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Justiça – Idéia do Direito e Força de Lei

 

 

Willis Santiago Guerra Filho 

  

Max Weber, em uma conferência célebre, tratando da política como vocação profissional (“Politik als Beruf”), logo no início apresenta a política como significando “a participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder” (Max Weber, “Ensaios de Sociologia”, 3a. ed., trad. por Waltensir Dutra, rev. téc. Fernando Henrique Cardoso, Rio de Janeiro, 1974, p. 98). Quanto ao direito, ele tem indubitavelmente relação com o poder, uma relação tão estreita que, muitas vezes, se encontra quem reduza-o às relações de poder, tendo como conseqüência a politização absoluta – tendencialmente absolutista, autoritária, quando não, totalitária – do direito, que assim é degradado à condição de uma espécie de disfarce da política, mero instrumento do poder. Este modo reducionista de tratar o direito, além de outras manifestações sociais, como a religião, a arte e a própria política, pode ser encontrado entre defensores de um marxismo vulgar, que entendemos uma deturpação do pensamento original deste excepcional conhecedor (também) do direito, até por sua formação acadêmica, que foi Karl Marx. Ao mesmo tempo, há quem proceda da maneira inversa, patrocinando uma redução, ainda que metodológica, da política, se não ao direito, a uma forma jurídica de exercício do poder, que é aquela predominante na modernidade, qual seja, o Estado. Exemplo disso estaria presente nas Escolas de Positivismo jurídico Normativista, como aquelas kelsenianas, mas também entre sociólogos, como o apenas referido Max Weber, que completa a definição acima apresentada de política como envolvendo relações de poder “seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado” (id. ib.), sendo que já no início mesmo de seu discurso Weber anunciará o recorte por ele adotado, para tratar de assunto tão vasto, envolvendo a política, ao buscar compreendê-la como “apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de uma associação política, e, daí, hoje, de um Estado (id., grifos no or., p. 97).

Na seqüência de sua palestra, Weber se indaga sobre o que seria, sociologicamente – de sua perspectiva, compreensiva, verstehende, isto é, hermenêutica, logo, também, filosófica, por levar em conta o sentido, valorativo, atribuído a suas ações pelos sujeitos na sociedade - uma associação qualificada como “política” e, especificamente, dentre elas, aquela que se apresenta como um “Estado”, adiante qualificado como “moderno”. Após descartar a possibilidade de uma definição teleológica, a partir dos fins de tais associações, pois esses poderiam ser, virtualmente, qualquer um, sem que se possa determinar nenhuma dessas tarefas como peculiares dessas associações, enquanto associações políticas, Weber se propõe, então, a defini-las pelos meios específicos empregados para a consecução de finalidades propriamente políticas. Nesse passo, vale-se de um pronunciamento feito por León Trotski, sobre a força como o fundamento de todo Estado, para consagrar o uso da força física como o meio empregado tipicamente pelas associações políticas enquanto tais. Daí passa a se referir a tal força por uma denominação mais precisa, a de “violência”, sendo a utilização dela por certas instituições sociais a condição mesma para a existência do Estado, que mesmo não tendo apenas esse meio para se impor, nem se deva considerá-lo, como em associações políticas tidas por predecessoras do Estado, a exemplo do clã, um meio normal, nem por isso deixa de ser considerado por Weber o meio específico desse Estado, que na modernidade apresenta ainda relações “especialmente íntimas” com a violência (id., p. 98). Em seguida, Weber apresenta sua definição, clássica, do Estado como “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (id. ib., grifos no or.). A questão fundamental, nesse conceito, que é um conceito substancial da política tendo como forma o direito, passa a ser, como se percebe na continuação do texto de Weber, a de caracterizar a legitimidade do emprego da violência, questão que o A. coloca da seguinte maneira: “Quando e por que os homens obedecem?” (ob. cit., p. 99). Eis a questão que, dependendo do modo como se pretenda respondê-la, nos situará seja no terreno da filosofia política, seja naquele da filosofia jurídica. A resposta de Weber pretende localizar-se no campo da ciência, ainda que social, sendo dada mais para a questão do “como” se obedece - de modo funcional, portanto -, através da famosa tipologia das três formas “puras” de legitimação, a tradicional ou consuetudinária, a carismática ou pessoal, e a legal ou racional, tipicamente moderna, caracterizada como uma “fé na validade do estatuto legal, baseada em regras racionalmente criadas” (id. ib, grifos no or.), tipos esses que se combinam para formar aqueles de fato e empiricamente existentes. De passagem, vale ainda lembrar que também para o positivismo jurídico normativista kelseneano a ordem jurídica, a que se reduz o direito e o Estado em sociedades “evoluídas”, aquelas modernas, é concebida como uma “ordem coativa” (Zwangsordnung), sendo coação um termo mais brando para referir à violência, quando associada com uma tal ordem jurídica, cuja legitimidade decorreria da legalidade e procedimentos correspondentes – pelo menos formalmente, sendo este o ângulo que interessaria ao estudo científico do direito como Kelsen, sabidamente, propugnava que se o empreendesse. É interessante notar essa coincidência entre o positivismo normativista, que se pretendia purificado de qualquer noção extra-jurídica, com uma perspectiva, igualmente positivista, porém sociológica. E essa não é a única remissão que se encontra na teoria pura do direito à dimensão sociológica, pois o próprio conceito de validade das normas jurídicas e da ordem jurídica como um todo a que elas pertencem, adotado por esta teoria, estritamente formal, correspondente à existência mesma dessas normas do direito positivo, depende de um “mínimo de eficácia”, de acatamento fático e obediência regular (cf. H. Kelsen, “Reine Rechtslehre”, 2a. ed., Viena, 1960, pp. 208, 216 ss.; ed. bras., “Teoria Pura do Direito”, pp. 227, 236 ss.). Já com um “mínimo de justiça” não se preocupa tal teoria, em conformidade com verdadeiros mitos, como o da objetividade científica e neutralidade axiológica, sobre os quais se erige, imperceptivelmente, supondo com isso superar modos “primitivos” de pensamento, dominados por uma crença mágica no poder encantatório das palavras, vindo a perceber só muito mais tarde, quase tarde demais, que toda sua construção da ordem jurídica escalonada e justificada por uma norma hipotética fundamental, não passava de mais uma ficção (cf. id., “Allgemeine Theorie der Normen”, Viena, 1979, pp. 206 e seg., ed. bras., “Teoria Geral das Normas”, pp. 328 e seg.), sendo o correspondente direito uma ficção coletiva, coercitiva, por jurídica, típica da modernidade.

De uma perspectiva filosófica, contudo, podemos – e, a meu ver, devemos – nos ocupar dessas questões, que não são consideradas aptas a um tratamento científico, de acordo com o padrão ou paradigma predominante na modernidade, aquele positivista, com base no qual se desenvolveu uma crença, não assumida como tal, na possibilidade de se atingir uma verdade definitiva, desde que abdicando de uma certa dimensão dos problemas, precisamente aquela que mais nos diz respeito, enquanto sujeitos humanos, afligidos por tais questões, sobre o valor e sentido de nossa existência. Não é nosso objetivo aqui o tema da epistemologia, mas também não é de se considerar sem conexão a filosofia da ciência e a filosofia política, assim como a ética e a filosofia do direito, como bem demonstram trabalhos de epistemólogos contemporâneos dos mais acatados, como “Sir” Karl Popper, além de Thomas Kuhn, cujo título de sua principal obra, “A Estrutura das Revoluções Científicas”, já anuncia a conexão entre os fenômenos políticos e científicos, conexão esta explorada à saciedade por Paul Feyerabend, especialmente na sua obra mais conhecida, “Contra o Método: Esboço de uma Teoria Anarquista do Conhecimento”. Há, portanto, uma modificação a ser feita no próprio modelo de ciência jurídica, para torná-lo adequado a uma concepção do direito comprometida ética e politicamente com a sustentação e promoção da subjetividade humana, nos quadros de uma ideologia que se mostre compatível com sua diversidade e pluralismos, aquela que é aberta e se reconhece provisória, inacabada, um processo em desenvolvimento: a democracia. É ao que venho procurando contribuir, especialmente em obras recentes, como “Teoria Processual da Constituição” (São Paulo, 2000, 2a. ed., 2002) e “Teoria da Ciência Jurídica” (São Paulo, 2001). No momento, cumpre-nos manter a atenção na temática que ora nos ocupa. E para isso, retornemos ainda uma vez a Max Weber, ao texto que vínhamos trabalhando. Ali, após a apresentação dos tipos de legitimação do poder, tidos como justificações internas para a obediência e sujeição aos que o exercem, essa obediência se diz “determinada pelos motivos bastante fortes do medo e esperança – medo da vingança dos poderes mágicos do detentor do poder, esperança de recompensa neste mundo ou no outro – e, além de tudo isso, pelos mais variados interesses” (ob. loc. ult. cit.). Aqui nos defrontamos como a justificação para o respeito ao direito e ao Estado que foi dada por autores fundadores do pensamento político moderno, utilitarista e positivista, como Machiavel e Hobbes. Ocorre que com tais argumentos, meramente fáticos, não justificamos, nem sequer explicamos, satisfatoriamente, por que haveríamos de nos submeter à violência organizada juridicamente, e com exclusividade, pelo simples fato de ser a violência proveniente do Estado, sem a ela nos contrapormos, preterindo-o em favor de alguma outra forma de associação e identificação, ainda que muito menor e menos poderosa, mas que melhor nos contemplasse em relação a nossos interesses e esperanças, até para vencer o medo, inclusive do próprio Estado. E realmente, o que presenciamos no momento é a ubiqüidade da violência, em todos os planos e espaços de convivência, desde a família, passando pela comunidade em que se mora, desde as menores até as grandes cidades, para atingir a escala planetária, onde atuam Estados e organizações para-estatais que não se limitam a exercer a violência em determinado território. Eis o tema urgente a ser enfrentado, mais do que qualquer outro, na interseção entre filosofia política e jurídica, para que uma regulamentação possível da nossa estada nessa vida como humanos, ou seja, uma verdadeira “oikonomia” (de oikos, “casa”, e nomia, “regramento”). Entendamos, primeiro, como se situa a violência, em face do poder e do direito, para em seguida situá-la, assim como o poder e o direito, em face do ser em que os três encontram seu fundamento, considerando que sequer haveriam, propriamente, se este ser não existisse: o ser que somos, os humanos.

Pelo que já se vem desenvolvendo aqui, pode-se propor uma concepção do direito como uma forma, cujo conteúdo seria o poder, por ser de onde o direito obtém sustentação, e que a ele imporia seus contornos, moldando-o para melhor e mais eficazmente ser exercido. Valendo-nos da lógica das formas, desenvolvida por G. Spencer-Brown (cf. “Laws of Forms”, 1971 e, para uma introdução, Willis Santiago Guerra Filho, “Para uma Filosofia da Filosofia”, Fortaleza, 1999, pp. 48 ss., ou id., “Teoria da Ciência Jurídica”, cit., pp. 175 ss.), feita a distinção entre poder e direito, como forma e conteúdo um do outro, verso e reverso do mesmo conceito, re-introduzindo-se essa distinção em cada um dos lados desse conceito, obtém-se uma noção em que o direito aparece como conteúdo de uma forma superior e o poder como forma de um conteúdo inferior. Essa forma superior do direito seria a justiça, enquanto o conteúdo inferior do poder seria a violência. O direito, nessa configuração, se apresenta em um estado de tensão permanente entre o ideal de justiça, jamais realizado – ao menos, abstratamente, como a verdade, que é a forma da justiça, sendo também ela um ideal regulador, para os que a buscam, seja pela ciência, seja pela filosofia -, e a realidade da violência, na qual se ampara o poder, poder de pôr e impor o direito, sendo a violência a forma cujo conteúdo é o sofrimento causado a um sujeito, passivo, por um outro sujeito, ativo, para assujeitá-lo à simples violência de uma vontade de poder, de um desejo de sujeição para tentar suprir uma carência de ser, própria desse ser ficcional, artificioso, desejante, por incompleto, que somos os humanos, enquanto seres terrestres, o húmus da terra, mundanos. É assim que o direito pode ser atraído – e traído - pela força, negativa, malévola, desse meio e instrumento por excelência do poder que é a violência, materializada em corpos legislativos e de funcionários a serviço de uma legislação, desde os mais altos, agindo ou omitindo-se de maneira que autorize a violência, até aqueles que praticam concretamente os atos de violência, como as corporações policiais. A idéia do direito, o “espírito das leis”, contudo, é a justiça, esse elemento sutil que anima o direito, para torná-lo propriamente correto, podendo se manifestar em situações concretas, desde que saibamos como partejá-la, repartindo adequada e proporcionalmente com os envolvidos o que naquele momento e desde antes lhes seja devido, em respeito à sua dignidade e igualdade de sujeitos às dores e sofrimentos dos que se sabem finitos no infinito insabido. O direito, então, entre o real da violência, que é atual, e o ideal da justiça, que é eterno, seria a possibilidade, junto ao poder, o potencial, de suprimir cada vez mais a violência, nas relações humanas, para torná-las, propriamente, isso: uma relação proporcional entre seres dotados de humanidade, com-paixão, uns pelos outros e, até, por outros seres, que mesmo sem ser humanos, nos emocionam e afetam, ao nos mostrar tudo o que não somos e nos ultrapassa, existindo também.

O que me parece urgente é que se reconheça o quanto o direito e o poder que por seu intermédio é exercido vêm gerando violência, nessa sociedade a um só tempo extremamente produtiva e destrutiva, em escala planetária, que se formou no ocidente, na modernidade, espalhando-se por todo o mundo. E isso não apenas por ser a condição mesma de seu funcionamento, para dizer ainda uma vez com Max Weber, o “processo de expropriação política” (ib., p. 103), que resultou na profissionalização dos que se dedicam ao acúmulo de poder, tal como os que justificam a própria existência pelo acúmulo indefinido de riqueza, dispensando-se a todos de qualquer sacrifício, à diferença do que ocorre em qualquer outro tipo de sociedade, aquelas que a modernidade só reconhece como formas inacabadas dela mesma, em estágios primitivos de seu próprio desenvolvimento, um desenvolvimento que, ao contrário do que se pensava – e à maioria ainda parece pensar, se é que ainda pensa mesmo - cada vez se nos apresenta como tendo por etapa final a destruição da humanidade, ao invés da sua redenção - e assim, talvez, destruição também de tudo o mais que compõe esse planeta singular em que nos encontramos, com esse conjunto de singularidades, improbabilidades mesmo, que como por um milagre propiciou a vida inteligente, auto-consciente.

O direito moderno, então, vai romper com qualquer justificação de si em termos sacramentais – e sacrificiais, pois onde se reconhece o sagrado (que não precisa ter a forma de alguma divindade) há temor e respeito por ele, havendo também sacrifícios para aplacá-lo -, passando o direito, assim como a ética e até as religiões, a se justificarem apenas - ou o quanto possível -, tal como as ciências, racionalmente, considerando serem essas faculdades racionais o que nos igualaria a todos, assim como a todos permitiria reconhecer e fazer o que lhe era exigido por uma ordem normativa voltada para o seu benefício. Em sendo assim, fica sem justificativa a enorme e crescente desigualdade que aflige a tantos dos que são reconhecidos e se reconhecem como, igualmente, sujeitos de direitos, e de tantos direitos, assim como são tantos os desejos produzidos em uma sociedade voltada para o estímulo ao consumo de uma produção excessiva, que não se justifica, se não, por esse mesmo consumo, incessante. O resultado dessa escalada de direitos e desejos insatisfeitos é a produção de violência na tentativa de satisfazê-los, com reações violentas por parte dos que querem continuar gozando do que já possuem e buscando mais, sempre mais e ainda mais, infinitamente. Como já Hobbes, em seu “Leviathan” (1ª ed. 1651), nos alertara, sendo os seres humanos, como de fato o são, governados por suas paixões, por natureza ilimitadas, e sendo capazes, ainda por cima, de, mediante o uso de sua razão, calcular as conseqüências boas ou más de ações que visem à satisfação daquelas paixões – se admitidas tais premissas, então ou haverá um poder superior suficientemente forte para manter a todos em respeito mútuo, ou eles tenderão necessariamente a destruir-se uns aos outros. Este poder, em todas as sociedades que se tem notícia, com exceção daquelas surgidas na modernidade, é um poder que se ampara em uma força superior, a “justiça divina”, de que nos fala Walter Benjamin ao final de seu ensaio primoroso “Sobre a Crítica da Violência” (e do Poder! – Gewalt), e não na força inferior, que é a violência mesma. René Girard, em “A Violência e o Sagrado” (1972), sustenta a tese de que só o sacrifício de alguém, o “bode expiatório”, pode catalisar a violência de todos contra todos, gerada pelo desejo mimético que acomete o ser humano, desejando o desejo do outro, por não saber por que e o que deseja. Esses “bodes expiatórios”, em nossas sociedades modernas, por serem modernas e racionais, contrárias à magia e aos mitos, se apresentam na forma dos excluídos/incluídos dessas sociedades, ou seja, os que se acham internos e internados, em domicílios, reformatórios, asilos, delegacias, prisões, hospitais e também naquela instituição paradigmática dessas todas, segundo Giorgio Agamben (em “Homo Sacer”, 1998), que é o campo de concentração, para refugiados ou prisioneiros em geral, que possuam status indefinido. Continuamos afirmando e confirmando para nós mesmos o que seria a nossa superioridade, por nos mantermos a salvo dessa condição de morto-vivo: até irmos parar em uma instituição dessas, do que ninguém está realmente imune – afinal, somos todos iguais -, sem esquecer que podemos também, a qualquer momento, ser atacados por algum dos que lá estiveram ou para lá, por isso, terminarão indo. Tais instituições nada mais fazem do que, ao tentar dissimular, revelar o nosso encarceramento na prisão simbólica de nossos medos ancestrais, sempre atuais, sendo de que nos fala Eduardo Rabenhorst, na esteira, dentre outros, de Danilo

 

 

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Justiça – Idéia do Direito e Força de Lei. Disponível em: < http://www.mundolegal.com.br/?FuseAction=Doutrina_Detalhar&did=20306 >. Acesso em: 11 out 2006.