®
BuscaLegis.ccj.ufsc.br
José Luiz Quadros de Magalhães*
Quais são os reais jogos de poder
que se escondem atrás das representações do mundo contemporâneo? A
representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais,
desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é
significar. Não utilizo o termo aqui como representação política, mas
representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se
vê e se interpreta e logo como atribuição de significado às coisas.
Representação é exibir ou encenar.
A representação pode, portanto,
ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder
do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a
representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser,
mas, em geral, propositalmente o que não é. Representação pode, de um lado, ao
distorcer a aparência, revelar o que se esconde atrás desta [01] e,
de outra forma, encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as
reais relações de poder.
Várias são as formas de dominação.
Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos
significantes [02]. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas
naturais: "a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis,
a mulher e o medo da guerra." [03] Diariamente repetimos
palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não
nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social
e privada nos leva à automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede
de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há
porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo.
Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder
quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir
certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza, não há discussão. O
preconceito surge da simplificação e da certeza.
A dominação passa pela simplificação
das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky skywalker; a democracia e o
fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas comuns neste
processo de dominação são: a nomeação de grupos, criando identidades ou
identificações e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato
particular real. O problema não é que o fato particular seja real, o problema
consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra
uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a este tipo de
geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito à
recorrente crítica ao estado de bem estar social: o estado de bem estar social
tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos,
objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em
culturas e países diferentes. Entretanto, é comum ouvirmos, inclusive de
intelectuais, que o estado social é assistencialista (ou pior, clientelista) e
logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar.
O processo ideológico distorce a
realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram
explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura
construir certezas na opinião pública, uma vez que a afirmação vem acompanhada
de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a
imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre, mas que de
longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema "estado
de bem estar social", quem detém a mídia constrói certezas e as certezas
são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas
tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas
serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas "verdades". A
certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício
permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de
palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os
preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de
dominar e de manter a dominação.
Entretanto, este poder não é
intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções
cinematográficas.
Este poder encoberto pela
representação distorcida (propositalmente distorcida) [04] funda-se
em ideologias, em mentiras. [05] A grande mentira na qual estamos
mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa
naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma
ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.
A força da ideologia se mostra
quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o
assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação
contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este
esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de
perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra
fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a
pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.
Se as pessoas acreditam que a
história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico
para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas
pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a
alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.
Se a economia não é mais percebida
como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da
ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo
Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com
uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira
contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é
história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo.
Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de
esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a
ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e
sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano.
O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos
que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus
desejos são os nossos desejos. [06]
A despolitização do mundo é uma
ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas
palavras de Slavoj Zizek, "a luta pela hegemonia ideológico-politica é por
conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados
como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas." [07]
Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a
expressão "Direitos Humanos". Os direitos humanos são históricos e
logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo, pois
coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza
humana. Se os direitos humanos não são históricos, mas são direitos naturais,
quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se
afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós
somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas
lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao
contrário, se afirmamos estes direitos como naturais, fazemos o que fazem com a
economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e
transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o
que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza? Presidentes do Banco
Central?
Notas
01 Carlo Ginsburg menciona o
estranhamento e o distanciamento como mecanismos que permitem enxergar o real
escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem
do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os
discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a
falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma
escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que
diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação
da opinião. Isto nos leva a pensar porque exércitos de pessoas ontem e hoje
defendem bravamente interesses que não só não são os seus como são contra os
seus. O melhor exemplo é dos cães de guarda do sistema, sempre tão explorados
pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger
a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é a sua
ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua
mulher e seus sonhos. Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia
das Letras, São Paulo, 2001.
02 Os significantes são os símbolos.
Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A
combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou
significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se
não for lido e a partir do momento que é lido são atribuídos sentidos aos seus
significantes. É impossível não interpretar e interpretar significa atribuir
sentido, o que por sua vez significa jogar toda uma carga de valores, de
pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas
específicas.
03 GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira,
ob.cit. pg. 16. Nesta página Gisnsburg cita Chklovski que diz o seguinte a
respeito do estranhamento: "Para ressuscitar nossa percepção da vida, para
tornar sensíveis as coisas, pra fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos
de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que
deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se
serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da
forma, com a que tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua
duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve
ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para
ela, o que foi não tem a menor importância."
04 Importante lembrar que não negamos
a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é
interpretação e a interpretação é condicionada por cada condição humana. A
representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com este
objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos
argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que
encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não
dialogar.
05 "...a ideologia oculta o
caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na
maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo
de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas
econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos
do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) "Sob
este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a
igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada
em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base
produtiva real de toda igualdade e liberdade. "(Crundise, Capítulo sobre o
capital) "Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade
oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente
igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e
falta de liberdade." (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom
Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).
06 Algumas palavras problemáticas
apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos,
localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido
marxista: "Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram
diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica
a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro,
a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do
sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e
particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não
conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições
sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de
um elo necessário entre formas "invertidas" de consciência e a
existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia
expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições
sociais (ver contradição) e as oculta. Em conseqüência disso, desde o início, a
noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica. ."
(Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge
Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).
07
ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats,
2004, Paris, pag. 18. Interessante
não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno.
Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto
do real e As portas da revolução são duas obras importantes.
* Professor do mestrado e doutorado da PUC-Minas e da UFMG e
Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da
pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas
Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de
Barra Mansa (RJ) e UFMG.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10776
Acesso em: 17 set.
2008.