desdobramentos da técnica e pôs a humanidade dentro de poucas
décadas diante da possibilidade de sua auto-extinção ao colocar em
funcionamento as novas descobertas sobre a microestrutura do átomo. As reais e
futuras conseqüências do desocultamento técnico da energia nuclear estão até
hoje no escuro.
Até hoje, quando comemoramos em
solenidades anuais a data da explosão da primeira bomba atômica, é silêncio, o
único meio que achamos para dar uma resposta a algo terrível que ainda não
entendemos.
A Dolly e o pi-méson
Já estamos a caminho de nos acostumar com
as novidades e até descobrimos aspectos aceitáveis e úteis nos avanços da
pesquisa genética e sua aplicação. A ciência e sua técnica parecem estar a
caminho de conseguir desmontar a vida e remontá-la seguindo critérios próprios.
Desocultando tecnicamente o Ser, cujos
segredos o atraem, o cientista desfaz um mistério para colocar outro no seu
lugar.
Micro, meso e máxi
Somos capazes de desocultar tecnicamente
o que estava oculto e desconhecido, mas não somos capazes de manusear
tecnicamente, e de forma sustentável, os fenômenos cujo aparecimento
provocamos.
O sagrado em estilhaços
A modernidade desconstruiu o conceito de deus,
a tal ponto que Nietzsche pôde declarar sua morte. E com o passar do tempo até
o ateísmo perdeu a sua atratividade. Porque ser contra alguma coisa que não
existe? Sem deus a sociedade moderna ficou ainda na posse de abstrações cuja
origem ela esqueceu ou que foram atribuídas à própria sociedade, entre elas o
conceito da totalidade, do Ser, da ética.
Na medida em que o particularismo e o
individualismo dissolveram a consciência da totalidade na medida em que a queda
no impróprio da sociedade de consumo e da auto-aceleração contribui cada vez
mais para o esquecimento do Ser, na medida em que a ética perdeu seu fundamento
e o Estado de Direito tornou-se um mero jogo de regras profanas, nessa medida
ficou o numinoso cada vez mais desprovido das suas derivações racionalizadas e
cultivadas. Confrontamo-nos então com os estilhaços deste sagrado, que
atravessam o caminho do homem quando ele menos espera.