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José Luiz Quadros de Magalhães*
O real existe. O
mundo ocidental vem se reencontrando com o seu passado, quando oriente e
ocidente, materialismo e espiritualismo não eram cuidadosamente separados. Em
um destes reencontros, a idéia de autopoiesis
como essencial à vida é retomada. Um destes reencontros está na obra de
dois biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, que, após
experiências com a visão de animais, reconstroem o conceito de autopoiesis como condição de qualquer
ser vivo.
Um pressuposto
fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos
condenados à autopoiesis. Somos
necessariamente, enquanto seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e
esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.
Dois cientistas
chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela [01], trouxeram uma
importante reflexão, que, a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam
a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência. [02]
Estudando o
aparelho óptico de seres vivos [03], os cientistas viraram o globo
ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal
passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era
lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio
demonstra que o aparelho óptico condiciona a tradução do mundo em volta do
sapo.
A partir desta
simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia mas
que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos – ciências que
buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do
resultado.
O fato é que,
entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de
nós, existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e
condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim, para
percebermos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens
do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma
série de coisas, mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos
engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou
instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do
aparelho óptico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações
químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando
estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas
perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo.
De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os
antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre
ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos
perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos
que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada
por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição
influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez
que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por
experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes
na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção
de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim, podemos
dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo é
constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e
tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos
do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar
valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se
colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo
tempo em que nos revela um mundo, esconde outros. A cultura condiciona
sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade,
autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre há cinqüenta ou cem
anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra
cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar
conceitos, que dificilmente são universalizáveis.
Somos seres
autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos) e não há como fugir deste
fato. Entre nós e o que está fora de nós sempre existirá nos mesmos, que nos
valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o
que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos
cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a
série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo.
Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais
conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos
sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será
revelado.
Assim, não podemos
falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas, pois é
impossível separar o observador do observado [04]. Este universo de
relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A
compreensão da autopoiesis
significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo
a tolerância, a relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é
sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da
democracia.
Importante lembrar
que o reconhecimento da relatividade do conhecimento não exclui a existência do
real. O real existe além da matrix.
O real é relativo e histórico, mas ao mesmo tempo é diferente da mentira, que
busca propositalmente encobrir o real, é diferente de um mundo construído pelo
outro com o propósito de encobrir algo. Neste sentido, a matrix é real enquanto algo que
encobre propositalmente a possibilidade de intervir na história, ou provoca
intervenções que não intencionalmente levem ao caminho oposto do desejado. O
que chamamos de real são as relações que se constroem no mundo da vida como
possibilidade de diálogo e intervenção na história não manipulada pelo outro. O
real não busca estrategicamente encobrir os jogos de poder, o real é a revelação
dos jogos de poder. A mentira se opôs ao real ou a uma verdade historicamente
construída. Se assistirmos a um assassinato em uma praça, podemos encontrar
neste fato o real, as verdades e as mentiras, assim como o encobrimento
proposital do real. Assim, o real cru está no corpo inerte, na ausência de
vida, na morte de uma pessoa. As verdades que se constroem nas cabeças das
testemunhas não são únicas uma vez que são interpretações da morte que ocorreu
e da pessoa que morreu. As mentiras intencionais distorceram propositalmente os
fatos para manipulá-los segundo interesses diversos. O encobrimento do real foi
feito posteriormente com a noticia não divulgada, a arma do crime adulterada, e
provas forjadas. O encobrimento não é uma simples mentira que altera o fato ou
exagera o fato. O encobrimento tem uma finalidade estratégica. Com este
exemplo, podemos dizer de um real, de um encobrimento, de verdades históricas e
de mentiras históricas.
Matrix parte desta compreensão e propõe algo assustador. E se nossa auto-referência
não pertencer mais a nós mesmo, mas alguém, externo, construir nossos limites
de compreensão, nossas verdades? A partir deste universo, o filme nos incita a
outra reflexão: na medida em que outro constrói propositalmente mentiras que se
transformam em verdades estamos impossibilitados de perceber o real. Este
manipulador externo de nosso mundo usurpa nossa liberdade.
A partir do
momento em que a matrix cria um
mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que não enxerguemos o real,
podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. A tentação relativista da
compreensão da autopoiesis pode
encontrar um limite real. O real se constitui nas relações de interpretação e
de comunicação fundadas em uma base de honestidade, de compromisso de busca de
uma comunicação que parta de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção
proposital da mentira com fins de manipulação, de dominação e de pacificação
pela completa alienação das condições reais de vida, das reais relações de
poder. Alguém propositalmente me faz acreditar em suas mentiras como sendo
verdades. Nas relações falsamente construídas como sendo reais.
A matrix é real. A manipulação da
opinião pública, a distorção proposital do real, a fabricação de noticias e de
fatos que encobrem os fatos, a criação de fatos falsos está presente.
Assistimos a golpes midiáticos, como a tentativa de golpe contra o governo
constitucional de Hugo Chávez, quando a mídia fabricou fatos, notícias, medos.
Assistimos ao golpe midiático nos EUA com a eleição de Bush e a sustentação de
um estado de exceção mantido pela geração diária do medo pela grande mídia. A matrix está ai, mas seus limites são
claros na reação popular ao golpe na Venezuela. A matrix está aí, mas seus limites existem, e a resistência à
manipulação do real conseguiu vencer as eleições, é certo que de forma
apertada, na Itália, em abril de 2006.
O interessante do
filme é que as agressões no mundo da matrix
são reais. Talvez o único real no mundo da matrix. Uma agressão física virtual causa feridas reais. Daí que
a fuga do real na matrix não
garante segurança e retira liberdade.
A verdade posta no
filme está na conexão do eu com o real. Este eu que interpreta o mundo. Na matrix não há verdade, pois, não há
conexão entre o eu e o real. O real foi subtraído da experiência de vida. A
pessoa vive uma representação criada por outro.
Notas
01 MATURANA,
Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial
Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994.
02 No livro acima
mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: "Nosotros tendemos a vivir
un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras
convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo
que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación
cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos."
Prosseguindo,
os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar,
suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: "Pues
bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro
hábito de caer em la tentación de la certitumbre." MATURANA, Humberto e
VARELA, Francisco, ob.cit.p.5
03 Nas páginas 8 e 9
do livro "El arbol do conoscimiente"os autores propõem aos leitores
experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos
enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias
experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela
percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas
impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza
com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa
contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: "el color no es una
propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para
verlo". MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8
04 Verificar ainda o
seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana,
organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2001.
* Professor do mestrado e doutorado da
PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito
Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do
Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da
PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10778
Acesso em: 06 out.
2008.