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Do Estado à Sociedade sem Estado
Juliana Wülfing *
“Tudo o que era
sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profano, e os homens são
obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e
suas relações recíprocas” 1
.
Resumo: A necessidade ou não do Estado, ou seja, a construção artificial
de um código de relações que conduza e discipline um povo, é um tema a muito
discutido. Thomas Hobbes, importante contratualista do século XVI, defende a
idéia de que o homem não é naturalmente um ser sociável, ele é egoísta, autoritário,
desconfiado, ambicioso... porém, em busca da proteção do Deus da terra, da
construção de um ente soberano que proporcionasse proteção, que coibisse a
índole ma dos homens criar o Estado de natureza, fez com que todos se unissem
com o propósito da criação do Estado – do Leviatã. Contemporaneamente, o Estado
Leviatã enfrenta sérias dificuldades para manter sua soberania. O Estado não
tem respondido aos anseios sociais, perdeu sua função política e passou a ter
uma função muito mais econômica do que social. O mercado assumiu ofícios que
antes eram exclusividades dos Estados. Já o cidadão sente-se inseguro frente a
esta nova realidade, pois, não há mais um poder único, centralizado, forte que
dite as regras da vida, porém, seu conceito continua sendo inviolável. Diversos
teóricos tentaram romper esta concepção, entre eles Karl Marx e Friedrich
Engels. Marx, um homem inconformado com o poderio que as relações econômicas
exercem sobre os indivíduos, com a submissão do homem ao trabalho, ao dinheiro
- sugere que o indivíduo reavalie suas relações com o mundo e reconquiste a
liberdade através de uma sociedade sem classe, sem incompatibilidades sociais,
sem escravidão, sem opressão de uma classe sobre outra, sem Estado. Assim,
pretende-se repensar a questão do Estado, da sua efetividade e necessidade
frente ao mercado, a globalização, as necessidades sociais e individuais, em
fim, frente às transformações ocorridas no mundo.
Palavras-chaves: Estado – soberania – cidadania – transformação.
1. Hobbes e o Estado
Para Hobbes, a vida é comparável a uma corrida da qual não é permitido perder.
Corre-se em busca do amor e da realização dos desejos. Permitir a ultrapassagem
é a miséria, ultrapassar é a felicidade e o abandono é a morte. A vida é um
eterno movimento, não existe uma tranqüilidade de espírito, sempre haverá
paixões, medos, sensações...
O ser humano não é naturalmente um ser sociável – como no modelo tradicional de
Aristóteles, pelo contrário, a natureza humana é marcada pela competição pela
desconfiança e pela glória, o homem é o lobo do homem, e o Estado de Natureza
uma guerra de todos contra todos.
O homem é meramente um mecanismo de suas paixões, desejos, apetites, sensações,
ódios, aversões. Através de seus instintos é levado a conquistar a comodidade,
tudo o que lhe traz prazer. O egoísmo é uma inclinação de todos os homens que
se manifesta pela busca incessante de poder e mais poder.
Poder, em Hobbes, confunde-se com a satisfação dos desejos. A riqueza, a
ciência, a fama, o conforto e a admiração, são apenas formas de manifestação
deste poder. O homem, quando não há um poder superior que lhe dê limites,
utiliza-se de suas potencialidades, sua inteligência e sua força exclusivamente
para saciar seus desejos. Sua busca é constante, dia após dia, só findando com
a morte.
O homem mais poderoso não é necessariamente o mais rico ou mais letrado, mas
sim, o que tiver mais experiência, mais capacidade de adivinhações. Aquele que
estiver mais habilitado para profetizar sobre determinado assunto, que conhecer
o maior número de signos. Ou seja, o domínio ocorre pela experiência, pela
capacidade do homem de observar e compreender o universo.
Dessa forma, o conhecimento literário não é suficiente, porque quem se baseia
apenas nos livros parte de conceitos pré-estabelecidos, “faz como aqueles que
agrupam diversas pequenas somas em uma soma maior, sem considerar se as
primeiras estavam corretas. Ao final, diante de um erro visível não desconfiado
dos primeiros fundamentos, não sabe que caminho deverá seguir. Limita-se,
então, a perder tempo, vagando sobre livros, como os pássaros que, tendo
entrado pela chaminé, ficam presos dentro da casa e se atiram contra a falsa
luz de uma janela de vidro porque carecem de iniciativa para buscar um novo
caminho”2 . Ou seja, o conhecimento é uma construção adquirida
através de meditações, de percepções e da sensibilidade de cada indivíduo.
É a intensidade das conquistas e a possibilidade de realizar as paixões que
fazem do homem um vencedor. Quanto maior a ambição maior será a necessidade de
adquirir poder para enriquecer, ser reconhecido, ter honrarias para realizar
seus afãs.
Assim, o poder de um homem está nos meios que dispõe para alcançar algum bem
evidente que pode ser tanto a força, a aparência, a eloqüência e a liberdade
como o poder que se adquire com o uso dessas faculdades como a reputação, os
amigos, a riqueza. À medida que crescem as qualidades que fazem um homem ser
amado ou temido pelos demais, cresce seu poder de manipulação e
conseqüentemente de receber serviços ou assistências.
Por tudo isso, o indivíduo hobbesiano nega a possibilidade de receber
benefícios de outro mais poderoso. Isso significaria se obrigar, e a obrigação
é servidão, já a servidão que não se pode compensar é servidão perpétua e
perante um igual, é odiosa. Repele o poder da religião, onde alguns
acrescentaram suas próprias convicções sobre possíveis situações futuras e
impossíveis de serem comprovadas, pois divinas. Talvez seja a maior
manifestação de um poder.
Para todo o homem o outro é um concorrente, que faz uso das mesmas armas –
força e inteligência – na busca do poder, o único meio de chegar ao êxtase da
existência.
Por isso, Hobbes dirá que a natureza do homem é marcada pela eterna
desconfiança. Como um não sabe qual o desejo do outro, quais suas atitudes, o
mais razoável é o ataque, que pode ser com o intuito de vencer ou simplesmente
para evitar ser surpreendido. E a guerra se generaliza entre todos os homens,
não que haja uma irracionalidade, está é a única forma de sobreviver no então
denominado Estado de Natureza.
Esse temor contínuo impossibilita a indústria, a navegação, o comércio, a
ciência, a sociedade, o progresso. Não há propriedade, os bens só pertencem ao
homem enquanto ele os puder manter. Não há justiça, os valore neste Estado são
força e astúcia. A vida se torna “solitária, pobre, grosseira, animalizada e
breve”3 .
No Estado de Natureza não há um poder coercitivo que obrigue aos homens a
viverem em paz, ao contrário, a única forma de se manter vivo é sendo o poder,
dominando aos demais. Dessa forma, “quando não existe um Poder comum capaz de
manter os homens em respeito, temos a condição do que se denomina Guerra; uma
Guerra de todos os homens contra todos. Assim, a Guerra não é apenas a Batalha
ou o ato de luta, mas o período de tempo em que existe a vontade de
guerrear...”4 .
Hobbes admite que o Estado de Natureza é apenas uma ficção5 , que
não houve um tempo em que houvesse uma guerra generalizada, porém, o espírito
da guerra está dentro do homem. O homem não é bom por natureza, ele é egoísta,
egocêntrico, centralizador, traiçoeiro.
Viver em sociedade é um suplício, mesmo assim, o homem se submete porque
percebe que a união é necessária. Que ao unir-se com os demais terá a
possibilidade de conquistar mais poder, porque “O Maior de todos os Poderes
humanos é o Poder integrado de vários homens unidos com o consentimento de uma
pessoa Natural ou Civil: o Poder do Estado ou aquele de um representativo
número de pessoas, cujas ações estão sujeitas à vontade de determinadas pessoas
em particular, como é o Poder de uma Facção ou de várias facções coligadas.
Assim, ter servos como ter amigos também é poder porque significa união de
forças”6 . Dessa forma, é permitido ao homem aumentar constantemente
seu domínio sobre seus semelhantes, uma vez que isso é necessário a sua
sobrevivência.
O que faz com que o homem rejeite o Estado de Natureza e opte pelo Estado de
Sociedade está em suas paixões, muito mais do que na razão. Com medo da morte
que lhe ameaça, constantemente, é preferível inclinar-se à Paz. A um acordo com
todos os homens, onde basta respeitar uma singela lei: “façamos aos outros o
que queres que nos façam”7 . Trata-se de uma renúncia necessária,
baseada no instinto de conservação da vida, na busca da Paz que promete a
sobrevivência.
O homem percebe que um Estado de natureza seria intolerável, porque o desejo de
viver em paz e o desejo de poder são incomunicáveis. Constata a necessidade da
existência de uma instância superior capaz de impor uma ordem limitadora da
natureza violenta do homem, porque “Sem a espada, os Pactos não passam de
palavras sem força que não dão a mínima segurança a ninguém”8 .
Tencionou a constituição de um poder que assumisse a responsabilidade de
eliminar a “guerra de todos contra todos”9 , pela paz entre os indivíduos.
Desse modo, o homem foi levado a estabelecer um contrato juridicamente
perfeito, “entre cada um e cada um”10 , constituindo a sociedade
política. Por este pacto, abriu mão de seu direito de proteger a si próprio,
para obrigar-se a um terceiro “que reside em um Homem, como numa Monarquia,
quer numa Assembléia, como nos Estados Populares e Aristocráticos11
”, que uma vez constituído, substituiu a vontade de todos e assume a
personalidade de cada súdito. Assim, o cidadão abdica de seu direito de
proteger a sua própria vida em troca da proteção soberana12 .
Através do pacto foi instaurada a sociedade política com poderes ilimitados,
que é a constituição de um poder moral, o Estado13 . É a geração do
Leviatã14 , que na lenda bíblica representa o Deus mortal com
poderes só menores que os do Deus imortal. Denota uma força irresistível que se
traduz em uma construção lógica para formação de uma ordem política que ponha
fim à luta de vida ou de morte.
As obrigações do soberano consistem em proporcionar ao súdito a tão sonhada
segurança, que não se trata de uma mera conservação da vida, mas a promoção de
políticas públicas que dêem condição ao cidadão de alcançar a felicidade, a
liberdade (até o limite do direito do outro) e a igualdade de lei, de trabalho,
de saúde, de instrução, de acesso aos cargos públicos, etc15 .
O soberano tem ainda um outro dever, ser sempre virtuoso. Enfraquecendo-se, não
mais podendo cumprir com sua obrigação de proteger ao súdito, este se vê
desobrigado de prestar-lhe obediência, podendo voltar ao Estado de Natureza e
juntar-se a um novo protetor.
Por isso, Thomas Hobbes defende à constituição de um poder soberano único e
forte. Para o autor, não é permitido que haja dissidências. A obediência e o respeito
dos súditos devem ser única e exclusivamente ao soberano constituído. O Estado
não pode enfraquecer-se com disputas de ordem religiosa e civil, assim, ao
soberano pertencem ambos os poderes. Da mesma forma, para impedir o acúmulo de
riqueza por alguns em detrimento de outros, as terras são distribuídas aos
súditos em porções suficientes para seu sustento, ficando ao encargo do Estado
vigiar o correto uso destas.
O Estado, assim, é como uma grande família que necessita de um patriarca
valente, astuto, de prestígio. Que garanta o bem-estar, que amplie o domínio do
território em prol de seus filhos. Que com astúcia subjugam os Estados
vizinhos, por força ou artimanhas vis, com o objetivo de enriquecer seu povo.
Ao titular da soberania estão disponíveis todas as armas e meios necessários
para a manutenção da ordem, para a preservação da paz e obtenção da segurança
dos súditos. Os indivíduos cederam ao soberano o que tinham de mais valioso, a
liberdade16 . Ficaram em uma situação miserável, sujeitos aos
apetites e paixões de um homem com poderes supremos e ilimitados.
Mesmo assim, por mais autoritário e despótico que possa parecer, o poder
soberano ainda é mais vantajoso que a ausência de um poder. Existem criaturas
políticas segundo Aristóteles, como as abelhas e as formigas que vivem de forma
sociável naturalmente. Porém, o ser humano é incapaz de constituir uma
organização tão pacífica e ordenada. É impulsionado pela ânsia de poder que
geram apetites e juízos particulares, que necessitam ser controlados por um
pode maior, o Estado17 .
Porque onde não há Estado, há uma guerra incessante, não há respeito,
sensibilidade. Nada é de ninguém, tudo é conservado pela força. Não há família
nem sociedade. “Fora dele, ninguém tem assegurado o futuro de seus labores;
nele, todos o têm garantido. Finalmente: fora dele, assistimos ao domínio das
paixões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie,
da ignorância, da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz, da segurança,
das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da
benevolência”18 . Sem o governo de sociedade a insegurança é
generalizada.
Assim, este homem artificial chamado Estado, foi criado para garantir a paz e
conseqüentemente, a conservação da espécie humana. Para que tivesse autoridade,
fez-se necessário criar um segundo artifício, os “Cárceres Artificiais,
chamadas Leis Civis”19 , para ordenar, regrar, as condutas dos
cidadãos, que se mantêm pelo medo da sanção. Nada mais são do que uma coação ou
uma coerção, aos direitos naturais. Pois “O Medo é a única Paixão que impede o
homem de violar as Leis”20 . Por isso, com o intuito de alcançar a
tão sonhada segurança, acaba-se criando um novo gênero de despotismo. Um
despotismo que não seria necessariamente de um homem ou uma Assembléia, mas
sim, o da Lei a única garantia da paz civil.
Os homens são obrigados a respeitar as leis não porque fazem parte de um ou de
outro Estado, mas porque fazem partes de um Estado. Elas são as regras do justo
e do injusto, só quem pode fazê-las é o Estado, que é o único legislador. Mas o
Estado é artificial, não é um homem, necessitando dessa forma, de um
representante para se concretizar, assim, o soberano passa a se confundir com o
Estado. Ou seja, Estado só terá vontade, se fizer Leis de acordo com a vontade
de quem exerce o poder soberano, já que, “um Estado sem o Poder Soberano não
passa de palavra sem sentido”21 .
Por isso, em Hobbes, o Estado, através do soberano, será o símbolo do
progresso, a única forma política que convém a povos que alcançam à maturidade.
Povos que o desprezam não evoluem, são automaticamente excluídos, jogados a
marginalidade por sua conta e risco. Contemporaneamente, esta concepção
persiste não se admitindo um Povo sem Estado, pois na sua ausência o povo é
taxado de anarquista, desordeiro, selvagem.
Porém, hoje, a mais de 300 anos da morte de Hobbes, qual seria sua visão sobre
o Estado, a Globalização, sobre o poder dos meios de comunicação, dos grandes
conglomerados, do soberano, do indivíduo?
No ponto seguinte pretende-se questionar a hegemonia do poder no Estado
Contemporâneo, como soberania. A sua necessidade e capacidade de resolver os
conflitos surgidos nos novos tempos. A eficácia de um poder centralizado,
burocrático e coercitivo em uma sociedade ágil, em constante transformação, que
necessita resolver seus problemas com eficiência no menor prazo possível. Até
onde o Estado atual tem respondido aos anseios sociais? Ainda são aplicáveis os
conceitos de Hobbes ou estaríamos diante da “falência do Estado”?
2. Estado e Globalização
O homem contemporâneo está com medo, com medo do amanhã, com medo de não ter o
que comer, o que vestir, onde morar. Tem medo da insegurança, da marginalidade,
da agressividade. Vive estressado, trabalha em excesso, não tem tempo para
dormir, para o lazer, para o esporte, para a comodidade tão almejada por Hobbes
no Estado de Sociedade.
Vive uma crise de identidade, não sabe quem é, a quem representa, a que veio ao
mundo. Oprimido pelo sistema, desaprendeu a questionar. O raciocínio tornou-se
mecanicista, robótico. Sua vida está programada para trabalhar, para a
aquisição de riqueza, que gera a glória, que é o poder.
Nesta sociedade, quem não tem poder vive na marginalidade lutando para
sobreviver. Quem o possui está isolado, enjaulado, aprisionado, com medo de
tudo e de todos, pois, além do perigo da violência há o temor de deixar de ser
opressor e passar a ser oprimido . Mantém-se a guerra de todos contra todos, na
busca desenfreada por poder que é sinônimo de felicidade, de sobrevivência.
O homem somente vive na coletividade por interesse, um interesse velado, que
possibilita juntar forças para obter mais e mais poder. A competição é diária,
a todo instante e em todos os lugares. A vida é uma corrida incessante de onde
só sobrevivem os fortes.
Este é o Estado de Natureza criado pelo capitalismo, pelo mercado aniquilador
que colocou o homem em uma selva, onde aguarda o ataque dos lobos, seus iguais.
O indivíduo sente-se isolado, acuado, reage a tudo e a todos, com base em seus
instintos de sobrevivência. É o morticínio generalizado.
Talvez a grande diferença com o Estado de Natureza de Hobbes seja que lá, o
progresso dependia da concretização do Estado de Sociedade, enquanto que aqui,
ele é gerado pela guerra diária, que gerou o mercado, o lobo dos lobos.
O mercado dita as regras do jogo da sobrevivência, enquanto que a sociedade é
mera massa manipulável. Um poder absoluto, sem rivais ou opositores. Sem
identidade, sem nacionalidade, sem pudor.
O cidadão está descontente, com o desemprego, com o desgoverno, com a
desagregação moral e material da sociedade. Falta promoção de políticas
públicas consistentes, capazes de diminuir a desigualdade. Não há uma vida
digna, de paz e esperança... enquanto isso, as massas se proliferam. Tomam
consciência de sua situação, tornam-se força de pressão na busca de melhores
condições sociais.
Através da mídia construiu-se um conceito de que o mercado deve ser venerado e
o Estado aniquilado. Prega-se a idéia de que não há alternativa fora do
capitalismo, fora do mercado que divide a humanidade em dois grandes grupos, o
dos consumidores e o dos fornecedores. Disso resulta um descrédito da população
a tudo o que vem do Estado ou da política, passam a ver “os partidos políticos
e as eleições não como udenista, populista ou peessedista. Mas “como
agricultor, industrial, importador, varejista, operário, grossista e
proprietário”, com os olhos avidamente postos na lei, na patronagem, nos
benefícios que lhe possa porventura conferir o Estado paternalista”23.
Ou seja, observa-se uma mercantilização da vida social que resulta em um
desequilíbrio entre o mercado, o Estado e a sociedade.
Mas o mercado tem sido o mais forte, manipula nações. Sua mobilidade permite
que invista somente onde obtém as melhores vantagens financeiras. Diante deste
quadro, as nações e indivíduos são obrigados a se adaptarem e enfrentarem a
competitividade internacional. Ou seja, o mercado tornou-se um ente tão
poderoso a ponto de determinar os rumos da vida de uma nação.
Diante desse mercado autoritário, estabeleceu-se uma crise de poder24
- principalmente, se pensarmos em termos de globalizado. O poder tornou-se
policêntrico25 , o Estado é obrigado a limitar e dividir sua soberania
com outros entes. Passa a atuar mais como um sistema de governo internacional
do que como entidade soberana. Soberania que nos países subdesenvolvidos é
armazenada pelos grandes conglomerados que definem a organização econômica e
política dessas nações. O poder econômico não mais se satisfaz em manipular
governos. Hoje pretende ser o próprio governo, com autonomia para tomar
decisões que envolvem toda uma coletividade.
Grandes organizações econômicas, entre elas, as empresas transacionais26
, que pelo poderio econômico e social que representam, como pela falta de
vínculo com um Estado em particular, reproduzem um perigo constante à
soberania. Nas últimas três décadas o número dessas empresas triplicou. Somam
hoje mais de quarenta mil27 , possuem atividades em países
desenvolvidos como em países subdesenvolvidos. Sabedoras do seu poderio impõem
condições, exigem regalias, criam um clima de constante instabilidade,
submetendo os Estados as suas exigências.
Assim, com o fenômeno da globalização não é mais possível pensar em um Estado
único, forte, centralizado. O antigo conceito de independência estatal tem sido
reconduzido contemporaneamente para uma idéia de cooperação econômica,
jurídica, social, etc., em âmbito internacional. Dessa forma, decisões que
antes eram tomadas pelos Estados passaram a ser administradas por instituições
supranacionais como, por exemplo, a União Européia, NAFTA e o MERCOSUL; ou
regionais como é o caso da China que está se direcionando para criar uma
confederação de grandes economias regionais, como tem ocorrido em torno de
Pequim, Xangai, Hog Kong, Xian, Taiwan, entre outros. A união de forças foi a
forma encontrada pelos Estados de fazerem frente à pressão do mercado, das
redes internacionais, que coagem os Países através de guerras fiscais a agirem
conforme seus interesses.
Dentro dessa nova lógica de relações internacionais surgidas em conseqüência da
globalização, há ainda, as Organizações Não-Governamentais – ONGs. Essas
entidades possuem sede em todo o mundo e buscam melhores condições de vida há
humanidade. A credibilidade destas organizações tem crescido a cada ano.
Exercem através de seus relatórios um poder de reconhecimento ou repúdio
internacional. Têm sido indispensáveis aos países do terceiro mundo para garantir
acesso a programas internacionais de ajuda ou para serem admitidos em
acontecimentos políticos/sociais mundiais.
Outras entidades importantes nestes novos tempos são os meios de comunicação.
Com as novas tecnologias, entre elas a internet, proporcionou uma nova
realidade de informação, redefinindo os conceitos de fronteira e tempo. A
transmissão de informação é instantânea, é o elo das cadeias produtivas.
Aprofunda e torna mais eficientes os relacionamentos e as tomadas de decisão
entre Estados, empresas e pessoas. É por este arsenal tecnológico que tem sido
transmitida a matéria-prima do mercado: a informação.
O que tem de ser entendido é que na atualidade não faz a menor diferença se uma
empresa está situada em um país em desenvolvimento ou desenvolvido, pois mesmo
que um país consiga rechaçar através de embargos econômicos os produtos e
serviços de outros países, não há como opor resistência à informação.
Por isso, antigas técnicas de protecionismo dos mercados nacionais utilizadas
pelos Estados, que atualmente reaparecem com os blocos econômicos, são
ineficientes frente à informação.
Na atualidade, independente de que parte do mundo, qualquer pessoa tem a
possibilidade de ver o que está disponível para compra ou venda. A competição
no mercado deixou de ser com produtos e serviços e passou a ser com informação,
com tecnologia. A globalização deixou de ser meramente econômica e passou a ser
psicológica ao incluir todas as pessoas em uma comunidade mundial de
comunicação.
Essas novas formas de organização política e econômica dos Estados e dos
cidadãos além da crise de poder produziram uma transformação, uma redefinição,
ou ainda, uma rearticulação nos antigos conceitos de elementos constitutivos do
Estado - território, povo, soberania. Com o fenômeno da globalização esses
conceitos deixam de ter a conotação de um espaço local de autonomia, dentro de
um determinado território e passam a ser entendido como um espaço
interconectado, no sentido de comunidade global.
Frente a este quadro, observa-se a desconstituição e o enfraquecimento político
e social dos Estados. O ingresso em uma sociedade global, financeiramente
desordenada e competitiva. É o surgimento de uma organização social com novas
ideologias, culturas e tradições. Como diz Bonavides é “a pior forma de
recolonização do gênero humano: aquela que ignora o sentimento nacional,
extirpa as raízes da cultura, propõe tradição e identidade, materializa
valores, submete cada povo à tirania do lucro, das bolsas e dos mercados,
dissolve resistências espirituais, anula e desfaz coesões e põe em ruína a
sociedade oralmente destruídas, depois que nela se deu a desagregação dos
costumes, da família, da ética, da consciência pública e dos poderes de quem
governa, legisla e distribui justiça28 ”.
Assim, a globalização produziu um novo modelo de relações humanas e sociais.
Transpôs o limite do Estado Nação. Há um novo mercado, novas relações
políticas, um novo direito, uma miscigenação de culturas, mas também, problemas
sociais nunca resolvidos. Resolver os conflitos oriundos dessa nova realidade é
o desafio do próximo milênio.
Talvez, o Estado Globalizado, venha a ser o verdadeiro Estado hobbesiano,
único, forte, absoluto. O cidadão está apreensivo, teme a exclusão social.
Vê-se impotente diante da amplitude desse novo modelo29.
Mas nada indica que a globalização tenha que produzir apenas um viés negativo
no campo econômico, social e político. Ou mesmo, que suas conseqüências sejam
irreversíveis, inquestionáveis, sem alternativa. Cabe aos governantes, a sociedade
civil, as organizações não-governamentais e demais organismos sociais, ainda,
tentar reverter este quadro. Criar alternativas de fuga para os cidadãos, mesmo
que seja dentro da globalização. Pois, “a globalização implica a estruturação e
a reestruturação de relações de poder à distância (entre, dentro e para além
dos Estados), cujas assimetrias se revelam no diferente acesso aos lugares e
recursos principais de poder e na experiência profundamente desigual de suas
conseqüências e resultados. Daí que não possa gerar os mesmos impactos
socioeconômicos, políticos, culturais e ecológicos nos diferentes países, nem
suscite as mesmas respostas, até porque ela também abre a possibilidade da
tomada de consciência e de formas de contestação em todas as esferas por parte
de Estados, movimentos sociais e cidadãos, na procura de resistir ou
administrar seus impactos”30.
Diante da instabilidade do mundo contemporâneo, da falta de alternativas
claras, de melhorias significativas para a humanidade, da tirania econômica, de
um poder estatal deficiente, entre outros motivos explorados anteriormente,
pode-se afirmar que o Estado de guerra permanece, porém, com outros objetivos.
Antes, lutava-se para preservar a vida, a segurança, a paz. Hoje, luta-se para
manter o capital, o mercado, a sociedade de consumo. Uma sociedade perversa,
que exclui e aniquila o homem, seu criador.
Hobbes entendia como revolucionário e anárquico a idéia de um fim do Estado ou
sua substituição por uma estrutura de poder mais flexível, de maior
participação social. O conceito hobbesiano da necessidade de um Estado único,
forte e centralizado parecia inviolável, porém “A partir do momento em que,
vítimas de decisões tomadas por cima de suas cabeças por entidades
supranacionais, tanto no nível regional (união Européia) quanto o nível
planetário (nações unidas) e também vítimas da “globalização” dos processos
econômicos, dos “mercados financeiros” eletrônicas (sem falar das máfias da
droga, do tráfico de armas e do terrorismo internacional, que também ignoram as
fronteiras), os Estados-nações se vêem despojados, cada dia mais, dessa
“soberania” que outrora constituía a sua força – a partir desse momento tudo
muda, ou pode mudar”31 . Assim, no ponto seguinte, pretende-se
retorquir, a até então, inquestionável soberania do Estado a partir Karl Marx e
Friedrich Engels na busca de uma “sociedade sem Estado”.
3. Sociedade sem Estado
A exploração do homem pelo homem é uma idéia posterior a Hobbes. Teve início
com o liberalismo de Locke, com o fim da propriedade primitiva que até então
ignorava a propriedade privada dos meios de produção.
Nesta época, intensificou-se a guerra de todos contra todos, convertendo-se em
uma luta sem tréguas que culminou com uma transformação revolucionária de toda
uma sociedade, com a destruição das classes em luta e o surgimento de novas
classes, a burguesia e o proletariado. Assim, “A sociedade burguesa moderna,
que nasceu do desmoronamento da sociedade feudal, não aboliu as oposições de
classes. Não fez senão substituir por novas classes, por novas condições de
opressão, por novas formas de luta as antigas. Mas a nossa época, a época da
burguesia tem de particular ter simplificado as oposições de classe. Cada vez
mais se divide a sociedade inteira em dois grandes campos inimigos, em duas
grades classes diametralmente opostas uma à outra, a burguesia e o proletariado32
”.
Marx acredita que em uma revolução política de luta entre classes, não há como
saber, previamente, quem será o ganhador. A história é o resultado da ação
humana e não do destino, ou mesmo do poder econômico. Por isso o marxismo é
considerado antiacadêmico, porque ele “pretende transformar o mundo e não
apenas interpretá-lo. Empenha-se para interpretar o mundo corretamente para
conseguir transformá-lo”33.
Neste ponto de vista, observar as modificações econômicas e sociais ocorridas
em cada momento histórico são de suma importância para a humanidade, pois são
elas que possibilitam a construção de novas bases políticas, intelectuais,
sociais, econômicas e culturais. Mesmo porque, toda a história da humanidade
está ligada a lutas, a revoluções, a movimentos de classes, uma luta incessante
que sempre produziu oprimidos e opressores, explorados e exploradores.
Para o marxismo, a burguesia é o mesmo que o grande capital, o que para nós
contemporaneamente, pode ser comparado ao mercado, aos detentores do cabedal,
dos meios de produção, do qual depende toda a sociedade, principalmente se
falarmos de países subdesenvolvidos.
Não se pretende desenvolver uma teoria contra o mercado, pois ele é necessário
para o progresso dos homens. O próprio Marx admitia que a burguesia trouxe a
prosperidade, o desenvolvimento do comércio, da indústria, da navegação, dos
meios de comunicação, das tecnologias, das ciências que “Durante a sua
supremacia de classe apenas secular, criou meios de produção imensamente
maiores e mais densos que todas as gerações anteriores reunidas. As forças
naturais subjugadas, o maquinismo, a aplicação da química à indústria e à
agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico,
continentes inteiros desbravados, rios que se tornaram navegáveis, populações
inteiras nascidas do solo – que século anterior pressentia tais forças
produtoras adormecidas no seio do trabalho social?34 ”
Assim, o mercado, por meio da burguesia, desenvolveu um papel transformador,
rasgou todas as máscaras, acabou com todos os preconceitos, desvendou as
ilusões, dissolveu tudo o que era estável. Permitindo a evolução da humanidade,
o progresso dos homens. Criou as cidades e tirou parte da população da
estupidez da vida rural. Subordinou os países menos desenvolvidos aos
civilizados, o oriente ao ocidente. Cada país passou a estabelecer suas regras,
suas leis, seus governos, etc. Mas também, com ela veio à insegurança social e
econômica, a agitação da vida humana, a desagregação das famílias, a diminuição
do misticismo, etc. Em fim, a burguesia criou um mundo à sua imagem.
Um mundo onde as relações econômicas valem mais que relações de afeto, onde o
homem nada mais é do que força de trabalho. Vale por sua produtividade,
capacidade criativa e pelo poder econômico que representa. Criou-se um mundo
global, onde o indivíduo é mera massa manipulável e a burguesia/mercado, “nem
sequer é capaz de assegurar aos seus escravos uma subsistência que lhes permita
suportar a própria escravidão”35 . Frente a tais inovações o
homem sente necessidade de reavaliar as condições de sua existência e de suas
relações com o mundo.
Marx sugere uma revolução ordenada36 , em busca de uma sociedade sem
classes, o fim das diferenças sociais. Pretende conquistar o poder político
para em fim, conquistar a democracia, pois o “poder político é, no sentido
próprio, o poder organizado de uma classe em vista da opressão de outra”, porque
“O governo moderno é apenas uma delegação que administra os negócios comuns de
toda a classe burguesa”. Assim, “A sociedade não pode mais viver sob a
burguesia; em outros termos, a existência da burguesia deixou de ser compatível
com a sociedade”37.
Assim, propõe a construção de uma sociedade sem classe, sem diferenças sociais,
sem poder político no sentido próprio, sem Estado – já que o Estado é apenas a
tradução dos antagonismos de classes. Onde o livre desenvolvimento de um é a
condição do livre desenvolvimento de todos. “Seguramente não a de uma ordem
social dirigida pelo Estado. O Estado político para Marx pertence “a
“superestrutura” reguladora da sociedade: é ele próprio um produto da luta de
classes em vez de estar sublimemente além deste conflito. O Estado é em última
análise um instrumento da classe dirigente, uma maneira de assegurar sua
hegemonia sobre as outras classes; e o Estado burguês em particular cresce a
partir da alienação entre o indivíduo e a vida universal. (...) Marx nem sempre
adotou um ponto de vista tão vigorosamente instrumentalista do Estado em suas
análises detalhadas de conflitos de classe; mas estava convencido de que sua
verdade, por assim dizer, está fora de si mesmo, e além do mais o vê por si só
uma forma de alienação. Cada cidadão individual alienou ao Estado parte de seus
poderes individuais, que assumem então uma forma determinante sobre a
existência social e econômica cotidiana que Marx chama “sociedade civil”. A
genuína democracia socialista, em contraste, reuniria estas partes gerais e
individuais entre nós mesmos, permitindo-nos participar de processos políticos
como indivíduos concretamente particulares – no local de trabalho assim como na
comunidade local, por exemplo, em vez de cidadãos abstratos da democracia representativa
liberal”38 .
Mas quando se pensa em alterar conceitos referentes ao Estado e a sociedade,
logo se depara com a economia e a globalização. O que fazer com elas diante dos
anseios de uma sociedade ávida por uma condição humana mais digna, onde
dignidade é sinônimo de conforto e de consumo?
Não há como negar a irreversibilidade do mercado e da globalização no mundo
contemporâneo. O próprio Marx já previa seus efeitos tanto na economia que
“Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o
globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar
vínculos em toda parte39 ”, quanto nas relações pessoais, ao afirmar
a célebre frase “Proletários de todos os países, uni-vos!41 ”.
O correto seria retirar o sentido pejorativo do termo globalização para
passar-se a entendê-la como desenvolvimento41 , como criação de
oportunidades através do comércio, das relações subjetivas, da miscigenação de
culturas. Ou ainda, a possibilidade da humanidade viver harmonicamente através
da construção de uma comunidade global, onde sociedades desenvolvidas ajudem as
subdesenvolvidas para a construção de um mundo melhor, mais justo, sem pobreza,
sem guerras, sem terroristas, etc.
Portanto, é errônea a visão da globalização “apenas”42 como abertura
comercial e financeira, onde o livre comércio leve apenas ao enriquecimento dos
países ricos em detrimentos dos não-ricos. É preciso mudar as concepções,
inclusive em termos econômicos, permitindo que os países subdesenvolvidos tenham
tanto mais chances quanto forem suas oportunidades no comércio mundial. Um
mercado global pode gerar mais renda, mais emprego, mais saúde, mais educação,
mais moradias, em fim, melhores condições de vida, pois todos seriam
responsáveis por todos. Talvez se necessite de mais globalização, porém com
maior equilíbrio e solidariedade.
Portanto, é necessário repensar a relação do homem com a economia. Hoje se
pensa a economia como algo palpável e imutável. Já dizia Marx, o dinheiro é “a
prostituta universal, o proxeneta universal de homens e povos”43 ,
que por ele o homem pratica qualquer ato, constrói qualquer coisa, aniquila seu
semelhante. Esquece-se que assim como o Estado, o dinheiro, o comércio, a
economia são artifícios criados para servir ao homem e não para sua dominação.
A história não foi feita de leis imutáveis, da mesma forma o mercado. O
capitalismo e o Estado, mesmo sendo artifícios construídos pelo homem, existem
e exercem poder sobre os indivíduos, porém, nada indica que devam existir para
sempre, ou mesmo, que não possam ser substituído por outra forma de organização
social. O futuro será o resultado do que os homens, na sua coletividade,
resolverem em seus atos políticos. Ou seja, o Estado, a sociedade, a economia,
o capitalismo dependem de atos políticos dos homens para alterar a história.
O Estado não é um produto superior à história. Ele só existe porque em um
determinado momento histórico o homem sentiu necessidade de formular,
constituir, criar, um ente que fosse capaz de ordenar e regular os indivíduos.
Será que um dia ele pode desaparecer? Pode-se imaginar um futuro sem Estado?
Temos de confiar na capacidade de auto-instituição das sociedades, do cidadão.
Na sua vontade de mudar, de construir um mundo melhor, mais justo, de maior
liberdade, um mundo de paz sem que haja um poder centralizador e coercitivo
obrigando-o a obedecer. Temos de confiar no homem, porque só ele sabe o que e
quando mudar. Só ele é capaz de criar um novo artifício que dê conta do eterno
anseio de uma condição humana digna.
Efetivamente, acreditar na construção de um Jardim de Epicúrio, onde as
relações de poder são inexistentes, é uma utopia. Não necessariamente pelas
relações psicológicas, ou biológicas como afirma Hobbes, mas porque sempre
existirá desigualdade econômica e cultural que acarretem as divisões sociais.
Que nada mais são do que uma violência contra cada um. A permanência constante
de um Estado de guerra. Porém, estas desigualdades podem ser amenizadas, pode
haver uma maior proximidade entre as classes, entre ricos e pobres, entre
milionários e miseráveis. Basta o homem querer, organizar-se para exigir, para
construir, para melhorar.
Como visto, não se pretende o fim da sociedade, mesmo porque, ainda não há uma
perspectiva para homem viver fora dela. A organização social existe desde os
primórdios da criação, de forma arcaica, é verdade. Porém, não há como negar
que ela está desde sempre presente. Portanto, o problema não está na
constituição da sociedade, mas no seu funcionamento como organização social e
política que vise o bem de uma coletividade.
Da mesma forma, é uma quimera acreditar em uma sociedade onde o poder não
circule, não se exerça. Ele está em toda parte, sempre existirá uma forma de
opressão. O poder é necessário para impor determinadas regras de conduta, de
organização, que permitam uma certa tranqüilidade. A conquista da paz, mesmo
que superficial.
O poder é um exercício, uma estratégia que se moldar a cada oportunidade de
forma singular. Não é uma propriedade de uma classe ou pessoa, mas sim, um
conjunto de estratégias que envolvem, manipulam, seduz a todos. Está enraizado
na sociedade e não nas relações entre o Estado e o cidadão. Com isso,
observa-se, que o órgão do poder não necessariamente precisa assumir a forma do
Estado único, forte, centralizado, autoritário, tal como o conhecemos. Há vida
além do Estado porque o poder se exerce independente de sua existência.
Mas para isso, é necessário acordar para o novo, mesmo que para “a maior parte
da media não existe alternativa ao capitalismo, ao globalismo no qual
tudo se subordina ao consumo, ao virtual, ao capital financeiro, ao discurso
único e unidimensional. Apesar disso, aqui e ali surgem vozes dissonantes, a
nos lembrar que sem utopia, sem luta e dor, não é possível encontrar o que Marx
chamou de gênero humano”44.
O importante é não perder a esperança que uma revolução é possível e
necessária. Não se pretende uma revolução de armas, mas de consciência. Como
diria La Boétie45 – buscar a liberdade não consiste em combater ou
derrubar o tirano, mas sim, em não sustenta-lo.
Considerações Finais
A organização social idealizada por Hobbes está fundada em um sistema político
simplista e dicotômico. Fundamenta que há duas formas de Estado, o Estado de
natureza, onde não há regras de conduta, não há respeito, não há solidariedade,
não há segurança, em fim, é uma guerra constante de “todos contra todos”. A
segunda opção seria o Estado civil, ou Estado de sociedade, que se caracteriza
pelo pacto de submissão onde cada um abre mão de sua liberdade em troca da
proteção soberana. É um contrato entre “cada um do povo com e cada um” em busca
da segurança, da estabilidade, da tranqüilidade, da comodidade, da paz.
Assim, Hobbes dirá que é necessária a construção de um poder comum, supremo,
inalienável, independente. Um poder sem igual e sem concorrente, capaz de
estabelecer normas de comportamentos para todos os habitantes. Um poder de
mando e comando, caracterizado pela unidade, centralidade, soberania. Onde a
pessoa do soberano é o ser mais poderoso entre todos os homens, como
representante do Estado é detentor do bem mais valioso, a liberdade dos
súditos.
Hobbes reconhece que a submissão a um homem (que pode ser em um Estado
monárquico, como em uma assembléia, como em um Estado democrático) pode ser
perigoso, porém acredita ser um mal menor do que a falta de um governo que
geraria a falta da segurança, a ausência da paz. A paz é o problema fundamental
da teoria hobbesiana e continua sendo até os dias de hoje.
Na contemporaneidade esta estrutura de poder, o Leviatã de Hobbes, está sendo
colocada em xeque. Observa-se uma crise de poder, uma crise de soberania. O
poder não está mais no Leviatã como pretendia Hobbes, ele está em toda parte,
nos grandes conglomerados financeiros, nos meios de comunicação, nas entidades
supranacionais, etc. Forma uma rede de onde não há saída. Onde todos, de alguma
forma, desempenham um papel.
Já o indivíduo debate-se contra essas novas mitologias criadas pelo capitalismo
para não perder sua individualidade, sua personalidade. Quer resistir, quer ser
livre. Na antiguidade eram escravos do medo, da força dos exércitos... Hoje são
escravos da economia, do consumo, como bem desenvolve Hannah Harendt. A
sociedade evoluiu, porém o homem, continua sendo o mesmo hobbesiano, que luta
contra tudo e todos em busca da satisfação de seu desejo – poder que
proporciona riqueza, gloria, fama – é este o instinto que move a sociedade
capitalista do século XXI.
Ou seja, hoje o ser humano é escravo do mercado, um ente criado pelo homem com
o intuito de progredir, mas que na atualidade tornou-se o opressor do criador.
Atua diariamente nas bolsas de valores, na cotação do dólar, influenciando,
chantageando, subornando governos, políticos, Estados, orientado as ações da humanidade.
O mercado não deveria ser o empecilho, mas a solução dos problemas das
comunidades. É um adjetivo que pode ter a concepção que o homem entender como a
melhor para o desenvolvimento da humanidade. Deveria ser, efetivamente, um
mecanismo de produção de riquezas.
Da mesma forma a globalização, veio para unir mercados, diminuir distâncias,
propiciar uma maior circulação de bens, serviços, tecnologia, informação.
Porém, também provocou a desconcentração e fragmentação do poder, possibilitou
novas configurações geopolíticas, acentuou as diferenças entre ricos e pobres,
diminuiu o papel da família, do trabalho, da comunidade e do Estado.
Estaríamos diante da “falência do Estado”? Seria o fim do Leviatã idealizado
por Hobbes, um ser com poder supremo, absoluto, coercitivo, indivisível e
inalienável?
Marx e Engels, já a muito propunham a construção de uma sociedade sem classes,
sem adversários, sem Estado. Talvez seja uma utopia acreditar que algum dia as
diferenças sociais, a distância que separa os ricos e dos pobres seja
amenizada. Talvez seja uma idéia revolucionária, anárquica... Mas este é um
grande desafio.
Quem pode duvidar que em um dado momento histórico o homem perceba que o
Estado, como está ai constituído, perdeu sua finalidade, não mais garante a
segurança, a tranqüilidade, a paz e que é o momento de repensar sua
efetividade, sua necessidade? Evidente que este dia não será amanhã...
Mas para isso é necessário acordar para o novo, querer mudar, ter esperança na
humanidade. A acreditar no homem e na sua capacidade de alterar o futuro, de
crescer, de progredir, de ser livre...
Notas de rodapé
convertidas
1. MARX E ENGELS – “Obras Escolhidas”, p. 24.
2. HOBBES, Thomas. “Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil”. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone, 2000. 49
p. 36.
3. Ibidem, p. 53.
4. Ibidem, p. 96.
5. BOBBIO, Norberto. “Thomas Hobbes”. Rio de Janeiro: Campus, 1991, pág. 36 e
37, sob subtítulo “a guerra de todos contra todos”, comenta o pensamento de
Hobbes ao estabelecer o fictício Estado de Natureza.
6. HOBBES, Thomas. “Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil”. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone, 2000. 49
p. 70.
7. Ibidem, p. 123.
8. Ibidem, p. 123.
9. Ibidem, p. 34.
10. Ibidem, p. 129.
11. Ibidem, p. 152.
12. HOBBES, Thomas. “Do cidadão”. Tradução, apresentação e notas de Renato
Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fonte, 1998, p. 108, afirma que o poder
soberano “é o que chamamos de absoluto, o maior que homens possam transferir a
um homem”.
13. Hobbes, assim define o Estado “Uma pessoa instituída, pelo ato de uma
grande Multidão, mediante Pactos recíprocos uns com os outros, como Autora, de
modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar
conveniente, para assegurar a Paz e a Defesa Comum. O titular dessa pessoa
chama-se SOBERANO, e se diz que possui Poder Soberano. Todos os
restantes são SÚDITOS” (HOBBES, Thomas. “Leviatã ou a matéria, forma e poder de
um Estado eclesiástico e civil”. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone,
2000. 49 p. 126).
14. Hobbes estabelece o seu entendimento e o simbologismo do nome Leviatã em
“Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil”.
Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone, 2000, p. 229.
15. Neste sentido: CHEVALLIER, Jean-Jacques. “As grandes obras políticas de
Maquiavel a nossos dias”. Tradução de Lydia Cristina. Rio de Janeiro: Agir,
2001, p. 77.
16. Hobbes vai dizer que a liberdade do súdito está restrita as Leis criadas
pelo soberano, por isso, o problema de uma autoridade despótica. Assim,
“afirmar que todos os habitantes de um Estado têm Liberdade em determinado caso
é o mesmo que dizer que, para esse caso, não foi feita nenhuma Lei ou, caso
tenha sido feita, já foi revogada”. (HOBBES, Thomas. “Leviatã ou a matéria,
forma e poder de um Estado eclesiástico e civil”. Tradução de Rosina D’Angina.
São Paulo: Ícone, 2000, p. 209).
17. HOBBES, Thomas. “Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil”. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone, 2000, p.
167.
18. HOBBES, Thomas. “Do cidadão”. Tradução de Reato Janine Ribeiro. São Paulo:
Matins Fontes,1998, p.156.
19. HOBBES, Thomas. “Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil”. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone, 2000, p.
155.
20. Ibidem, p. 215.
21. Ibidem, p. 253.
22. “... num discurso pronunciado em 1992, presidente Clinton dissera que “no
ano passado, pela primeira vez desde 1920, um por cento dos norte-americanos
tem mais riqueza que as possuídas por 90% da população (Minsburg, 1994, p. 17).
É certamente em virtude de todo este acúmulo de evidências que o economista
Richard Freeman sugeriu que os Estados Unidos estão avançando na direção de uma
apartheid economy, na qual “os ricos vivem isolados em seus subúrbios
exclusivos e em seus opulentos apartamentos, sem nenhuma ligação com os pobres
que moram nos slums” (Freeman, 1996)” (BORON, Atílio A “Os “novos
Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e
decadência da democracia na América Latina”. “Pós-neoliberalismo II. Que estado
para que democracia”. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 32).
23. BONAVIDES, Paulo. “Do Estado liberal ao Estado social”.São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 202.
24. MORAIS, José Luiz Bolzan de. “Revisitando o Estado! Da crise conceitual à
crise institucional (constitucional)”. “Anuário do programa de pós-graduação em
direito – mestrado e doutorado”. São Leopoldo: Unisinos, 2000, pág. 60 a 104,
assim como em STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan. “Ciência políticas
e Teoria geral do Estado”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, pág. 128 a
148, tratará detalhadamente de questões atinentes à crise de poder do Estado.
25. Expressão utilizada por CALERA, Nicolas Maria. “Yo, el Estado”. Madrid: Trotta, 1992.
26. BORON, Atílio A “Os “novos Leviatãs” e a polis democrática:
neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América
Latina”. “Pós-neoliberalismo II. Que estado para que democracia”. Petrópolis:
Vozes, 2000, p. 7, entende por empresas transnacionais como “... o surgimento
de um pequeno conglomerado de gigantescas empresas transnacionais, os “novos
Leviatãs”, cuja escala planetária e gravitação social os torna atores políticos
de primeiríssima ordem, quase impossíveis de controlar e causadores de um
desequilíbrio dificilmente reparáveis no âmbito das instituições e das práticas
democráticas das sociedade capitalistas”.
27. Ibidem, p. 38 “... os Leviatãs agora são muitos, e não só um, como queria o
filósofo político. E, mais importante ainda, esses Leviatãs são privados, são
as grandes empresas que, nas últimas décadas, garantiram seu predomínio nos
mercados mundiais até limites inimagináveis faz poucos anos. Como sabemos, o
poderio que hoje caracteriza os mega conglomerados da economia mundial –
gigantescas burocracias privadas que não prestam conta a ninguém nem a nada –
não tem precedentes na história”.
28. BONAVIDES, Paulo. “Do país constitucional ao país neocolonial – A derrubada
da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional”. 2º ed.
São Paulo: Malheiros, 2001, p. 55/56.
29. Bonavides não “vislumbra saída para essa metamorfose do capitalismo na sua
feição globalizadora; ela aflige e revoga o constitucionalismo social dos
países periféricos, cujas economias debilitadas se arredam cada vez mais da
concretização de suas metas emancipatórias, ao mesmo passo que se arrastam na
estagnação e decadência” (Ibidem, p. 57).
30. GÓMEZ, José Maria. “Política e democracia em tempos de globalização”. Rio
de Janeiro: Vozes, 2001, p. 132.
31. DELACAMPAGNE, Christian. “A filosofia política hoje – idéias, debates,
questões”. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,
2001, p. 29.
32. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. “Obras escolhidas”.
São Paulo: Alfa-Omega, s/d, p. 22.
33. PEREIRA, Duarte. “Visão e interpretação da sociedade brasileira”. “Crítica
marxista – 13”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p. 166.
34. CHEVALLIER, Jean-Jacques. “As grandes obras
políticas de Maquiavel a nossos dias”. Tradução de Lydia Cristina. 8º ed. Rio
de Janeiro: Agir, 2001, p. 301.
35. CHEVALLIER, Jean-Jacques. “As grandes obras
políticas de Maquiavel a nossos dias”. Tradução de Lydia Cristina. 8º ed. Rio
de Janeiro: Agir, 2001, p. 306.
36. “Qualquer pessoa que tenha um mínimo de familiaridade com a problemática
política do marxismo não pode supor que, para Marx, com o desaparecimento do
Estado, se tenha o advento da sociedade anárquica, tal como a concebiam os
anarquistas; aqueles que falam em marxismo literário ou anarco-marxismo, ou
desconhecem o anarquismo, ou o marxismo” (GALVÃO, Luís Alfredo. “Capital ou
Estado?”. São Paulo: Cortez editora, 1984, p.146).
37. CHEVALLIER, Jean-Jacques. “As grandes obras
políticas de Maquiavel a nossos dias”. Tradução de Lydia Cristina. 8º ed. Rio
de Janeiro: Agir, 2001, p. 306.
38. ENGLETON, Terry. “Marx e a liberdade”. Tradução de Marcos B. Oliveira. São
Paulo: Unesp, 1999, p. 51.
39. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. “Obras escolhidas”.
São Paulo: Alfa-Omega, s/d, p. 24.
40. CHEVALLIER, Jean-Jacques. “As grandes obras
políticas de Maquiavel a nossos dias”. Tradução de Lydia Cristina. 8º ed. Rio
de Janeiro: Agir, 2001, p. 316.
41. Boron não acredita que seja possível converter a globalização em benefício
da população porque “Os trabalhadores poderão organizar greves, invadir terras,
ocupar fábricas e terrenos urbanos e quase invariavelmente a resposta oficial
oscilará entre a repressão e a indiferença, mas nunca será o temor. (...) Em
suma, as empresas transnacionais e as gigantescas firmas que dominam os
mercados transformaram-se em protagonistas privilegiados de nossas débeis
democracias. Seu predomínio nesta “segunda arena” da política democrática, os
mercados, projeta-se decisivamente na esfera pública e nos mecanismos
decisórios do Estado, prescindindo das preferências em contrário, que, em
matéria de políticas públicas, ocasionalmente pudessem exprimir-se nas ruas”
(BORON, Atílio A “Os “novos Leviatãs” e a polis democrática:
neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América
Latina”. “Pós-neoliberalismo II. Que estado para que democracia”. Petrópolis:
Vozes, 2000, p. 44/45).
42. “Ao contrário do otimismo da tese globalista, devemos também recordar que
“globalização” não quer dizer exclusivamente “mercado mundializado”. Há também
políticas globais, inclusive políticas globais não governamentais, como a
cúpula das Nações Unidas, a Convenção sobre os Direitos da Criança, as quais
tiveram um efeito importante sobre a sociedade global. Na Europa está-se
desenvolvendo um processo muito interessante de integração supranacional que
denuncia a tendência ao surgimento de uma área normativa européia. O
interessante aqui não é o mercado comum. Mas as instituições de justiça como,
por exemplo, a Corte de Direitos Humanos e a Corte de Justiça” (THERBORN,
Göran. “Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo,
decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina”.
“Pós-neoliberalismo II. Que estado para que democracia”. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 87).
43. ENGLETON, Terry. “Marx e a liberdade”. Tradução de Marcos B. Oliveira. São
Paulo: Unesp, 1999, p. 34.
44. MATHIAS, Suzeley Kalil. A guerra revolucionária acabou?. “Crítica Marxista
– 13”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p. 171/172.
45. LA BOÉTIE, Etiene. “Discurso da
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* Coordenadora do Curso de Direito da União Educacional do Norte - UNINORTE e professora da Universidade Federal do Acre – UFAC. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
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