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A percepção(*) sócio-política em Karl Mannheim

 

 

Suzana J. de Oliveira Carmo  *

 

 

Nossa decisão de pautar este trabalho pelas diretrizes do pensamento sócio-filosófico e pedagógico de Karl Mannheim, funda-se em uma de suas preposições mais consideráveis, aquela de que não basta ser mero observador, ainda que das observações empreendidas o resultado seja uma visão do mundo, consideravelmente ampla, se, contudo, não há um respaldo fundado em experiência prática.      

Embora sociólogo, Mannheim contribuiu imensamente para aquilo que hoje, torna-se cada vez mais “moderno” e imprescindível, que é a análise profunda da Ciência Política, através ou por via dos sintomas sócio-culturais.   

Analisando o cenário político em suas patologias, ao mesmo passo, diagnosticando o contexto histórico da humanidade, Mannheim sugere um estudo inovador destas questões humanas, erigindo a existência de um observador empírico que se assemelha a um “revolucionário” (paciencioso por estratégia, mas, não inerte pela dominação), em verdade, um “reformador”, retratado como um sujeito capaz de aplicar mecanismos e métodos e, de empreender na melhor oportunidade não só teoria epistemológica, mas, primordialmente, novas técnicas de remodelagem da sociedade.        

Assim, ainda que mantendo uma postura médica ao exarar um diagnóstico científico dos evidentes males sociais, Mannheim não se limitou ao diagnóstico do tempo ou da sociedade, sua tese vai além, e, se inspira fundamentalmente em algo, por ele denominado como: Conhecimento Ateórico. Noutras palavras, enfatiza uma cognição que emerge da abordagem prática da experiência humana; advinda da imediata concreção histórica dos fatos. Porque para ele, seriam estes os dois fatores determinantes e que assinalam o rumo na marcha dos acontecimentos.     

Partindo da constatação de que a sociedade humana, de fato e verdadeiramente, só pode revestir-se ou fundar-se sob duas formas: edificação piramidal, onde na base estão sedimentadas as massas e no ápice a minoria dominante (estrutura ditatorial); ou em plano horizontal, organizada pelo planejamento de instituições e controlada pela divisão do poder político (estrutura democrática). Mannheim, não vê nas técnicas de controle social, que tão costumeiramente são utilizadas pelos governos, uma essência boa ou ruim, vislumbra sim, uma vulnerabilidade em função da vontade humana daquele que as utiliza sob o falso argumento de serem tão-somente um mecanismo de contenção econômica, política ou social. Daí porque, na maioria das vezes, esta utilização onde os verdadeiros objetivos estão camuflados, resulta em uma eficiência antagônica, impondo à sociedade uma escravidão intelectual, por institucionalizar crenças, credos e comportamentos que não correspondem à própria natureza do cidadão, tampouco, ao exercício da cidadania.        

Neste ponto, insurge a primeira afirmativa fulcrada no conhecimento ateórico: “Só vale a pena estudar a natureza da sociedade tal como é, se somos capazes de insinuar as medidas que, tomadas a tempo, poderão tornar a sociedade àquilo que deve ser”.1         

Notadamente, convencido de que só o conhecimento concreto da sociedade é capaz de definir quais são ou serão suas tendências políticas. Mannheim ressalta que, a sociedade não consegue sobreviver se fomenta conformismo e conformidade, porque estas são características evidentes de algo monótono ou fadado à inércia, e como tal, passível de se tornar obsoleto.    

Conferindo verdade à doutrina precursora de Émile Durkheim, assinala que só as sociedades simples como as dos povos primitivos podem funcionar satisfatoriamente quando fundadas na homogeneidade e na conformidade. Porque a integração social em toda a sua magnitude, jamais foi ou será alcançada por via de um comportamento comum e uniforme, ou contrário, exige uma coordenação geral e complexa, de idéias e comportamentos variados. Desta forma, nos aclara que, não basta para que haja vigor na sociedade, tampouco, para a manutenção Estado, a existência fictícia ou abstrata do Princípio Democrático, quando sua materialização ou percepção sinestésica, está em uma dependência ávida, de que antecedentemente ocorra a satisfação de uma necessidade orgânica básica, que é a de Justiça Social. Lembrando que, “a reivindicação de maior justiça não implica, forçosamente, uma concepção mecânica de igualdade. Diferenças razoáveis de renda e de acumulação de riqueza, para gerar o estímulo necessário aos empreendimentos, podem ser mantidas desde que não interfiram nas linhas mestras do planejamento nem aumentem de molde a impedir a cooperação entre as diferentes classes”.2  

Abrangendo outros saberes e, também centrado na obra de Freud, utilizou-se de sua orientação em uma análise psicanalítica, análise de que o homem entregue a si mesmo não pode oferecer qualquer resistência, e quando sujeito a dissolução de seu elo de segurança e reconhecimento com a sociedade, acaba por extrair-lhe qualquer atitude, o fazendo quedar-se silente diante dos fatos. Sigmund Freud traçou o primeiro segmento em que descreve a rota dos males sociais atribuindo-os à cultura, tais males representam um processo de sofrimento ao homem. Em sua obra: “O Mal Estar na Civilização”, Freud argumenta a tríade: homem, sociedade e cultura, e através dela conclui que: os seres humanos necessitam organizar-se em sociedades a fim de se defender da própria natureza agressiva e, permanentemente adversária. Donde, surge um grande dilema: o próprio esforço realizado pelo homem para que se torne possível a vida em sociedade fará com que estas sociedades venham a evoluir para civilizações, o que representa um enorme entrave para a felicidade humana. Talvez, tal pensamento venha ser melhor explicitado através da célebre frase do existencialista Jean Paul Sartre: “O inferno são os outros”.            

Com igual finalidade, Jacques Lacan posteriormente retoma o tema do mal cultural, e analise a obra de Freud, embora, evidenciando a questão da ética social e humana nela encontrada. E, no "Seminário VII - A ética da psicanálise". Afirmou Lacan, o "Mal-estar na civilização" é obra definitiva no que diz respeito à questão ética, uma vez que evidencia que a felicidade é mesmo o que deve ser proposto como termo a toda busca, por mais ética que seja.      

Fica, então, evidente que o funcionamento adequado do organismo social está sob a égide das atitudes e decisões políticas, embora, o respaldo autorizante destas tomadas de decisão seja conferido pela sociedade. De tal modo, o funcionamento da democracia está sujeito ironicamente ao consentimento democrático e à existência da justiça social. E, este sistema de intercâmbio, este circuito fluxo, retrata não só a viabilidade e manutenção do sistema como um todo, a priori, demarca que os insumos axiológicos que o alimentam, são de ordem ética.          

E, uma vez mais, de acordo com Mannheim, nem a tolerância democrática nem a objetividade científica estão autorizadas a nos determinar abstinência às lutas que necessariamente devam ser travadas em prol daquilo que julgamos ser verdadeiro. Apontando que, só uma democracia militante pode sobreviver em tempos de desordem moral ou ética. A idéia de militância quando atrelada à democracia, significa a existência de uma atitude de defesa dos procedimentos corretos, dos valores sócio-culturais, da decência, do respeito à cidadania etc.  

“[...] que a liberdade e a democracia são necessariamente incompletas enquanto as oportunidades sociais estiverem tolhidas pela desigualdade econômica, é irresponsável não compreender quão grande realização elas representam e que através delas podemos ampliar o âmbito do progresso social”.3    
E sempre que refletimos sobre a militância democrática ou debatemos a crise advinda de uma dolorosa experiência política, captamos ou capturamos a imagem distorcida do homem de Estado. Esta figura política, antes de tudo, humana, nos esboça a imagética do elemento humano mitigado, nos reflete os signos de uma crise de valoração social ou moral, o que nos descortina ou desnuda um cinismo agressor. Surge assim, um agente substitutivo e espontâneo, em circunstâncias em que há um escancarado abandono da ética. Neste cenário desesperador, o Homem de Estado deixa de ser um dirigente apto a conduzir sua sociedade, e, passa a ser um mero guia a nos demarcar as trilhas do caos social e da desordem política.        

E, este desajustamento sócio-político, esta inversão de papeis e valores, nos coloca em xeque; ao passo que nos cria um impasse, posto que, já nem somos capazes de discernir se vivenciamos um delito ou uma patologia, se conhecemos suas causas, ou, se só sofremos seus sintomas. Já nem conseguimos isolar o instituto da culpa, ponto em que se torna impossível justificar a própria existência ou sentido dentro do organismo civilizado. Pois, o político é uma unidade social em uma função específica e de relevante representação. Se sua índole é ruim ou podre, ou vulnerável seu caráter, e, talvez esta sua representatividade simbólica esteja tão-somente a nos retratar com fidelidade os contornos exatos de sua sociedade.

Para Mannheim, o grande problema que ocorre em momentos de crise, e tanto faz se de valores em modo genérico, ou se ética ou moral ao falarmos em espécies; é a alienação, pois, poucos se apercebem do caos que qualquer uma delas representa. Em verdade, resta muito claro que, nos mostramos muito vagos aos assuntos sociais, tanto quanto aos políticos, embora, soframos todas as suas conseqüências e pesares. Notadamente, a melhor maneira de captar as primeiras manifestações e, restabelecer-se o equilíbrio ante uma crise ética, seria uma pré-compreensão de que uma crise destas não é só efeito, é também causa de uma crise antecedente, que é sem sombra de dúvida a da espécie humana.   

Contemplando com receio a idéia de que todos os atos e fatos, ainda que os mais comuns e rotineiros são de ordem cultural, posto que, em nossa vida nem mesmo em nível de hábitos como a alimentação, boas maneiras e comportamento nos são inseridos pela cultura. Daí porque, nada tem origem ou se justifica, senão através das regras e valores que governam a sociedade e a civilização humana. De tal maneira, quando deparamos com uma crise política, ética ou moral, estamos em verdade, constatando que há em nós enquanto unidades sociais partícipes do todo, uma crise antecedente ou antecessora, se considerarmos que é a sociedade quem fornece a matéria prima a todos sistemas por nós inventados, experimentados ou idealizados, porque são, sem exceção, artificialidades criadas por nossa cultura.   

Cumpre salientar, onde não há sediado um sistema austero de valores sócio-culturais, e ainda, perpetua-se uma ausência diretiva, tal crise vê-se agravada pela existência de uma autoridade “soberana” dispersa, seus métodos de justificação tornam-se arbitrários, e daí emerge todo o contexto de um desolamento geral.           

Esta abolição das precondições existenciais nasce de um processo lento e degenerativo, embora, nos pareça ser súbita e açodada. É sofrível a exposição desta “nova” realidade em que as regras de conduta e convivência comum, bem como, as normas de organização política foram impunemente descumpridas, esquecidas ou extirpadas; onde “de repente”, já não existem responsáveis, tampouco, responsabilidades a serem cumpridas ou exigidas. Neste momento crucial, reconhecemos os sintomas, diagnosticamos a doença, porém, ignoramos a cura. E, por falta de coesão e homogeneidade das classes e grupos, torna-se impossível uma aderência incondicionada a esta vida social assim estabelecida.           

Tendo ainda em foco a desordem político-social, Mannheim retoma algo de bom advindo do comunismo, ou seja, algo proveitoso ou aproveitável que pode ser extraído da doutrina de Marx, que é o seu reconhecimento de que a vida cultural e a esfera básica de valores a ela inerentes dependem da existência e favorabilidade de determinadas condições sociais. E ainda, aponta como um ledo engano acreditar-se que são exclusivamente os fatores econômicos e as lutas de classes que compõem ou desencadeiam uma crise na cultura ou em nosso sistema de valores. Ao contrário, nós como seres falíveis e corruptíveis nos alternamos em um duplo papel, por vezes, quando isentos ou isolados de qualquer emanação de poder - somos a vítima, noutras, quando investidos dos privilégios e favorecimentos que ele nos traz – somos algozes.      

Neste ponto, a título de exemplificação, lançamos mão da Teoria de Jacques Lacan, em que trata do Estádio de Espelho4 , através dela descobrimos amargamente que somos aquilo que vemos na sociedade. Através desta Teoria, tem-se que a imagem refletida por este espelho social vai gerar uma identificação imediata, podendo mesmo causar um sofrimento ou uma comoção desesperada, em casos em que a imagética (eu ‘humano’ sou aquilo que vejo no outro) não se apresenta favorável ou digna; dando ao ser um referencial de si mesmo. Ou seja, o sujeito vai se conhecer como ser humano deplorável, quando falamos em falta de moral ou ética. Assim vai se conceber como um outro que não ele mesmo, contudo, com ele identificado e através podendo ser reconhecido, e, esta concepção que se torna fundadora da exterioridade em nossa relação com nós mesmos.

Sim, Mannheim pontua e assinala a existência de uma questão dúplice em que nosso caráter se modela em virtude ou nos limites do poder que possuímos. Talvez, por serem raros os ‘cidadãos’ que de posse do poder não criam para si privilégios.        

Pensando e repensando a ordem dos valores humanos, independentemente de serem eles de natureza individual ou coletiva, todavia, sempre dentro de uma visão que a eles atribui suma importância. A propósito, sempre deixando evidente a impossibilidade de se viver em sociedade sem que haja um norte de valoração das coisas. Porém, Mannheim reconhece que as normas, os conselhos e os tabus impostos pela cultura são mais que uma técnica prática de viabilidade da convivência comum, é em primeiro plano, um elemento restritivo, uma limitação ao ser, e, uma contenção da “natureza” humana literalmente “in natura”. Razão pela qual, a maior dificuldade de nosso tempo tem sido a de se fazer uma avaliação racional dos valores, porque o que poderia ser entendido como uma mudança formidável, se perfaz de modo inusitado, posto que, não consiste em criar um cidadão tão-somente obediente à lei, às regras, normas ou costumes, em virtude de uma aceitação cega e habitual, de origem unicamente condicionada. Mas sim, de uma reivindicadora reeducação do homem em sua integralidade. E isto significa fazê-lo conhecer e reconhecer em qualquer circunstância seus próprios valores, não cegamente, mas por uma deliberada forma de escolha, sendo que estes tendem a ser coincidentes com os dos demais membros da sociedade. Neste diapasão, a convivência civilizada permanece por vontade e “animus, há uma aderência necessária, todavia, querida e buscada pelo homem. Nunca coincidente com uma habitualidade irracional, porque esta pode, e na maioria das vezes é: sinônimo de repressão, imitação ou adestramento.       

Por fim, através de Karl Mannheim percebemos a vida social como uma necessidade passível de ser satisfeita, e este é o “dever ser” da organização democrática apontada por ele definida, porque justifica o caos advindo do choque entre a natureza dos valores predominantes e o método de adestramento sócio-político.


Notas

(*) Processo pelo qual o indivíduo se torna consciente dos objetos e relações no mundo circundante, na medida em que essa consciência depende de processos sensoriais – CABRAL, Álvaro. Dicionário de Psicologia e Psicanálise, 2ª ed., Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1979.     

1. MANNHEIM, Karl. Diagnóstico de nosso tempo. Tradução: Octávio Alves Velho, 2ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 16.     

2. Mannheim, op. Cit., p.19.   

3. Mannheim, op. Cit., p.23.   

4. O conceito do estádio do espelho foi desenvolvido por Lacan a partir da experiência de Henry Wallon que, em 1931, descreveu como a criança vai aos poucos diferenciando seu corpo da imagem que observa no espelho. Segundo Wallon, isto se daria face a uma compreensão simbólica, por parte do sujeito, do espaço imaginário em que constitui sua unidade corporal. A “Prova do espelho”, como Wallon chamou sua experiência, demonstraria, assim, a passagem do especular para o imaginário e do imaginário para o simbólico. O texto final do estádio do espelho é apresentado em sua versão definitiva em 17 de julho de 1949, no XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, com o nome de: “O estádio do espelho como formador da função do eu – tal como nos é revelada na experiência psicanalítica”.Em seu seminário sobre os escritos técnicos de Freud, 1953/1954, Lacan aborda novamente o tema do estádio do espelho para, na parte intitulada “A Tópica do imaginário”, repensar os conceitos freudianos do Narcisismo, Eu ideal e Ideal de eu.

 

 

* Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC/SP e, em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP., pós-graduada em Semiótica Psicanalítica - Clínica da Cultura, também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP.

CARMO, Suzana J. de Oliveira. A percepção(*) sócio-política em Karl Mannheim. Jus Vigilantibus, Vitória, 20 set. 2005. Disponível em: < http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/17401 >. Acesso em: 25 set. 2006.