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Dirceu Marques Galvão Filho *
modo de consideração preliminar, ponha-se em relevo o objetivo a que se
propõe o presente texto: abordagem da obra basilar de HANS KELSEN,
abstraídas, momentaneamente, as prováveis críticas ao seu reconhecido esforço
intelectual. Esta, inclusive, a proposta fundante do nosso Instituto de Estudos
Kelsenianos (IEK).
Firmado o
nosso propósito, dir-se-á que o direito, para alguns teóricos, é visto como de
caráter indispensável à convivência inter-humana. SANTIAGO NINO(1) o
similariza ao ar; enquanto ROLDAN(2) e SUÁREZ o entendem como "elemento
básico, necesario y además omnipresente".
Em obra de
singular importância, HART(3) entroniza a reflexão de que na sociedade
humana nenhuma questão foi tão explorada quanto a indagação sobre "o
que é o direito ?" Na sua hora, RAFAEL R. VILLEGAS(4), na mesma
senda, afirma que "mas facil es compreender que definir el
derecho"
Na
indústria de responder a esta indagação, e com ares de cientificidade, muitos
laboraram, mas, de logo, adiantemos, ninguém com o alcance de KELSEN. De
fato, teorias existem, em profusão, com o intuito de explicar os problemas
da ciência do direito, com destaque especial para a possibilidade de sua
cientificidade(5).
Se queremos
situar a ciência do direito no século passado, especialmente para a fixação do contexto
que precede os primórdios da Teoria Pura do Direito, justifica-se farta alusão
ao sociologismo eclético, em decorrência do qual a sociologia será
entendida como a única ciência social ou como a ciência geral da sociedade,
assemelhada a uma física social, atribuindo-se às demais ciências do humano
papel subalterno. Aqui, incluindo-se, à inteira, a ciência do direito, incapaz
de se expressar autonomamente.
Afora isto,
pairava presente a indagação: seria possível uma ciência do direito ?
G.RADBRUCH,
na obra Introducción a la ciencia del Derecho(6), menciona que, ainda no
transcurso do século XVII, já se questionava se a realidade do direito poderia
ser objeto de uma análise científica.
O ceticismo
quanto a esta possibilidade culmina nas grandes críticas, com ênfase para
aquela formulada por Julio H.Von Kirchmann(7), em 1847, na conferência
sobre "La falta de valor de la Jurisprudencia como ciencia", para
quem "três palavras retificadoras do legislador e bibliotecas inteiras se
convertem em papéis inúteis".
A problemática
epistemológica, fincada na resposta à indagação inaugural, não trazia
conforto ao jurista, especialmente por constatar não ser a sua experiência
jurídica uma ciência de laboratório, levando-o a passar ao largo do problema ou
mergulhar no sociologismo, posto que, reiteremos, a Sociologia seria a ciência
total da sociedade – na formulação comteana – submetendo-se à mesma todas as
demais ciências do humano, inserta, neste sítio, a ciência do direito.
No Brasil,
grassou, sem peias, a endemia sociológica explicitada em manifestações de
alguns dos seus mais expressivos juristas. Em ORLANDO GOMES(8), a constatação
de que "a ciência do Direito, ramo da sociologia, tem por objeto
o estudo de um fenômeno social, que se denomina jurídico".
Com PONTES
DE MIRANDA(9), em transcrição literal, a veemência
sociologista: "No direito, se queremos estudal-o scientificamente,
como ramo positivo do conhecimento, quase todas as sciencias são convocadas
pelo scientista. A extrema complexidade dos phenomenos implica a
diversidade do saber...Nas portas das escolas de direito devia estar
escrito: aqui não entrará quem não fôr sociólogo. E o sociólogo supõe o
mathematico, o phisico, o biólogo. É flor de cultura".
Resultante
deste contexto, pois, a má percepção dos juristas quanto à cientificidade do
saber jurídico, que, submetido ao sociologismo eclético, caminhava de envolta
com inconciliáveis metodologias empíricas.
Neste
campo, portanto, o espaço apropriado à gestação da Teoria Pura do Direito, obra
maior de HANS KELSEN, que irá se constituir em expressiva "reação
a esta babel epistemológica e metodológica(10)" que assolava a
ciência do direito, destacadamente porque sua meditação científica, até então,
estava identificada à ciência natural.
Na sua
própria dicção, estabelecer-se-ia o que visava alcançar(11): "como
teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto...ela se
propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se
possa, rigorosamente, determinar como Direito".
Preocupava-se
KELSEN(12), em real, com o fato de que "quase não há mais hoje
domínio científico no qual o jurista não achasse autorizado a penetrar. Mais
ainda: ele crê realçar seu prestígio científico tomando empréstimos de outras
disciplinas. O resultado não pode ser senão a ruína da verdadeira ciência do
direito"
Desta
forma, seu princípio metodológico fundamental aponta para a necessidade de "libertar
a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos"
Abroquelado
neste fito, formula duas depurações fundamentais: a) o elemento
fático inserto no direito será entregue a campo próprio das ciências sociais
causais, como a sociologia; b) ao depois, afasta do sítio de descrição
da ciência jurídica as questões de ideologia política, valores morais e
políticos, impossíveis de precisão objetiva. Depreende-se, assim, que as
considerações teleológicas e axiológicas não se coadunam com o objeto da
ciência do direito.
Alicerçadas
as depurações, KELSEN atenta para a necessidade da fixação do monismo
do objeto do conhecimento. Para ele, o objeto específico da ciência do
direito será a norma jurídica, sendo este o princípio teorético fundante
da pureza metódica. O direito, para o jurista, é de ser tomado como norma
(e não como fato social ou como valor transcendental).
Pelo que,
assoma de fácil conclusão a preocupação de KELSEN "com o
conhecimento do direito e os meios, cautelas e métodos a serem utilizados para
assegurar-lhe o estatuto científico".(13) Ou, forçoso dizer, que o
fenomenal teórico teve em mira a hercúlea tarefa de preservar a autonomia,
neutralidade e objetividade da ciência do direito, que, até então, estava
minada por elementos alienígenas, em estéril sincretismo metodológico.
KELSEN
teria alcançado o seu intento, logrando êxito na depuração da ciência jurídica,
afastando-a de ingerências metodológicas indesejáveis? A discussão não está
concluída. Afinal, a obra Kelseniana mantém-se atual e inesgotável, embora, é salutar
afirmar, o autor não estivesse imune à falibilidade – aliás, algumas críticas
são procedentes – mas é imperioso o reconhecimento de que o seu modelo é de uma
extremada coerência e inegável rigor metodológico.
Ademais, as
objeções e os aplausos à Teoria Pura do Direito(14) se prestam à confirmação de
que a teoria Kelseniana foi moldada pela independência e objetividade,
difundindo o seu alcance e influência sobre as demais teorias, ao ponto de que,
presentemente, das principais correntes epistemológico-jurídicas defluem tons
anti ou pos-Kelsenianos, na ratificação de que qualquer avanço ou reformulação
na teoria jurídica não olvidará da contribuição do genial formulador da teoria
pura do direito.
A jeito de
conclusão, lembremos substantivo aporte doutrinário de SOUTO MAIOR BORGES(15),
para quem "a revolução científica não importa ruptura absoluta e total com
a tradição científica. No campo jurídico, a consigna de Cossio muito bem o
anteviu: ‘ para além de Kelsen sem sair de Kelsen’. Nenhum
progresso nos estudos normativistas do Direito, sem repensar o que Kelsen
pensou"
NOTAS
1.
In
Introducción al Análisis del Derecho, P. 01, 2a edición, Editorial
Astrea, Buenos Aires, 1993.
2.
Luis
Martínez Roldán e Jesús A. Fernández Suárez, Curso de Teoría del Derecho y
Metodología Jurídica, p. 01, Editorial Ariel S.A., Barcelona, 1994.
3.
In O Conceito de Direito, p.5, Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1986.
4.
In
Introduccion y Teoria Fundamental del Derecho y del Estado, Tomo I, p. 454,
México, 1943.
5.
No seu Compêndio de Introdução à Ciência do
Direito, págs. 33 e ss., Maria Helena Diniz confecciona substantiva apreciação
das concepções epistemológico-jurídicas relativas à cientificidade do
conhecimento jurídico . De
igual modo, Carlos Cossio, no seu "Las actitudes filosóficas de la ciencia
jurídica", in La Ley, Buenos Aires, 1956.
6.
Revista
de Derecho Privado, p. 249, Madrid, 1930.
7.
In
La Ciencia del Derecho, , págs. 267-268, Ed. Losada, Buenos Aires, 1949.
8.
In Introdução ao Direito Civil, p.12, Ed. Rev. Forense,
Rio de Janeiro, 1957
9.
In Introdução à Política Scientifica ou os Fundamentos
da Sciencia Positiva do Direito, p. 20, Ed. Liv. Garnier, Rio de Janeiro, 1924.
Apud A.L. Machado Neto, História das Idéias Jurídicas no Brasil, pp. 186-187,
Editorial Grijalbo, São Paulo, 1969.
10. Cf.
expressão de A.L. Machado Neto, em Teoria da Ciência Jurídica, p. 120, Saraiva,
São Paulo, 1975.
11. In
Teoria Pura do Direito, p. 01, no Brasil, publicada pela Editora Martins
Fontes, a versão definitiva de 1960.
12. In Théorie pure du droit,
Neuchâtel, Ed. de la Banconière, págs. 17-18, 1953, Apud Machado Neto,
ob. cit., p. 120.
13. Fábio
Ulhoa Coelho, Para Entender Kelsen, p. 21, Ed. Max Limonad, São Paulo, 1995.
14. Na
opinião de Machado Neto, ob. cit., p. 136, a Teoria Pura do Direito é "a
mais autêntica e mais bem lograda tentativa de fundamentação autônoma da
ciência jurídica...Que hoje tenha o jurista os elementos teóricos para uma
colocação autônoma do problema epistemológico do direito, é uma contribuição
definitiva da teoria pura,..."
15. In O Contraditório
no Processo Judicial – uma visão dialética – p.10, Malheiros Editores, São
Paulo, 1996
* professor da UFPB, mestre em Direito pela
PUC/SP
GALVÃO FILHO, Dirceu Marques. Kelsen: a pureza metódica . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 42, jun.
2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13>.
Acesso em: 23 nov. 2006.