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O significado da modernidade

 

 

Paulo Roney Ávila Fagúndez

 

 

“Alguns juízes são absolutamente incorruptíveis. Ninguém consegue induzi-los a fazer justiça.”

Bertold Brecht

 

 

Introdução. Quando se procura focalizar o papel a modernidade, quer-se, num primeiro momento, compreender a transformação que ela promoveu nas vidas das pessoas. Como os as crianças e os jovens passaram a ser encarados no novo tempo? Foram considerados cidadãos? São hoje responsáveis? Ou ainda se vive numa sociedade que discrimina, que considera o feminino como elemento sem maior importância e que coloca a racionalidade no pedestal, como sinônimo de progresso?

            A obra Crítica da Modernidade, de Touraine, tem como preocupação central a construção do grande projeto histórico da modernidade, destacando os seus aspectos positivos e negativos. Houve, sem dúvida, um grande avanço. A humanidade passou de uma  sociedade tradicional, alicerçada na fé absurda e na tradição, para uma sociedade regida pela racionalidade. A importância da análise reside no fato de que ainda as sociedades ocidentais se organizam à luz da racionalidade.

            A anunciada morte de Deus foi em decorrência da edificação do império da racionalidade. Agora não se busca uma explicação sobrenatural para os fenômenos, mas na metodologia científica, nos caminhos previamente traçados pela ciência para a descoberta da verdade. Deus não é mais o princípio do juízo moral, mas, sim, a filosofia política dos iluministas.

A ideologia da modernidade, está alicerçada na idéia de que, com a fragmentação, é possível compreender a vida. Afirma que há um corpo, que como uma máquina, é composto de peças. Cadáveres são dissecados nas universidades. O mal pode ser arrancado por um simples procedimento cirúrgico e invasivo. Os remédios são suficientes para controlar as moléstias infecto-contagiosas e degenerativas.

A sociedade moderna é a sociedade da razão. O teológico não interessa, sendo a arte uma manifestação de segunda categoria, porquanto diz respeito à sensibilidade.

A sociedade moderna prioriza o positivo, em detrimento do negativo. Sabe-se fazer bem clara a divisão o bem e o mal, entre o terreno reservado ao império de Deus e do Diabo. A rigor, todo o bem deve prosperar. O mal deve ser eliminado. Busca-se a pureza. Os médicos vestem branco. Criminosos deverão ser encarcerados. Bactérias e vírus deverão ser eliminados.

Vai-se focalizar, inicialmente, o significado da modernidade, e se é possível dizer que ela existiu em determinado momento histórico ou ainda é algo a ser construído.

E mais: a modernidade se caracteriza pela sociedade de consumo? A modernidade é a superação do teológico-político? Se é que houve essa superação.

A modernidade traz uma visão fragmentada de mundo, e que cientificamente quer controlar a natureza, dominar os seus encantos e submetê-la aos seus anseios de riqueza. Vírus e bactérias são violentamente atacados por poderosos quimioterápicos. Tumores são extirpados e bombardeados, como se fossem elementos estranhos ao corpo. Os agentes dos sistema querem, a todo custo, achar o mal, e eliminá-lo. Por isso, pode-se afirmar que a grande crise é de percepção, e que há a necessidade de superação da visão maniqueísta do homem e da história.

Não se pode, contudo, considerar que há uma modernidade simples. Ela é complexa, constitui-se, em verdade, numa busca permanente de significado da própria existência.

É uma busca que não acaba nunca. Daí falar-se em pós-modernidade significa que já houve a consolidação de todos os anseios do grande projeto modernista da racionalidade.

A modernidade é a inauguração de um grande projeto para o homem individualmente responsável pela sua vida, pelo destino da humanidade.

E que traz uma cidadania ecológica, que se caracteriza, fundamentalmente, a relação harmônica entre homens, animais e plantas.

A sociedade patriarcal se satisfaz com a racionalidade, com o controle da vida e com a busca de explicações simples para os mais complexos fenômenos.

 É uma sociedade que se caracteriza pela dependência. Dá a impressão de que realmente as autoridades querem combater a escravidão.

Os especialistas escravizaram o povo. As autoridades entendem das questões políticas. Os médicos são os responsáveis pela recuperação da saúde. Os professores são os responsáveis pela preparação técnica. Os juristas tratam de resolver os conflitos intersubjetivos. Mas será que os todos os profissionais não tratam da mesma vida?

O fenômeno jurídico não é também político? O fenômeno jurídico não é o mesmo fenômeno político? A  doença não é um fenômeno político? A economia não deverá estar impregnada de ética? A pedagogia não diz respeito à vida em sua totalidade?

A visão cirúrgica, compartimentada, fragmentada do universo, não permite que se tenha uma visão da totalidade, as conexões que existem entre todos os fenômenos.

Todo o avanço científico se deu no sentido de separar para melhor compreender. Daí a separação entre homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, raças, credos e nações.

O organismo humano ainda continua sendo visto como uma máquina, em que, com a substituição de peças, é possível resolver as suas moléstias.

Contudo, o que se vislumbra é uma sociedade doente, composta por sujeitos doentes, governada por um poder político debilitado, na sua proposta de tudo resolver.

A crise é única. Em qualquer área do conhecimento se vê o mesmo problema, vale dizer, o exercício da força para manter o controle da vida.

É como se a vida pudesse ser dominada. É, sem dúvida, o grande projeto da modernidade, ainda presente no século XXI. O que se almeja, em essência, é construir grandes teorias para que os dramas humanos sejam resolvidos. Ou seja, para que as doenças possam ser “curadas”, para que a violência seja eliminada, que os problemas políticos e sociais sejam resolvidos, enfim, para que as pessoas possam viver mais felizes.

A modernidade sempre surge com uma esperança. Afinal de contas, vive-se um período muito difícil, em que as pessoas enlouquecidas não sabem para onde ir.

Em verdade, a humanidade não pensa na realidade da vida, em que tudo flui, em que tudo se modifica permanentemente, em que toda a verdade relativa..

Vive-se numa sociedade enlouquecida, carente de valores e que acredita que o ter deve prevalecer em relação ao ser

 

O significado da modernidade.

 

  “O novo surge do próprio seio do velho, e conserva o que há de bom, no que lhe antecedeu. A coisa nova leva consigo tudo quanto acumulou de positivo, em seus graus anteriores de desenvolvimento.”

Goffredo Telles Junior

                                              

 O que se entende por modernidade? É possível dizer que a modernidade se consolidou  num determinado momento da História? A modernidade surgiu com a Renascença? Qual a importância da Revolução Francesa como marco político? Afinal, pode-se afirmar que nasceu juntamente com as construções dos métodos científicos? Após Freud passou-se a viver a pós-modernidade ou já a partir de Marx concretizou-se a modernidade? Fica difícil estabelecer tranqüilamente o que se entende por modernidade. Ou será que a modernidade ainda vai ser edificada? O avanço científico não está promovendo a verdadeira construção da modernidade?

“A idéia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida privada. Não basta que estejam presentes as aplicações tecnológicas da ciência para que se fale de sociedade moderna. É preciso, além disso, que a atividade intelectual seja protegida das propagandas políticas ou das crenças religiosas, que impersonalidade das leis proteja contra o nepotismo, o clientelismo e a corrupção, que as administrações públicas e privadas não sejam instrumentos de um poder pessoal, que vida pública e vida privada sejam separadas, assim como devem ser as fortunas privadas do orçamento do Estado ou das empresas.”

 

Da teologia como centro se passou à racionalidade da ciência, à possibilidade de controle da natureza.

“A ideologia ocidental da modernidade, que podemos chamar de modernismo, substituiu a idéia de Sujeito e a de Deus à qual ela se prendia, da mesma forma que as meditações sobre a alma foram substituídas pela dissecação aos dos cadáveres ou o estudo das sinapses do cérebro . Nem a sociedade, nem a história, nem a vida individual, dizem os modernistas, estão submetidas à vontade de um ser supremo a qual devem aceitar ou sobre a qual se pode agir pela magia. O indivíduo só está submetido às leis naturais...” 

 

A racionalidade substitui Deus e se torna a senhora toda-poderosa que traz soluções para todas as aflições humanas. Tudo pode ser explicado e controlado. A natureza é a serva do homem.

 

            “A ideologia ocidental da modernidade, que podemos chamar de modernismo, substituiu a idéia de Sujeito e a de Deus à qual ela se prendia, da mesma forma que as meditações sobre a alma foram substituídas pela dissecação aos dos cadáveres ou o estudo das sinapses do cérebro . Nem a sociedade, nem a história, nem a vida individual, dizem os modernistas, estão submetidas à vontade de um ser supremo a qual devem aceitar ou sobre a qual se pode agir pela magia. O indivíduo só está submetido às leis naturais [..]. Vale dizer: constitui um elemento básico da modernidade a “idéia de que a sociedade é fonte de valores, que o bem é o que é útil à sociedade e o mal o que prejudica sua integração” 

 

Descartou-se Deus, como se viu, e, no entanto, passou-se a ver a Ciência como a responsável pela solução de todos os problemas e como encarregada de descobrir toda a verdade.

“A idéia de modernidade está portanto estreitamente associada à da racionalização. Renunciar a uma é rejeitar a outra. Mas a racionalidade se reduz à racionalização? É ela a história dos progressos da razão, que são também os da liberdade e da felicidade, e da destruição das crenças, dos pertences, das ‘culturas tradicionais’? A particularidade do pensamento ocidental, no momento da sua forte identificação com a modernidade, é que ele quis passar do papel essencial reconhecido à racionalização para a idéia mais ampla de uma sociedade racional, na qual a razão não comanda apenas a atividade científica e técnica, mas o governo dos homens tanto quanto a administração das coisas. Tem esta concepção um valor geral ou ela nada mais é que uma experiência histórica particular, mesmo que a sua importância seja imensa? É preciso inicialmente descrever esta concepção de modernidade da modernização como criação de uma sociedade racional.”

 

A verdadeira modernidade deveria ter compromisso com a justiça. Obviamente que não se trata de uma justiça formal, falsa, mas de uma justiça vital, verdadeira, que se constrói a cada instante, criticamente. Uma coisa é a justiça vital; outra, a justiça formal. A justiça vital deve ser buscada incessantemente, a todo instante e em todo lugar.

O que a modernidade deve superar é toda a fragmentação que se operou historicamente.

O que se quer é uma ética de tolerância, que respeite crianças, jovens e idosos; que não discrimine pessoas pelo sexo, pela idade, pela situação social,  pela opção sexual;  que faça com que haja uma convivência harmônica, no corpo da sociedade, de todos os seres vivos.

A modernidade é construída a cada instante, com a superação de cada etapa histórica, para que se possa atingir uma sociedade solidária, de seres livres e responsáveis.

A modernidade é, em suma, a superação do velho, para que possa nascer o novo. Deve ser entendida como uma busca permanente de superação dos velhos valores e de construção de uma sociedade fraterna.

A sociedade grega clássica se assenta nos valores masculinos. Acredita-se que, desde o patriarcado, a violência masculina foi exercida em todas as esferas. É claro que,  no plano político, ela se manifesta mais claramente.

Enaltece-se, ainda hoje, a organização da pólis grega.

“A pólis, de certo modo, é um ‘clube de homens’, um sistema de vida em sociedade que enaltece os valores masculinos e joga nas sombras as mulheres, mães, esposas e filhas. Entretanto, vozes femininas elevaram-se desde os tempos remotos para fazer ouvir um som diferente do mundo viril. Os trabalhos de C. Calame mostraram amplamente de que maneira, ao lado de uma cultura masculina, uma cultura feminina fez ouvir sua diferença desde a aurora da cidade.”

 

 

Então, a sociedade grega já apresentava os traços masculinos que  caracterizam, ainda hoje, a sociedade política humana. Com a ressalva de que os gregos de que os gregos proporcionavam às jovens uma educação especializada, “que é uma forma particular de paidéia.”

A sociedade moderna precisa de toda experiência histórica para que possa se consolidar.

É claro que, desde os primórdios, o homem buscou edificar uma sociedade fraterna, solidária, livre, sendo o marxismo a grande tentativa de encontrar solução para os intrincados problemas humanos.E repensar o político é fundamentalmente questionar todas as correntes em que se procura, parcialmentee, respostas para o anseio de  melhores dias, intrínseco em cada ser humano.

“Também seria equivocado ater-se à crítica do marxismo. Repensar o político requer uma ruptura com o ponto de vista da ciência em geral, e, particularmente, com o ponto de vista que veio a se impor por meio do que se designa ciências políticas e sociologia política.”

 

Repensar o político significa, sobretudo, questionar a estrutura de poder patriarcal e, fundamentalmente, o paternalismo que resulta na solução de todos os problemas populares pelos políticos.

Trata-se, na verdade, em essência, de um Estado que traz respostas para todas as perguntas e alívio para todos os aflitos. Há um Ministério da Saúde, um Ministério da Educação, enfim uma pasta para a solução de cada drama humano, como se fosse possível resolver, de maneira fragmentada, cada problema humano.

A saúde não pode ser concedida pelo Poder Público. Deverá ser conquistada pelo ser humano responsável. A educação é um processo que envolve toda a sociedade, em busca, fundamentalmente, da libertação dos dogmas a todos impostos pelos séculos e séculos.

A educação deve buscar uma mudança comportamental. Não se confunde com a transmissão de conhecimentos.

A grande crise é do conhecimento dividido, alienado, escravizante.

Precisa-se inaugurar na humanidade um conhecimento que liberte, que reconheça a multidimensionalidade dos fenômenos da vida, e que permita o homem encontrar a verdade nas coisas mais simples.

A sofisticação tecnológica faz diagnósticos mais precisos, tratamentos cada vez mais violentos e ataques frontais às doenças. E cada vez mais não se busca compreender às múltiplas causas que desencadeiam as moléstias. As drogas apenas eliminam os sintomas. E acreditasse assim que as doenças foram curadas.

Indiscutivelmente, a humanidade acumulou um grande número de conhecimentos. Porém, carece-se de sabedoria; não se consegue viver em harmonia com a natureza, respeitando a vida.

“Note-se que até os nossos dias, o que se define por saber em nível ocidental é um tipo de conhecimento ‘interessado no domínio da natureza’ e da própria espécie humana, ‘para o aproveitamento imediato dos conhecimentos. Trata-se, pois , de filosofia político-econômica que ainda explora o ‘homem pelo homem’, simultaneamente violentando a natureza, a princípio deixando a impressão de riqueza e de prazer mas já mostrando a inquetante sensação de perigo, visível pelo mundo afora. Vê-se, assim, que é um conhecimento elitizado e fundado nos antigos princípios do imediatismo predatório e do individualismo utilitário ainda bem vivos em nossos dias nos quais o Direito Ecológico ou Ambiental – mesmo sendo o mais importante – não consegue ter eficácia, pouco passando de retórica ou do que chamaria ‘ecologia de papel’. Por isso, até a mensagem judaico-cristã: ‘crescei, multiplicai e dominai o mundo’ precisa ser interpretada com mais cuidado e maior rigor crítico.”

 

Conhecer a vida é uma imposição. Mas deve-se, sobretudo, respeitá-la. Ela é mais complexa do que se possa imaginar. Historicamente, os métodos construídos dão uma idéia dividida, isolada  dos fenômenos da natureza.

O homem quer dar sempre a última palavra, a solução definitiva para os intrincados problemas humanos.

O poder político resolve.O Judiciário decide. Aplica a lei, acreditando que é ela o instrumento adequado para resolver conflitos num regime democrático.

“O que distingue a democracia é ter inaugurado uma história na qual foi abolido o lugar do referente de onde a lei ganhava sua transcendência, o que não torna, por isso, a lei imanente à ordem do mundo, e, ao mesmo tempo, não confunde seu reino com o do poder. Faz com que a lei, sempre irredutível ao artifício humano, só dote de sentido a ação dos homens com a condição de que eles assim o queiram, de que eles assim a apreendam, como razão de sua existência e condição de possibilidade para cada um de julgar e de ser julgado. A separação entre legítimo e ilegítimo não se materializa no espaço social, é apenas subtraída à certeza, porquanto ninguém poderia ocupar o lugar do grande juiz, porquanto esse vazio mantém a exigência o saber. Dito de outra maneira, a democracia convida-nos a substituir a noção de um regime regulado por leis, de um poder legítimo, pela noção de um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo – debate necessariamente sem fiador e sem termo. Tanto a inspiração dos direitos do homem quanto a difusão dos direitos em nossa época atestam esse debate.”

 

Por óbvio, o termo modernidade não tem um significado unívoco. Todos os que tentaram determinar com precisão o seu significado se deram mal. 

A modernidade, em todo o tempo, sempre traz o novo, que surge para a superação do velho, como já se destacou anteriormente.

A modernidade pode trazer à baile valores antigos. Os pré-socráticos, como Anaximandro e Heráclito, tinham uma visão holística do mundo, como os orientais. Hoje se critica a visão fragmentada. 

O que se quer no novo século é recompor o mosaico da vida, reconhecer a ligação que há entre todos os fenômenos do universo. E construir uma democracia verdadeira, estável, em que haja a possibilidade de convivência pacífica de todos os seres.

A democracia verdadeira é total, prevalecendo tanto nas relações políticas, como nas relações microfísicas de poder. A democracia real deverá se caracterizar pela ética de tolerância, pelo respeito a todas as correntes de pensamento. A democracia deverá sempre ser construída e desconstruída, pensada e repensada permanentemente.

Atente-se para a advertência feita por Alain Touraine:

“A democracia é antes de tudo o regime político que permite aos atores sociais formar-se e agir livremente. São os seus princípios constitutivos que comandam a existência dos próprios atores sociais. Só há atores se se combinar a consciência interiorizada de direitos pessoais e coletivos, o reconhecimento da pluralidade dos interesses e das idéias, particularmente dos conflitos entre dominantes e dominados, e enfim a responsabilidade de cada um a respeito de orientações culturais comuns. Isso se traduz, na ordem das instituições políticas, por três princípios: o reconhecimento dos direitos fundamentais, que o poder deve respeitar; a representatividade social dos dirigentes e da sua política; a consciência de cidadania, do fato de pertencer a uma coletividade fundada sobre o direito.”

 

A democracia é o grande sonho dos homens. Só que não se trata de uma democracia política apenas. Deve ser  uma democracia que permita o uso da palavra por todos, que possibilite a convivência pacífica entre todos os homens, dos homens com os animais e as plantas, entre todas as nações, entre todos os planetas, enfim entre todos os seres ...

Mas, mesmo assim, ainda se vislumbra em todo o mundo, o desrespeito flagrante aos direitos humanos, numa sociedade universal destituída de ideologia, que destrói o seu ambiente natural e que busca desesperadamente respostas definitivas para todos os problemas, respostas para todas as perguntas, fórmulas para todos os problemas.

“O direito assume irresistivelmente essa curva maléfica que faz com que, se uma coisa é evidente, todo o direito seja supérfluo; e, se a reivindicação de direito for necessária, a coisa está perdida: o direito à água, ao ar, ao espaço atestam a extinção progressiva de todos esses elementos. O direito de resposta indica a ausência de diálogo etc.” 

 

Reinvidicam-se direitos humanos, melhores condições de vida. Quer-se preservar o meio ambiente. Busca-se tornar realidade uma sociedade solidária. Será que realmente que se quer uma sociedade melhor para todos?

No entanto, as autoridades que representam o povo parecem não atuar no sentido de construir uma sociedade universal, fraterna, livre, comprometida com a vida.

As autoridades mundiais dão a impressão de que os seus projetos individuais são mais importantes ou de que a economia ainda é o ramo mais importante do conhecimento humano. Tudo tem que ser viável economicamente, tudo que tem trazer riqueza, mesmo que as conseqüências sejam drásticas para o meio ambiente e traga prejuízos para as pessoas.

 

 

A crise da sociedade de consumo.

 

“Os corpos são móveis como rios, e neles a matéria se renova como a água da torrente.”

Heráclito

                              

A crise é uma expressão que traz em si uma idéia de dificuldade, de empecilho, de embaraço para se atingir um determinado objetivo. Mas a crise é algo natural, é um aspecto negativo da vida e que pode ser transmutado em positivo. A crise é dificuldade e, ao mesmo tempo, é uma oportunidade de mudança.  Sem crise não se muda de rumo. Sem dificuldade não se valoriza a conquista.

Tudo está em movimento. O momento que se vive não se repetirá. A sociedade de consumo é apenas uma passagem. A sociedade desigual, que concentra riqueza numa minoria, não consegue proporcionar felicidade a todos.

“Todas as coisas, em verdade, estão em movimento. Todo o ser é um movente. O movimento é o que há de mais absoluto no Mundo.

Ao estudar o movimento, verificamos antes de tudo, que o movimento é sempre movimento de um sêr[sic]. Não se compreende um movimento sem um sêr[sic] que se movimente. Logo o sêr[sic] e o movimento são concomitantes.

Sustentar que o movimento precede o sêr é sustentar que aquilo que se movimenta não é, ou seja, que o que é não é. Ora, isto constitui negação do princípio de identidade, e é um absurdo. Em conseqüência, o que podemos afirmar, de acordo com a evidência, é o que o sêr suporta o movimento.

Mas esta conclusão deve ser enunciada com cautela. Depois da descoberta de que a micropartícula é corpúsculo e onda, não parece impossível que o sêr , que se movimenta, seja também movimento. Não parece impossível que movimentos existam que sejam movimentos de movimentos. Note-se que isto não invalidaria a afirmação de que o movimento é sempre movimento de um sêr[sic], como bem sabem os filósofos.

Havendo movimento, um sêr[sic] ou muda de lugar ou se transforma. Os movimentos ou são de transporte ou de transformação.”

 

O universo vive em ciclos. As coisas vão e vêem permanentemente. A mudança é a regra do grande jogo da vida. Da sociedade primitiva à sociedade industrial, foi um passo para se chegar à dita sociedade de consumo, que tudo oferece a preços módicos. Tudo é criado e tudo pode ser adquirido, até mesmo a felicidade. Será?

              Hoje vive-se numa sociedade em que a tecnologia ganha hoje um papel de destaque.  A sociedade capitalista necessita dela para que haja a felicidade, de, em cada lar, existir, pelo menos, um televisor, um aparelho de videocassete, um carro. A sociedade de consumo proporciona tudo, promete felicidade, claro que mediante um determinado custo econômico. Enfim, ela quer que haja paz, para que se atinja a alegria.

Os alimentos são refinados. Deles são retiradas as fibras, vitaminas e sais minerais. Há uma alimentação altamente degenerativa. Os alimentos são destituídos dos elementos vitais para a vida. Assim, as pessoas devem recorrer às farmácias para suprir dos nutrientes necessários. E os medicamentos químicos não conseguem corrigir os defeitos e desequilíbrios orgânicos.

Pelo contrário, as drogas produzem novos desequilíbrios, tendo em vista que são compostos por elementos químicos, sintetizados, estranhos ao corpo e que somente atacam os sintomas da doença, vale dizer, não combate as causas desencadeadoras das moléstias.

Na sociedade de consumo o homem só serve na qualidade de promotor de lucro. O desrespeito é total. Os produtos desnaturados, quimificados, carcinogênicos, degenerativos, são livremente vendidos nos supermercados e lojas, sem que o Estado esboce qualquer atitude de rejeição em relação a eles.

O que traz a modernidade, afinal de contas?

“A força principal da modernidade, força de abertura de um mundo que estava cercado e fragmentado, se esgota à medida em que as mudanças se intensificam e aumenta a densidade em homens, em capitais, em bens de consumo, em instrumentos de controle social e em armas.”

 

A modernidade nasceu para se esgotar, para se aperfeiçoar, para ser superada.

“Este esgotamento da idéia de modernidade é inevitável, já que ela se define, não como uma nova ordem, mas como um movimento, uma destruição criadora, para retomar a definição de capitalismo de Schumpeter. O movimento atrai aqueles que durante muito tempo se fecharam na imobilidade; ele cansa, torna-se vertigem quando é incessante e não conduz senão à própria aceleração. Por ser a modernidade uma noção mais crítica que construtiva, ela requer uma crítica que seja por si mesma hipermoderna, o que protege contra as nostalgias que, sabemos, tomam facilmente uma aparência perigosa.”

 

A modernidade traz uma proposta de ruptura. Será que, efetivamente, se consolidou ou essa é uma busca permanente da humanidade? Será que se chegou já à pós-modernidade ou jamais se conseguirá construir a verdadeira modernidade? A modernidade é um conceito em permanente edificação?

 

“Como podemos falar de sociedade moderna se nem ao menos foi reconhecido um princípio geral de definição da modernidade? É impossível chamar de moderna uma sociedade que procura acima de tudo organizar-se e agir segundo uma revelação divina e uma essência nacional. A modernidade não é mais pura mudança, sucessão de acontecimentos; ela é fusão dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa. Por isso, ela implica a crescente diferenciação dos diversos setores da vida social: política, economia, vida familiar, religião, arte em particular, porque a racionalidade instrumental se exerce no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer um deles seja organizado no exterior, isto é, em função de sua integração em uma visão geral, da sua contribuição para a realização de um projeto societal, denominado holista por Louis Dumont. A modernidade exclui todo o finalismo. A secularização e o desencanto de que nos fala Weber, que definiu a modernidade pela intelectualização, manifesta a ruptura necessária com o finalismo do espírito religioso que exige sempre um fim da história, realização completa do projeto divino ou desaparecimento de uma humanidade pervertida e infiel à sua missão. A idéia de modernidade não exclui a de fim da história, como testemunham os grandes pensadores do historicismo, Comte, Hegel e Marx, mas o fim da história é mais o de uma pré-história e o início de um desenvolvimento produzido pelo progresso técnico, a liberação das necessidades e o triunfo do Espírito.” .

 

Com efeito, a modernidade não pode ser definida. Ela é um desafio lançado à humanidade, permanentemente, para que se encontrem novos caminhos, para possam ser superadas as dificuldades e para que as pessoas consigam viver um pouco mais a fraternidade da solidariedade.

A modernidade sempre é portadora de novas idéias, e quem sabe buscando a superação dos seus próprios projetos. Fica difícil definir também que projetos são esses.

Delimitar as propostas da humanidade é impossível. Há sempre um anseio de liberdade, de justiça e de paz. Mesmo assim, as guerras são produzidas para satisfazer os interesses financeiros dos fabricantes de armas ou dos fabricantes de remédios.

Há uma indústria da morte sempre presente. A saúde é algo revolucionário, porque não dá lucro a ninguém. Sem a doença não se teria o crescimento vertiginoso da indústria farmacêutica que traz drogas cada vez mais sofisticadas, com seus “maravilhosos” efeitos colaterais.

Sem falar do efeito iatrogênico, que possui todo o arsenal químico, é utilizado para atacar os sintomas das moléstias.

Por que isso? Porque a necessidade de se evitar as grandes internações hospitalares dos trabalhadores. Os medicamentos que resolvem de imediato as moléstias permitem o retorno mais rápido do operário à produtividade, vale dizer, à geração de lucros dos empresários.

A medicação que preconiza uma cura mais suave, real, não serve. Se o homem levou anos contraindo uma doença, com vai erradicá-la definitivamente em dias? Como atacar uma doença só levando em consideração o órgão no qual ela está instalada? Como se vai superar a moléstia se for considerada um mal, quando ela é produzida pelo próprio corpo, com o objetivo de estabelecer o seu equilíbrio? Como se considerar a doença como apenas uma manifestação fisiológica, quando corpo e mente compõem uma unidade? Como conseguir uma cura definitiva quando se sabe que a saúde é um conceito relativo, que envolve aspectos fisiológicos, mentais e sociais?

Na sociedade de consumo, que pode ser considerada o ápice do projeto de modernidade, tudo (ou quase tudo) é descartável. É a sociedade das facilidades, dos produtos industrializados, dos alimentos repletos de aditivos químicos, dos medicamentos que resolvem todas doenças.

Vive-se uma grande revolução tecnológica, indiscutivelmente.

Ela traz respostas para os anseios humanos, porém traz novos questionamentos.

Velhos problemas ressurgem. As técnicas modernas não conseguem contorná-los.

A sociedade de consumo traz o sonho possível, vale dizer, que possa ser suprido como necessidade. Só que a cada dia surgem novas necessidades, novos produtos, novos sonhos, novas tristezas.

As necessidades são criadas pela mídia, especialmente pela mídia eletrônica, que tem uma grande penetração no povo, na sociedade de massa angustiada, oprimida e terrivelmente manipulada por tudo e por todos.

Mas o ser humano é mais do que a pseudomodernidade imagina. Não tem apenas um aspecto fisiológico. É energia, alma, unidade, pluralidade, complexidade.

Nem o que Descartes pensava a respeito dele.

“Descartes se liberta da idéia de Cosmos. O mundo não tem mais unidade; ele nada mais é que um conjunto de objetos oferecidos à pesquisa científica, e o princípio da unidade passa ao lado do criador que só é compreendido através do pensamento de Deus, portanto através do Cogito cujo procedimento está em oposição ao idealismo. A consciência é tomada na sua finitude, na sua temporalidade. Assim como o homem não se identifica completamente a Deus, Deus não deve ser transformado em um ser temporal e histórico a exemplo do homem. Este está entre Deus e a natureza.”

 

Indiscutivelmente, houve um grande avanço. A separação foi fundamental para que houvesse o avanço científico. Antes disso, tudo era manifestação da vontade de um Deus soberano, que tudo controlava e que tudo determinava.

Só que a ciência buscou num primeiro momento explicações materiais a respeito dos fenômenos da vida.

Mas o homem é mais que do que corpo; possui uma mente transcendental e uma alma que perpassa, indestrutível.

“Essa dupla natureza do homem, ao mesmo tempo corpo e alma, está também no centro do pensamento de Pascal. ‘O homem é o mais prodigioso objeto da natureza; pois ele não pode conceber o que só é corpo e ainda menos o que só é espírito e menos que só é espírito e menos que qualquer coisa como um corpo pode estar unido a um espírito. Este é o máximo das suas dificuldades e entretanto é seu próprio ser.’”

 

A sociedade de consumo proporciona tudo, saúde, segurança, beleza.

A segurança é proporcionada por uma estrutura de poder patriarcal, machista, militarizada, gera mais insegurança.

Hoje o mundo está diante de um dilema seríssimo: o que fazer com o sistema penitenciário?

 

“Os cárceres são, na realidade, um espelho da violência de um sistema que pretende manter os desfavorecidos economicamente à margem do corpo social, sistema no qual as cadeias abarrotadas explicitam muito mais o caráter vingativo da pena, do que qualquer possível proposta socializadora.”

 

Em decorrência da visão fragmentada e externa que permite ver separadamente e externamente o mal, nas penitenciárias se derrama todo o mal da humanidade. E nos hospitais estão os doentes.

 Quando o tecido social adoece, a parte negativa dele é retirada, numa demonstração inequívoca da visão maniqueísta. O mal é visível, pode ser identificado e afastado. E o mal é externo, consegue-se percebê-lo sempre no outro.

O negativo não está presente em cada célula, em cada átomo, para que a vida se realize na sua plenitude? Claro que sim, haja vista que, sem as polaridades, não há o equilíbrio desequilibrante, que se recicla permanentemente para que a vida possa existir.

Quando uma pessoa adoece, o seu mal é atacado. Os processos cancerosos e infecciosos são atacados por poderosos quimioterápicos. A cirurgia, por sua vez, é a grande arma que dispõe a técnica médica para a eliminação do câncer. Para a AIDS, está reservado um arsenal químico potente.

Como no ataque à criminalidade, também agindo contra a doença o terapeuta quer eliminar o mal. A patologia, tanto individual quanto social, vem sendo tratado como um elemento externo, estranho ao corpo.

A violência é um fenômeno tão simples assim, que pode ser combatido simplesmente com o aprisionamento dos maus.

A sociedade de consumo vê apenas partes do todo.

Ela não vê o homem  humano, que não quer explicações definitivas, e que tem uma percepção da totalidade.

 

“A perfeição do Homem é diretamente proporcionnal à clareza de suas experiência intuitiva, do seu ‘élan vital’. O homem intuitivo é o rei dos realistas. A intuição percebe o TODO antes de suas partes posto que essas partes não passam de manifestações parciais, incompletas e sucessivas deste mesmo TODO, o qual é completo e simultâneo, não sujeita às leis do espaço-tempo. O intelecto percebe as partes antes do TODO.”

 

O homem moderno deverá ser mais sapiens que demens, mais intuitivo que racional, mais feminino que masculino, mais sensível.

Só assim se conseguirá superar a estrutura patriarcal de poder, opressora, racional, dominadora da natureza.

A sociedade de consumo é positiva, porque traz ao alcance de todos o que nem se imaginava há algum tempo atrás. Porém, tem-se que ter a capacidade de separar o essencial do acidental, o importante do secundário.

Surge na modernidade o sujeito como um ator imprescindível para o prosseguimento da vida. Só que o sujeito precisa ser desmascarado, vale dizer, dele precisam retiradas as camadas sobrepostas pelo processo educacional, cultural,  pela família, pela mídia, pela política.

O que se deseja é um sujeito autêntico, quântico, frágil e suficientemente forte para que possa compreender a magnitude da vida e que tenha consciência do papel que possui para promover a transformação social. A grande revolução ocorrerá a partir da mudança de cada ser humano. Parece tão pouco, porém as grandes revoluções eclodem a partir de pequenos minorias.

“A idéia de sujeito está longe da submissão à Lei ou ao Superego. O sujeito não é mais um Ego; por isso eu desconfio da idéia de pessoa, porque ela supõe uma coincidência entre o Ego e o Eu que julgo irreal. O sujeito é uma vontade consciente de construção da experiência individual, mas ele é também adesão a uma tradição comunitária; ele é gozo de si, mas também submissão à razão. Ele não substitui o mundo desabrochado do pós-modernismo por um princípio todo-poderoso da unidade; é uma noção ‘fraca’ que existe menos como afirmação central doque como entrelaçamento de relações entre empenho e desprendimento, entre indivíduo e coletividade.”

 

 

O sujeito é reconhecido como ator, que desempenha um papel imprescindível para a construção de uma nova realidade. A crise deve contribuir para o aperfeiçoamento das instituições.

 

A crise da visão fragmentada. A partir do século XVII, do surgimento do Estado Moderno e da laicização do poder, começa-se a delinear um projeto de modernidade. Parte-se do método indutivo de Bacon. Consolida-se o método dedutivo de Descartes. Inaugura-se a dialética, aplicando-se na vida, posteriormente, a visão marxista, que quer pôr termo à exploração do capital e que quer construir uma sociedade harmônica, livre dos burgueses e do domínio da classe dominante. Quer-se também aí controlar a vida. Busca-se estabelecer com segurança o futuro, a partir da ruptura.

Em face da visão fragmentada, promoveu-se historicamente a separação entre o político e o teológico, o conhecimento científico e o conhecimento vulgar.

Contudo, o que se verifica é que, em nenhum momento, consolidou-se, em definitivo, a laicização do poder.

 “Que se possa decifrar as transformações da sociedade política – isto é, avaliar com segurança o que se dissipa, advém, ou retorna – interrogando a significação religiosa do Antigo e do Novo, foi, no século XIX, durante muito, uma convicção amplamente partilhada. Tanto na França quanto na Alemanha, a filosofia, a história, o romance, a poesia proporcionam múltiplos testemunhos dessa convicção.” .

 

Se a separação foi feita para que houvesse a demarcação do espaço político e do campo da ciência, a fim de que se consolidasse o domínio dos valores masculinos, ela hoje é obstáculo para que se possa compreender a vida em sua complexidade, que, na verdade, não respeita fronteira.

 

“A historiografia marxista, surge, como já dissemos, regida pela representação de uma ruptura na história e de uma cisão na sociedade que já pertencia aos atores revolucionários, se esboça pela primeira vez no panfleto de Sieyés.”

 

 Basta uma leitura perfunctória da história social da criança e do adolescente para que se tenha uma idéia da separação que se operou entre adultos e crianças, entre ricos e pobres, entre homens e mulheres.

“Minha primeira tese é uma tentativa de interpretação das sociedades tradicionais. A Segunda pretende mostrar o novo lugar assumido pela criança e a família em nossas sociedades industriais. A partir de um certo período (o problema obcecante da origem, ao qual voltarei mais tarde) e, em todo caso, de uma forma definitiva e imperativa a partir do fim do século XVII, uma mudança considerável alterou o estado de coisas que acabo de analisar. Podemos compreendê-la a partir de duas abordagens distintas. A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito de muitas reticências e retardamento, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.

Essa separação – e essa chamada à razão – das crianças deve ser interpretada como uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às leis do Estado. Mas ela não teria sido realmente possível sem a cumplicidade sentimental das famílias, e esta é a segunda abordagem do fenômeno que eu gostaria de sublinhar. A família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes. Essa afeição se exprimiu sobretudo através da importância que se passou a atribuir a educação. Não se tratava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos bens e da honra. Tratava-se de um sentimento inteiramente novo: os pais se interessavam pelo estudo de seus filhos e os acompanhavam numa solicitude habitual nos séculos XIX e XX, mas outra desconhecida. Jean Racine escrevia a seu filho Louis a respeito de seus professores como o faria um pai de hoje (ou de ontem, um ontem muito próximo).”

 

A visão fragmentada está em crise. Surgem, a cada dia, novas perguntas sem respostas satisfatórias.

A ciência buscou fragmentar para compreender. Os métodos indutivo, dedutivo e mesmo o dialético buscam a compreensão (não será a apreensão?) de determinados fenômenos da vida.

Sociologicamente, pois, opera-se a separação entre jovens e adultos; entre jovens e velhos; entre homens e mulheres; esquerdistas e direitistas; pobres e ricos.

Da fragmentação parte-se para a violência, para o ataque das frações mais débeis, mais “ignorantes”, politicamente insignificantes.

Surgem, no entanto, novas disciplinas e áreas do conhecimento dentro dessa visão científica. O Direito Ambiental é um exemplo disso. Ele trata da vida na sua magnitude, na sua complexidade, na sua multidimensionalidade, trazendo na sua programa uma visão holística, reconhecida expressamente pelo próprio legislador.

O objeto de estudo é a natureza. Não se trata de um objeto estático, mas de um objeto dinâmico, inserido na processualidade maior da vida.

A sociedade é complexa, está em permanente modificação. Renova-se a cada dia.

Tudo flui. Não há nada estático. Não  basta separar o todo em partes para que possa se compreender determinado fenômeno. Tudo vai e vem. Um ciclo surge para superar o outro.

O que é moderno hoje amanhã não será mais. O velho surge como moderno.

Não é possível se estabelecer uma política acabada que garanta a segurança definitivamente.

Por isso, tem-se a impressão de que a violência campeia, de que o medo impera e de que a insegurança está em toda sociedade, em toda parte. E se consideram violência o ato praticado especialmente pelos pobres e marginalizados da sociedade.

“Cabe aqui advertir que apesar do impacto provocado pelos eventos criminais largamente associados às populações pobres, não são estes os mais lesivos à sociedade como um todo. As conseqüências de danos ecológicos e fraudes previdenciárias podem levar à morte milhares de pessoas pela falta de acesso a outro bem público, distinto daquele que ora cuidamos mas igualmente necessário – a saúde. No entanto, normalmente não há uma identificação e um impacto direto destes crimes na opinião pública. O sangue não jorra na televisão quando esses fatos são noticiados, pois o que aparece são sujeitos que não atendem ao estereótipo de criminosos consolidado no senso comum e orientador das instâncias formais de controle.”

 

Da fragmentação se deve partir para a visão holística que, por seu turno, não descarta o estudo das partes. Mas não se pode deixar de perceber a relação que há entre todos os elementos.

 

A modernidade complexa. Se é difícil estabelecer, com precisão, a partir de que momento tem-se a modernidade, também não é fácil estabelecer qual é verdadeiramente o seu marco teórico. A complexidade tem por objetivo revolucionar a ciência, porque ela, por si só, já é um método. Mas não se trata de um método pronto, mas que deve ser destruído e reconstruído e repensado permanentemente.

“La scienza è soprattutto un’attività sperimentale, perciò dobbiano guardarci attorno per avere un’idea della generalità e dell’importanza dei fenomeni complessi.

Abbiamo già sottolineato come il fascino esercitato dalla biologia su ognuno di noi sai responsabile di una diffusa identificazione della complessità com la vita. Sorprendentemente, proprio questa idea perenne sarà la prima a cadere nella nostra strada verso la comprensione della complessità.”

 

A complexidade não traz respostas prontas. Pelo contrário, contribui para a formulação de novas e importantes perguntas. Sem dúvida, é a partir delas que se construirá (e se desconstruirá) a nova realidade. Cada conhecimento deve ser entendido como expressão de uma liberdade relativa. Não há verdades absolutas. Todas elas são relativas e construídas a cada instante.  Mesmo o trinômio verdade-evidência-certeza de que trata a metodologia científica deve ser objeto de análise diuturna. De acordo com os cientistas tradicionais, havendo evidência, o desvelamento, o desocultamento do ser, pode-se afirmar com certeza que isso se constitui numa verdade.

Que verdade é essa? É uma verdade relativa, que deve ser permanentemente edificada, a partir do questionamento de todo o processo histórico. Desde o patriarcado instalado na humanidade não se percebeu uma grande modificação na relação de poder formada originariamente.

Ademais, é uma relação em que há alguém que exerce um poder soberano.

O homem não é uma máquina, como acredita a ciência. É um ser complexo, conectado à vida, sendo a maior expressão da vida.

Não há problemas simples.

Todos eles exigem uma profunda reflexão.

Não se pode compreender a vida olhando apenas um dos seus aspectos.

Só a complexidade permite que se compreenda determinado fenômeno na sua multidimensionalidade.

 

“A juventude como construção social: em nenhum lugar, em nenhum momento da história, a juventude poderia ser definida segundo critérios exclusivamente biológicos ou jurídicos. Sempre e em todos os lugares, ela é investida também de outros símbolos e de outros valores. De um contexto a outro, de uma época a outra, os jovens desenvolvem outras funções e logram seu estatuto definidor de fontes diferentes: da cidade ou do campo, do castelo feudal ou da fábrica do século xix, da organização do compagnonnage no ancien régime ou na cidade antiga. Tampouco se pode imaginar que a condição juvenil permaneça a mesma em sociedades caracterizadas pelos modelos demográficos totalmente diferentes: sob tal ponto de vista, o século xii europeu apresenta, por exemplo, analogias significativas com os países do Terceiro Mundo de hoje, em que mais da metade dos habitantes têm menos de vinte anos, o que impõe à sociedade um dinamismo e um ‘estilismo’ incomparáveis com os das sociedades ocidentais, que envelhecem ostensivamente.”

 

A juventude toma a iniciativa para construir a sociedade e, no entanto, não pode dispensar a sabedoria dos mais velhos. Ao contrário do oriente, o ocidente não valoriza toda a experiência acumulada pelos mais velhos.

O novo homem revolta-se contra a estrutura de poder e a divisão entre jovens e velhos, nacionais e estrangeiros, pretos e brancos.

Afirma Osho que :

“O novo homem é uma rebelião, uma revolução contra todos os condicionamentos que podem escravizá-lo, oprimi-lo, explorá-lo – apenas dando a ele esperanças de um céu fictício, assustando-o, chantageando-o com outro fenômeno fictício: o inferno. Todos os velhos meios de vida estavam estranhamente em concordância com um ponto: que o homem é um animal de sacrifício aos pés de um deus fictício.”

 

O Direito Masculino cura?

O Direito consegue curar a criminalidade? Ele ataca as raízes da criminalidade? A legislação é suficientemente esclarecedora? Ela consegue tornar as pessoas mais felizes?

Claro que, primeiramente, há a necessidade de se compreender o verdadeiro significado da expressão cura.

O homem busca desesperadamente a cura para as doenças que afligem a humanidade. Do “terrível” câncer à desintegradora AIDS, um batalhão de pesquisadores está mobilizado para a descoberta de drogas que visem um ataque aos grandes inimigos da humanidade.

Na Medicina os tratamentos objetivam eliminar apenas os sintomas das doenças.

A cura deve ser educacional, vale dizer, deverá o ser humano, num primeiro momento,  ter consciência da complexidade da vida.

Para se compreender a cura tem-se que entender a natureza da matéria, que é energia, que flui permanentemente e que apresenta, conforme a Física Quântica, uma probabilidade de existir.

Para que se possa compreender um determinado fenômeno não basta apreendê-lo nos compartimentos frios dos métodos científicos. O que se sabe do comportamento de uma determinada espécie de pássaro em seu cativeiro?

Compreender é ver. Contudo, não se trata de apenas ativar os sentidos. É ver com amor e respeito. Não de se trata de um domínio, de um controle, de uma opressão e, sim, de uma leitura subjetiva de determinado fenômeno ou fato.

Infelizmente, o que a ciência sempre quis foi dominar a natureza, escravizá-la, torná-la subserviente aos seus interesses e planos.

É claro que há um avanço indiscutível no campo técnico-científico. O homem está buscando e descobrindo novas chaves.

O DNA é uma chave, que permite abrir determinadas portas e mirar determinadas facetas da vida. Mas não traz soluções para todos os questionamentos. Não se pode olvidar da criatividade, de que a vida tende a driblar o determinismo neurogenético.

Em verdade, a vida é mais criativa do que a ciência imagina. O homem não é uma máquina, em que peças velhas ou estragadas possam ser substituídas e ela volta a funcionar normalmente. Há rejeição, e somente múltiplas drogas conseguem controlar o ataque ao órgão transplantado.

O corpo é um sistema. As doenças, todas elas, são sistêmicas. Matéria e energia são estados alternados, conforme a Física Quântica. Assim sendo, corpo e mente compõem uma unidade. A energia é real, perpassa todo o corpo. Hoje a acupuntura é reconhecida como especialidade médica, e os profissionais da Medicina têm de tentar compreender que o ser humano é uma espécie de fusível em relação ao Universo e que as doenças, antes de serem problemas meramente fisiológicos, são desequilíbrios energéticos.

Se se entender por cura o encontro definitivo de uma solução para os problemas humanos, estar-se-á atentando contra a própria ciência, que hoje sabe que as verdades relativas, e que o homem está permanentemente em busca de respostas para as mais complicadas questões.

A humanização da ciência é fundamental para que possa reconhecer as conquistas científicas como verdades relativas.

Para se curar tem que se ir à raiz dos problemas.

O sistema patriarcal ele continua ainda a dar soluções definitivas para problemas que não são definitivos.

“O sistema patriarcal chegou até nós por intermédio dos nômades, que em seus deslocamentos se tornaram invasores, inimigos dos ocupantes dos territórios atravessados. O guerreiro e os valores masculinos por eles representados eram então um elemento essencial à sobrevivência da tribo; ora esses valores masculinos por ele representados eram então um elemento essencial à sobrevivência da tribo; ora, esses valores masculinos são também do intelecto. Em nosso mundo moderno, eles se manifestam na exploração e na conquista do mundo material, na ciência, tecnologia, organização, indústria [...], logo, nas atividades do tipo diurno, solar. Eichamann contrapôs os valores femininos e masuclinos ao dizer que ‘a mulher é guiada pela emoção, não pelo intelecto’, mas, como ele não era filósofo, devemos questionar sua noção de emoção e, aliás, também a de intelecto.”

 

O patriarcado surgiu como necessidade e acabou se concretizando como ideologia universal, imperando nas relações políticas, sociais, econômicas, religiosas.

 

O Direito apresenta uma cura definitiva? Existe uma cura definitiva?

 

 Primeiramente, há a necessidade de saber o significado da expressão cura.

A cura seria algo definitivo. É a busca de uma estabilidade, de um controle sobre algo.

O remédio, como o próprio nome diz, remedia o mal. Não vai às suas raízes. Ataca os sintomas da doença.

A modernidade é uma rebelião.

A modernidade é a revisão dos velhos conceitos.

A modernidade é a permanente construção de novos conceitos.

É possível esgotar-se todo o projeto da modernidade? O que caracteriza a modernidade?

Impossível se estabelecer as características de um único projeto. Existem vários projetos. Qual o projeto verdadeiro? Ou será que nunca existiu propriamente um projeto de modernidade?

Pode-se falar em pós-modernidade?

Ou a modernidade renasce a cada momento, sempre que se verifica que as estruturas envelheceram, que as questões sociais se tornam mais complexas?

A modernidade nem sempre se constitui na construção de algo novo. Pode ser a volta ao passado. A sociedade ocidental é regida pela cultura patriarcal e na reprodução de uma educação repressora da livre expressão da sexualidade.

A mudança de valores será a mola mestra da transformação. Precisa-se mudar os valores –  deve-se insistir; sem alteração dos valores, não se modifica a visão de mundo.

“Esses valores femininos são: o amor, o afeto, as relações humanas verdadeiras, o contato com a natureza e a vida.”

 

Obviamente que esses valores não estão apenas nas mulheres.

 

“Ora, esses valores também estão no homem, mas como a educação patriarcal os reprimiu, descobri-los é uma tarefa dura. O procedimento inicial, aliás, é compreender que nada há... a compreender, mas a perceber, sentir. Por isso, no caminho de Esquerda, que passa pela mulher, é ela a iniciadora. Ela abre para o homem as portas secretas para profundeza do ser, para o derradeiro, o cósmico. Se o tantra fosse uma religião, as mulheres seriam suas sacerdotisas, e seus sacerdotes seriam os homens que tivessem desenvolvido, graças à mulher, suas qualidades femininas de intuição e transcendência.”

 

A modernidade sempre traz esperança. A modernidade, quase sempre,  é a própria esperança de mudança. Só uma regra na vida que é a mudança permanente. A vida se constrói, se desconstrói a cada instante, como a dança do Deus Shiva dos hindus.

O Direito para ser eficaz no controle da racionalidade precisa despertar a sensibilidade nos seus atores, iluminado pela sensibilidade do elemento feminino, tão necessário para que se dê a promoção da verdadeira justiça.

 

 

 

 

 

 

 

Qual a saída? Há uma saída ética.

 

Não há uma única saída. Mas existe uma saída ética que tem caráter revolucionário, porquanto visa mudar o homem. Para que se possa compreender o papel da ética na sociedade nova precisa-se primeiramente diferenciá-la da moral, se isso é possível.

              É a ética a ciência que tem por objetivo o estudo da moral da sociedade e sua constantes modificações. Em face da visão cartesiana a ética afastou-se do Direito, assim com a ciência afastou-se da Filosofia. Os saberes divididos passaram a tratar as diferentes questões humanas. As questões da vida passaram a ter um papel de destaque nas questões políticas, mesmo hoje quando se fala em globalização, em desestatização e em construção de uma nova realidade política. As questões da vida e morte, mais do que nunca, permeiam o Estado. Compete ao legislador disciplinar a nova realidade. O juiz deverá enfrentar e decidir questões cada vez mais complexas, mais éticas do que jurídicas. Fica difícil cada dia mais difícil separar as questões éticas das questões jurídicas. A programação jurídica aumenta, sem, contudo, se vislumbrar uma solução para o problema, sem que se promova uma profunda reformulação no próprio sistema jurídico.

Peter Singer não se preocupa em fazer a distinção entre moral e ética.

 

 

“Portanto, a primeira coisa que a ética não pode ser defendida como uma série de proibições ligadas ao sexo. Mesmo na era da AIDS, o sexo não coloca, absolutamente, nenhuma questão moral específica. As decisões relativas ao sexo podem envolver considerações sobre a honestidade, a preocupação com os outros, a prudência, etc., mas não há nada disso nada de particular ao sexo, pois o mesmo poderia ser dito das decisões sobre como dirigir um carro. [...]  Desta maneira, o presente livro passa ao largo da moral sexual. Há problemas éticos mais importantes a serem considerados.”

 

A humanidade, na virada do milênio, precisa encontrar soluções para os graves problemas que atingem as sociedades. O Direito não consegue dar respostas satisfatórias para os complexos problemas humanos gerados pela evolução tecnológica.

Há a necessidade de serem promovidas profundas reformulações nos valores, como se ressaltou acima.

 

Graves violações éticas.

 

Ainda hoje, nesse início do século XXI, as pessoas se alimentam com cadáveres de animais. Há uma indústria que produz grande quantidade de proteínas, alicerçada na velha cultura nutricional americana da grande necessidade proteica dos organismos humanos.

Os problemas humanos são simplificados. As doenças, regra geral, não vistas como problemas multicausais. São atacadas violentamente ainda com procedimentos cirúrgicos, com quimioterápicos poderosos que criam vírus cada vez mais potentes. Ter uma fé inabalável nos métodos também não se constitui numa grave violação ética?

As condutas jurídicas continuam ainda individualizadas. As pessoas continuam sendo punidas como elas, isoladamente, fossem responsáveis pelos atos, vale, dizer, como se elas fossem verdadeiras ilhas? Ademais, não se leva em consideração o papel da mídia, do sistema capitalista ou do próprio sistema jurídico repressor como responsável pela criação de condutas criminosas.

Não há uma grave violação ética quando se dá prioridade a um sistema educacional que escraviza, concentrando o conhecimento nas mãos de alguns, que, por seu turno, tornam-se dependentes de outros especialistas. Onde fica a necessária autonomia do ser, para ser livre e responsável pelos seus atos?

Não há delitos graves, que Singer diz que são equivalentes morais do assassinato, quando os governantes se apropriam de dinheiro público? Quantas crianças morrem pela falta de alimentos e de medicamentos?

Não são os professores responsáveis pela consolidação do sistema de repressão quando se limitam a reproduzir o conhecimento oficial? Não têm os educadores verdadeiros um compromisso com o espírito científico e o espírito crítico? Não deve o processo educacional ser repensado permanentemente? O processo educacional envolve toda a sociedade.

Não se deve repensar o modelo de desenvolvimento, calcado na racionalidade? Há racionalidade no ataque violento às doenças, sem considerá-las como fenômenos complexos e multicausais?

Não há irracionalidade ao se combater a criminalidade com o emprego de violência para o controle da violência  com o afastamento dos criminosos do convívio social?

Os criminosos não produtos do próprio sistema? Não há um verdadeiro crime no aprisionamento dos marginalizados pela sociedade?

O organização patriarcal e paternalista não é o cerne de todo o problema da política, da ciência, da religião, enfim, da própria vida?

Afirma Morin que a política tradicional, esvaziada e fragmentada, tornou-se uma promessa de felicidade sem sentido.

“Ao mesmo tempo que inchou até tornar-se totalizante, a política não totalitária, tradicional, esvaziou-se e fragmentou-se. A penetração, na política, da economia, da técnica, da medicina, da biologia etc., introduziu, nos conselhos e instâncias do Estado e dos partidos, os econocratas, os tecnocratas, burocratas, experts e especialistas que fragmentaram os campos de competências em função de suas disciplinas e modos pensamentos compartimentados.”

 

E faz uma advertência logo a seguir:

“A política multidimensional deveria responder a problemas específicos muito diversos, mas não de forma compartimentada e fragmentada.”(p. 145).

 

Para que se tenha uma nova política, que reconheça em si também o não-político, precisa-se, primeiramente, recuperar a ética, bem a como a estética. A política é vida.

 

 

A necessidade de uma nova ética.

 

Indiscutivelmente, há a necessidade de se buscar uma nova ética. A ética tradicional, moralista, preservacionista dos valores tradicionais, precisa ser superada. Vislumbra-se uma revolução silenciosa, uma mudança no comportamento do ser humano. Cada vez mais, em decorrência, acredita-se que do próprio processo de globalização serão derrubadas as fronteiras e serão resgatados valores universais. Que valores são esses? Fica difícil estabelecer claramente quais são esses valores, muito embora as tradições religiosas estabeleçam um norte..

Os valores de uma nova ética, segundo Johannes Hessen, são os valores religiosos.

“Os mais altos de todos os valores são os valores do ‘Santo’, ou os valores religiosos, porquanto todos os outros se fundam neles.”

 

Os valores terão de ser permanentemente questionados para que se tenha uma ética voltada para um novo tempo, para uma sociedade essencialmente solidária.

 

“Perguntamos, por conseguinte: quando um juízo é moral e quando não o é? Isto sempre deve significar: quando ele é tal a partir da perspectiva de quem julga, portanto: quando ele é entendido como moral?(Para alguém, num dado contexto cultural). Nisto está colocado desde logo a pergunta: em que reconhecemos uma moral, ou um conceito moral? Pode-se compreender ‘uma moral’ como o conjunto de juízos morais de que alguém ou um grupo dispõe.”  

 

Os intelectuais serão responsáveis pela construção de uma nova pauta de valores, a partir de uma discussão, de maneira permanente, toda a sociedade. A responsabilidade é todos e de cada um. Cada ser humano, hoje mais do que nunca, tem que contribuir para a construção de uma sociedade melhor para todos.

O Estado não consegue mais dar respostas satisfatórias para as grandes questões humanas. O Estado tem que decidir a respeito de questões cada vez mais complexas.

As questões pertinentes à vida, à morte, aos transplantes, à saúde das pessoas são questões políticas, mas deverão ser cada vez mais discutidas por todos os seres humanos.

O sistema patriarcal-paternalista de poder sedimentou a idéia de que as questões políticas estão distantes do povo e deverão ser resolvidas pelos “iluminados’.

As questões complexas, como a inflação, deverão ser enfrentadas e resolvidas, levando-se em consideração a multimensionalidade desses fenômenos.

A ética nova requer uma estética nova. Tudo que é bom é belo. Se é justo é belo.

“—Beleza poética – Assim como dizemos beleza poética, deveríamos dizer beleza geométrica, e beleza médica; não o dizemos, porém; e o motivo é que conhecemos bem o objeto da geometria, o qual consiste em provar, e o objeto da medicina, que é curar; mas não sabemos em que consiste o prazer, objeto da poesia. Desconhecemos esse modelo natural que é preciso imitar; e, na ausência desse conhecimento, criamos estranhos termos: séculos de ouro, maravilha de nossos dias, fatal etc., e a esse jargão denominamos beleza poética.”

 

Bachelard insiste na recuperação da poética, haja vista que, segundo ele, “o conhecimento do mundo é inicialmente poético. O animismo e o empirismo das experiências originárias atestam a presença de imagens e a relação dinâmica do homem com o mundo.”

Não é a poética uma visão de confronto à ciência. Pelo contrário, contribui para a complementação da vida na sua integridade. Veja-se o que afirma Constança Marcondes Cesar, citando Bachelard, in verbis:

“A situação das ciências inspirada em Bachelard implica, portanto, uma antropologia que afirma determinada estrutura da consciência humana como suporte para as alternâncias entre a abordagem poética e científica do mundo. Esta alternância entre imaginação e razão não implica uma história irreversível; como só podemos conhecer cientificamente ‘aquilo, em torno do que sonhamos’, há sempre um resíduo de poesia em toda a abordagem científica. A poesia torna o mundo nosso, familiar, pátria humana. Emerge de um inconsciente cósmico, no qual se enraíza. A valorização poética do objeto, empregando a imaginação e a fantasia, às vezes deturpa o conhecimento rigoroso; mas não é possível abandoná-la completamente. A poesia é a expressão do lado noturno do homem; é a linguagem através da qual o esprit de finesse, invenção, criança se expõe ao homem. Abandoná-la, é perder a dimensão humana, cortar as raízes do homem no mundo. Criticar as suas contribuições, traduzir sua verdade simbólica e seu impulso no âmbito da razão; essa, a tarefa do filósofo.’ Os eixos da poesia e da ciência são, inicialmente, opostos. Tudo que a filosofia pode esperar é tornar complementares a poesia e a ciência.’ Obedecendo à direção apontada por Bachelard, procuraremos estabelecer essa complementaridade, expondo o lugar das ciências e da arte do conhecimento humano.”

 

 

O resgate do poético é o reencontro do humano no homem artificializado e faminto de vida solidária, cansado da solidão que lhe foi imposta pelo modelo competitivo capitalista.

Ser solidário deverá ser a grande meta do homem; caso contrário, ter-se-á o caos. A solidariedade é o passo mais importante para que se possa ir ao encontro do outro e compreendê-lo.

Para isso precisa-se superar o modelo patriarcal que tudo quer dominar e vencer. A Medicina Masculina, autoritária, quer combater e eliminar, com os seus poderes quimioterápicos, se possível, todos os vírus e bactérias existentes sobre a face da terra. É como se as bactérias não estivessem na terra muito antes que os homens. É como se elas não fizessem parte do equilíbrio da vida.

O Direito Masculino quer eliminar a violência com a adoção de sistemas repressivos cada vez mais intolerantes. A racionalidade do controle é ainda hoje a grande esperança, mormente no ocidente, de se obter o domínio das condutas que as classes dominantes consideram negativas.

A ética integral requer humildade. Enfim, que o homem se reconheça como peça crucial no jogo da vida, que se reconheça, sobretudo, humano.

Morin faz uma advertência séria ao projeto científico:

“Dominar a natureza? O homem é ainda incapaz de controlar a sua própria natureza, cuja loucura o impele a dominar a natureza perdendo o domínio de si mesmo. Dominar o mundo? Mas ele é apenas um micróbio no gigantesco e enigmático cosmos. Dominar a vida? Mas mesmo se pudesse um dia fabricar uma bactéria, seria como copista que reproduz uma organização que jamais foi capaz de imaginar. E acaso ele saberia criar uma andorinha, um búfalo, uma otária, uma orquídea? O homem pode massacrar bactérias aos milhares, mas isso não impede que bactérias resistentes se multipliquem. Pode aniquilar vírus, mas está desarmado diante de vírus novos que zombam dele, que se transformam, que se renovam... Mesmo no que concerne às bactérias e aos vírus, ele deve e deverá negociar com a vida e com a natureza.”

 

O projeto tecnológico de controle absoluto não pode se transformar numa insana aventura. O homem deverá reaprender a viver, compartilhar e sobretudo reconhecer-se como responsável pelo futuro da humanidade.

“Esse homem deve reaprender a finitude terrestre e renunciar ao falso infinito da onipotente técnica, da onipotência do espírito, de sua própria aspiração à onipotência, para se descobrir diante do verdadeiro infinito que é inomeável e inconcebível. Seus poderes técnicos, seu pensamento, sua consciência devem doravante ser destinados, não a dominar, mas a arrumar, melhorar, compreender.”

 

O homem deve superar a violência do controle e penetrar num novo tempo, da compreensão e do amor. O homem conseguirá eliminar todos os vírus e bactérias? O homem conseguirá destruir os criminosos? A resposta é negativa para ambas as perguntas.

Há a necessidade de se compreender a vida na sua riqueza, na sua multidimensionalidade.

O Direito deverá ser caminho para construção de uma sociedade melhor. Não deve ser apenas a outra face do delito. De um lado a lei e do outro a necessária desobediência. A lei só existe em função da desobediência à lei. A estrutura de poder na área médica existe em função da doença.

A saúde é algo revolucionário, subversivo, porque não dá dinheiro a ninguém. A harmonia não dá lucro. A desarmonia sim.

Criada a lei, paralelamente se abre um caminho para a sua violação. Em função disso gera-se um desprestígio do sistema legal, que se destina a reprimir os inimigos das classes dominantes, os marginalizados da sociedade. A lei precisa ser respeitada para que possa sobreviver. Se a lei não tem correspondência ao fato social cai em desuso e pode até ser posteriormente retirada do ordenamento jurídico, muito embora o desuso não seja motivo suficiente para a retirada de uma lei do sistema.

Assim, vê-se que a ciência pode comprometer a vida com os seus métodos que proporcionam visões parciais a respeito de tudo.

“A Ciência ameaça a Vida, porque se separou da tradição, ou das Tradições, se preferirem. Enquanto ‘a’ civilização moderna dissocia, fraciona, a Tradição, pelo contrário, associa, unifica, sintetiza. Em nossos dias, a religião, a ciência, a arte se tornaram entidades autônomas, distintas, sem vínculos entre si, cada uma das quais se desmembra em subentidades: a ciência se ramifica em diversas disciplinas, especialidades; a arte virou belas-artes etc.”

 

A civilização tem, efetivamente, muito conhecimento acumulado, mas carece de sabedoria. Isso prejudica a democracia, que, verdadeiramente, está ameaçada pelo autoritarismo da divisão do conhecimento.

“A democracia está ameaçada  pela imposição de valores, normas e práticas comuns e, ao mesmo tempo, por um diferencialismo e individualismo extremos que abandonam a vida social nas mãos dos aparelhos de repressão e dos mecanismos do mercado. E os movimentos sociais degradar-se-iam em grupos de pressão política se não se apoiassem no trabalho responsável de numerosos indivíduos que pretendem ser atores sociais, ligando neles, em sua vida pessoal, maioria, e minoria, vida pública e privada, universalismo e particularismo, abertura e memória.

Entre a confiança cega nos mercados e o fanatismo comunitário, deve-se defender a liberdade política e a democracia, e colocá-las a serviço de um pluralismo cultural e político que deve ser combinado com a unidade da cidadania, da lei e da ação racional. A democracia perdeu a capacidade para se compreender e se defender; deve encontrá-la de novo para impedir que o mundo venha a soçobrar em uma guerra civil planetária entre identidades obsessivas e mercados que destroem a diversidade das culturas e os espaços de escolha política.

A democracia deve ser uma idéia nova. Não existe sem o respeito pela liberdade negativa, sem a capacidade para resistir a um poder autoritário; mas não pode ser reduzida a essa ação defensiva. A uma distância equivalente de um diferencialismo comunitário agressivo e de um liberalismo a-político indiferente às desigualdades e exclusões, a cultura democrática é o meio político para recompor o mundo e a personalidade de cada um, encorajando o encontro e a integração de culturas diferentes para permitir que todos nós possamos viver o máximo possível da experiência humana.”

A democracia surge como proposta revolucionária e somente se consolidará na solidariedade que se almeja concretizar na sociedade nova, do homem novo, mais preocupada com a vida do que com a economia.

 

 

Considerações finais.

 

A modernidade surge para superação do velho. Não se pode denominar modernidade um projeto já acabado. Está em permanente construção. Só é possível levá-lo adiante com uma permanente autocrítica. Não se trata de um projeto do poder público, mas de toda a sociedade.

A complexidade surge como um desafio. Não tem a pretensão de ocupar o lugar da ciência, mas trazer questões cada vez mais próximas da realidade. Não se pode admitir que o método seja um empecilho para o conhecimento da verdade, ou que os financiadores da ciência já digam a priori que deve ser extraída na investigação.

A modernidade não tem um marco preestabelecido. Ela pode estar nascendo a cada momento. A cada crise surge uma ruptura, ou pelo menos a necessidade dela. A História é cíclica. É um vem e vai permanente. Parte-se do misticismo para a racionalidade. Na sociedade racional se busca o reencontro com a espiritualidade.

Sem o misticismo não se compreende a realidade. Só a racionalidade é insuficiente para a compreensão dos fenômenos humanos. Sem a sensibilidade não se tem a visão da riqueza da vida.

Sem a superação do patriarcado não se conseguirá construir um novo sistema aberto, feminino, tranqüilo, voltado para a defesa dos valores humanos.

A modernidade nascerá sempre que forem defendidos os direitos humanos, sempre que o homem respeitar a natureza e se voltar para a vida a defesa da vida nas suas múltiplas manifestações.

A modernidade é a consolidação de todo um processo histórico? É uma etapa final? Ou deverá ser repensada sempre? Trata-se, sem dúvida, de um processo como a vida. Deverá surgir para superar o velho. E será sempre a esperança renascendo.

A vida está em permanente renovação e mudança.

 

 

 

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FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. O significado da modernidade. Disponível em: < http://www.tj.sc.gov.br/cejur/doutrina/modernidade1.rtf>. Acesso: 08 nov 2006.