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José Luiz Quadros
de Magalhães*
O pensador Giorgio
Agamben [01] faz uma importante reflexão a respeito da construção
das representações e da apropriação dos significados – à qual o autor chama de
sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas as palavras e
seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.
O autor começa por
explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos
deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração
do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de
poder e de dominação. Assim, consagrar significa retirar do domínio do direito
humano, sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.
Ao contrário,
profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é
pura, profana, liberada dos nomes sagrados e, logo, livre para ser usada por
todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado
das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega
significados aprisionados, sacralizados.
Concebendo a
sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de
separação. A religião, para o autor, não vem de religare, religar, mas de relegere,
que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas
relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre
o sagrado e o profano. Religio
não é o que une os homens aos deuses, mas sim aquilo que quer mantê-los
separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do
profano ao sagrado é o sacrifício.
O processo de
sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito que simboliza
um mito que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais
minuciosos nos quais ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um
ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (idéia,
palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a
coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode
restituir o sagrado ao profano.
A função de
separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas
esferas, nas quais o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de
separação, de retirada de coisas, idéias, palavras e pessoas do livre uso, da
livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade
de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a
política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo
de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e
da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são
encerradas com o recurso ao mito para impor uma idéia sacralizada a toda a
população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a
racionalidade discursiva pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é
sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de
política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de
diálogo, pois para eles este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos
sacralizados há muito tempo.
Este recurso está
presente no poder do estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz,
de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos
transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual
para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo
contemporâneo que varias pessoas que freqüentam um curso superior hoje não
pretendem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para
adquirir conhecimentos, mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica)
para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova
pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e
não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado
pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido
no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em
relação ao rito (a formatura) e ao mito (o diploma).
Como resistir a
perda da liberdade? Como resistir a sacralização das relações sociais,
econômicas e logo a perda da possibilidade de fazer diferente, de fazer
livremente o uso das coisas, das palavras, das idéias? Como se opor à subtração
das coisas ao livre uso? Como se opor à sacralização de parte importante de
nosso mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar esta
possibilidade de libertação é "negligência", que pode permitir a
profanação da coisa sacralizada.
Não é uma atitude
de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado – isto pode até
fortalecê-lo –, tampouco o confronto direto. O que ameaça o sagrado é uma
atitude de negligência – entendida como uma atitude, uma conduta
simultaneamente livre e distraída face às coisas e seus usos. Não é ignorar a
coisa [02] sacralizada, mas prestar atenção à coisa sem considerar o
mito que sustenta sua sacralização. Negligência, neste caso, significa
desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de sua
finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar. Logo, profanar significa
liberar a possibilidade de uma forma particular de negligência que ignora a
separação, ou antes, que faz uso particular da coisa.
A passagem do
sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos
infantis (jogo de roda; balão; brincadeiras de roda) derivam de ritos, de
cerimônias para a sacralização como uma cerimônia de casamento. Os jogos de
sorte, de dados, derivam das práticas dos oráculos. Estes ritos separados de
seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a
consagração do mito (a estória) e o rito que o reproduz. O jogo (negligência)
desfaz esta ligação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre uso das
pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma estória.
Importante lembrar que negligência não significa falta de atenção. Uma criança,
quando joga, tem toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado
ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição.
Devemos
dessacralizar a economia, o direito, a política devolvendo estas esferas ao
livre uso do povo. Construir novos usos livres.
Numa época onde a
dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacralização tomou, as
pessoas, em meio ao desespero, buscam um retorno ao sagrado em tudo, O jogo
como profanação, como uso livre está hoje decadente. As pessoas parecem
incapazes de jogar e isto se demonstra com a proliferação de jogos prontos,
sacralizados, com regras herméticas, onde os novos usos são quase impossíveis
ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa
acompanham a profissionalização e a mitificação dos jogadores (os ídolos).
A secularização
dos processos de sacralização que dominam as sociedades contemporâneas permite
com que as forças de separação permaneçam intactas sendo apenas mudadas de
lugar. A profanação de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre
uso, neutraliza a força do que é profanado. Tratam-se de duas operações
políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e
rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do poder; separa
o rito do mito permitindo o livre uso.
O capitalismo é
mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de
sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé
protestante; Benjamin demonstra que o capitalismo se constitui em um fenômeno
religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do cristianismo.
Para Giorgio
Agambem, o capitalismo tem três fortes características religiosas específicas:
a)É uma religião
do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido
relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou idéia. O culto ao consumo;
o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc.
b)É um culto
permanente sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não
interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça.
c)O culto do
capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o
culto da falta. O capitalismo precisa da falta pra sobreviver. O capitalismo
cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este
objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez
seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta
universal.
O capitalismo, por
ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do
desespero, faz com que este capitalismo religioso não tenha como finalidade a
transformação do mundo mas sim sua destruição.
Existe no
capitalismo um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa
é separada dela mesma não importando a dimensão sagrado/profano ou
divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta sem nenhum resíduo que coincide
com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as idéias,
objetos, nomes não para permitir o livre uso mas para ressacralizar
imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto que é usado para o transporte
mas é um objeto de desejo que oferece para quem compra status, poder,
velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que
pode transporta-lo. O que o consumidor compra não pode ser apropriado, pois o
que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o
reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isto não pode ser
apropriado, isto desaparece na medida em que é consumido. Trata-se de um
fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso
durável se torna impossível: está é a esfera do consumismo.
Na lógica da
sociedade de consumo, a profanação torna-se quase impossível, pois o que se usa
não é o uso inicial do objeto, mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo, o
que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não pode ser dado novo
uso. Não há possibilidade de liberdade dentro deste sistema. O novo uso da
liberdade exige enxergarmos este processo de aprisionamento da lógica
capitalista consumista.
O consumo pode ser
visto como uso puro que leva a destruição da coisa consumida. O consumo é,
portanto, a negação do uso uma vez que há a negação do uso que pressupõe que a
substancia da coisa fique intacta. No consumo a coisa desaparece no momento do
uso.
A propriedade é
uma esfera de separação. A propriedade é um dispositivo que desloca o livre uso
das coisas para uma esfera separada que se converte no estado moderno em
direito. Entretanto, o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores
são infelizes nas sociedades de massa, não apenas porque eles consomem objetos
que incorporam uma não aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles
acreditam exercer sobre estas coisas consumidas o seu direito de propriedade.
Isto é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que
consumi, tenho que consumir de novo e de novo para alimentar a ilusão de
apropriação. Esta escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem
consumido e pela incapacidade de enxergar o processo no qual o consumidor está
mergulhado até a cabeça.
Notas
01 AGAMBEM, Giorgio.
Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et
Rivages. As reflexões e interpretações livres desenvolvidas neste tópico são
todas a partir do texto do filósofio Giorgio Agambem.
02 Coisa aqui
significa idéias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças, etc.
* Professor do mestrado e doutorado da
PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito
Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do
Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da
PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10777
Acesso em: 06 out.
2008.