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A Filosofia do Direito em Kant
Renato Vasconcelos Magalhães *
· I - INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa, de
forma despretensiosa, contribuir no sentido de trazer à lume alguns tópicos da
filosofia do Direito na obra de Immanuel Kant, fazendo com que o legado
jusfilosófico deste "Copérnico" venha, de alguma forma, contribuir
não só para o desenvolvimento da problemática jurídica enquanto questão
essencialmente teórica, como também na aplicação do Direito enquanto realização
do justo, entendido tal conceito na forma esboçada por ROBERTO AGUIAR
(1).
Cumpre-nos, inicialmente, situar
Kant dentro do panorama filosófico de sua época para que possamos ter uma visão
contextualizada da importância de sua obra. Nascido em Koenisgberg, na
Alemanha, em 22 de abril de 1724, e educado sob o espírito pietista que caracterizava
o protestantismo alemão da época, em 1740 ingressa na Universidade de
Koenigsberg, dedicando-se inicialmente a Teologia e posteriormente às
Matemáticas, às Ciências Naturais e à Filosofia. Passado alguns anos, por volta
de 1770, é nomeado para a cátedra de Matemática, na mesma Universidade, que
mais tarde trocaria pela de Lógica e pela de Metafísica, lecionando durante 26
anos e falecendo em 12 de fevereiro de 1824.
II - O DESENVOLVIMENTO FILOSÓFICO
O filósofo das três críticas,
como mais tarde viria a ser conhecido, inspirou-se para a construção do seu
sistema filosófico nas correntes que, até então, predominavam: o Racionalismo
dogmático de DESCARTES, LEIBNIZ E ESPINOZA e o Empirismo cético de BACON, HUME
E LOCKE. Os racionalistas acreditavam que a busca das verdades absolutas
poderia (e deveria) ser feita sem a intervenção dos sentidos que, de certa
forma, obstaculizavam o conhecimento e, por conseguinte, obscureciam a verdade.
O conhecimento, para a doutrina racionalista, seria fruto de uma simples
faculdade, a razão. ESPINOZA professava que "se encontrará a
possibilidade de atingir as coisas particulares partindo do todo concreto, em
que não haverá mais a dualidade de sujeito e objeto, pois no todo estes dois
são idênticos" (2). Partindo deste raciocínio chegaríamos à conclusão
que o todo na filosofia de LEIBNIZ corresponderia à figura de Deus que, através
do seu conceito, unificaria as idéias e os seus objetos, o que dispensaria a
causalidade entre as coisas e o conhecimento. Por outro lado, os empiristas
creditavam todo o sucesso das suas investigações filosóficas à experiência.
Quanto mais próximos dos sentidos e, logicamente, mais distantes da razão, mais
seguro seria o conhecimento. Com os empiristas e, precisamente com BACON, não se
colocaria mais o problema do conhecimento da "coisa em si", porque o
intelecto somente conseguiria atingir, através da experiência, os fenômenos,
aquilo que se perceberia sensorialmente. Daí o ceticismo desta corrente. Assim,
para os empiristas, o conhecimento seria fruto de uma outra faculdade, a
sensibilidade.
Durante a primeira parte de sua
atividade filosófica, que alguns autores costumam dividir em quatro (3), Kant
deixou-se levar pelo racionalismo dogmático tendo, mais tarde, sido desperto
deste sono através do empirismo cético.
Ocorre que nenhuma destas
correntes, se vistas isoladamente, responderia ao anseio filosófico de Kant. A
primeira corrente, ao se ater somente à razão humana, não conseguiu criar uma
teoria que explicasse a própria razão como elemento inconteste de todo o
conhecimento, como assevera IRINEU STRENGER: "tecia uma rede metafísica
e racional em torno do conhecimento de Deus, do mundo e da alma humana, sem
ocorrer uma averiguação indagando com que direito confiava cegamente na pura
razão humana em assuntos que sobrepassam todo os limites da experiência
possível" (4). Cria-se na razão como uma fé. A Segunda corrente, por
seu turno, afirmava que todo o conhecimento partiria da experiência, contudo
não formulava princípios seguros que embasassem sua teoria: tendo a matemática
e a física verdades necessárias e universais e sendo os dados da experiência
contigentes e particulares, essa necessidade e universalidade não derivaria da
experiência, teriam uma outra fonte e qual seria esta? (5)
É exatamente neste ponto do seu
desenvolvimento filosófico que Kant aparece com suas três Críticas, fazendo
confluir as doutrinas filosóficas anteriores, procurando uma resposta ao
problema que ora se colocava: como chegar ao conhecimento sem cair nas
antípodas do racionalismo e do empirismo. A resposta vem com a Crítica da
Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do
Juízo (1790). Com estas três obras Kant procura tanto responder a uma
filosofia especulativa, essencialmente teorética, quanto uma filosofia prática.
Superficialmente, já que nosso
intuito não é precisamente esboçar a teoria filosófica de Kant, mas tão somente
verificar a contribuição de seu pensamento para a filosofia do Direito,
arriscamo-nos a comentar, em síntese apertada, que dentro do sistema kantiano a
razão pura haveria de ser um conjunto de conceitos puros "a priori",
deduzidos pela razão da experiência, enquanto que a razão prática deveria
abranger os princípios puros do exercício da razão pura prática no campo da
Moral e do Direito.
Assim, a doutrina do Direito
encontra-se inserta na obra kantiana na efetivação da razão prática, que
proporciona os princípios básicos de sustentação a uma metafísica dos costumes.
Ao justificar esta metafísica Kant assevera: "se um sistema de
conhecimento ´a priori´ por puros conceitos se chama metafísica, uma filosofia
prática, que não tem por objeto a natureza, mas a liberdade do arbítrio,
pressuporá e requererá uma metafísica dos costumes" (6)
Vista como uma síntese da
sensibilidade e do entendimento o conhecimento em Kant corresponde a uma
correlação entre o sujeito e o objeto. "Nessa relação os dados
objetivos não são captados por nossa mente tais quais são (a coisa em si), mas
configurados pelo modo com que a sensibilidade e o entendimento os apreendem.
Assim, a coisa em si, o ´númeno´, o absoluto, é incognoscível. Só apreendemos o
ser das coisas na medida em que se nos aparecem, isto é, enquanto
fenômeno." (7). Não conhecemos a realidade essencial, apenas a manifestação
fenomenológica das coisas, adaptando-se estas à nossa faculdade e não o
contrário (revolução corpernicana). A problemática do conhecimento em Kant é
colocada de forma clara na obra de HABERMAS : "Com Kant, a tarefa
prescutora das possibilidades do conhecimento delimitou o alcance da ciência -
da crítica - fundando uma teoria do conhecimento imune às questões da
compreensão do ser inscritas no indizível, indecifrável e ilimitado mundo
metafísico. Desta forma a filosofia se presume um conhecimento antes do
conhecimento, abrindo entre si e as ciências um domínio próprio do qual se vale
para passar a exercer funções de dominação" (8). Veremos mais
adiante que esta revolução copernicana opera-se com Kant principalmente na
Ética. Cria-se, assim, um fosso intransponível entre a "coisa em si"
e o fenômeno. Na palavras de CARLOS LOPES DE MATOS :"Dos fenômenos para
uma realidade essencial há um passo que não podemos dar na hipótese do realismo
mediato: esta realidade fica sendo incognoscível. Em conclusão, apenas as
ciências tem valor. A metafísica teórica torna-se impossível, só se refazendo
as verdade metafísicas por exigência da razão prática: o dever supõe a alma
imortal, a liberdade e Deus" (9).
Esta ruptura laborada por Kant,
colocando o ´ser´ como inatingível pelo pensamento humano, vem influenciar de
forma explícita o pensamento jurídico de sua época, já que aquele permanece
prisioneiro de suas próprias formas subjetivas de pensar, enquanto que o ´dever
ser´ impõe-se à vontade humana. (10). Os filósofos do Direito após Kant passam
a se posicionar ou segundo este, reduzindo o Direito a um mero ´dever ser´, sem
relação com o ´ser´, como o fez brilhantemente KELSEN (11), ou buscando uma
saída para a superação desta dicotomia, tentando deduzir o ´dever ser´ do
´ser´, já que para Kant isto seria impossível: "Para Kant, pois, o
´dever ser´ não pode ser deduzido do ´ser´, não se assenta na estrutura do
fato, mas na racionalidade do Subjetivo" (12).
Somente com HUSSERL, através da
fenomenologia jurídica, é que se vai superar a ruptura kantiana, tentando
relacionar os dois mundos separados, permitindo uma correspondência entre o
´ser´ e o ´dever ser´, ou mais precisamente, entre o ser e o pensar. O Ego,
agora com HUSSERL, volta-se intencionalmente para os objetos individuais,
colocando-os em parênteses e, podendo desta forma captar o eidos, a
essência ideal do objeto. Esta tentativa de superação da dicotomia kantiana,
através da fenomenologia de Husserl, repercute no pensamento jurídico,
sobremaneira nos trabalhos do jurista alemão ADOLF REINACH (13), que publicou
um livro no qual o Direito era tomado através de uma ótica fenomenológica.
Resta, inconteste, que o pensamento kantiano além de originalmente ter
contribuído para o desenvolvimento da filosofia do Direito, despertou entre
juristas da época e posteriores efervescentes discussões jusfilosóficas tanto
no sentido de depurar as suas teorias, quanto no intuito de superá-las.
Apesar de ter publicados
trabalhos anteriores é somente como a CRITICA DA RAZÃO PURA que Kant revela os
três pontos de sua investigação filosófica : Que posso conhecer? Que devo
fazer? E o que me é permitido esperar? Para a esfera do trabalho a qual nos
propusemos, a segunda pergunta é que assume forma relevante. Trata-se de
investigar a possibilidade da existência de princípios ´a priori´ do agir
humano. Entretanto, isto só é possível na medida que exista uma razão pura
prática, isto é, se a razão pura, poder ser, independente de qualquer motivo,
prática. Este estudo será o objeto da CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA.
Antes, contudo, de partimos para
A Critica da Razão Prática, seguindo o desenvolvimento lógico do pensamento
kantiano analisemos, mesmo que superficialmente, a idéia contida na Crítica da
Razão Pura.
Nesta obra toda investigação
filosófica de Kant se volta para a correlação entre a objetividade da
experiência possível e as condicionalidades ´a priori´ e constitutivas próprias
do eu puro ou da consciência em geral. MIGUEL REALE, em artigo lapidar, na
Revista Brasileira de Filosofia, pontua "É sabido que uma das
contribuições fundamentais e decisivas de Kant consiste no reconhecimento da
função ativa e constitutiva do espírito, enquanto dotado da faculdade de
síntese ordenadora dos dados sensíveis, para a determinação da experiência e a
constituição fenomênica dos objetos, pondo em correlação necessária a
´experiência possível´ com ´as condições lógicas de possibilidade´ inerentes ao
sujeito cognoscente consideradas de maneira universal, isto é, não como
individualidade empírica, mas como ´consciência em geral´". (14)
A teoria transcendental de Kant,
que tem por objeto o conhecimento humano, constitui, na verdade, um método, que
visa encontrar a possibilidade de juízos que venham revelar um conhecimento
universal e que não seja tão somente um desdobramento do próprio conceito, isto
é, do sujeito no predicado. Assim, pode-se afirmar que para Kant transcendente
não é o que extrapola os limites da experiência possível, mas o que precede
toda experiência, tornando possível o próprio conhecimento da experiência. "Si el conocimiento
fuese transcendente, conoceria cosa externas; si fuese inmanente, sólo
conocería ideas (lo que hay en mí). Mas el conocimiento es transcedental, es
decir, conoce los fenómenos, las cosas en mí, lo que se me aparece como
fenómeno" (15).
A Critica da Razão Pura foi
escrita exatamente para determinar as possibilidades do conhecimento e os
fundamentos de sua validade. Em Kant a metafísica ontológica é substituída pela
metafísica transcendental que não se arroga mais no interesse de conhecer os
objetos transcendentes, seu objetivo, com Kant, se encontra voltado agora para
a estrutura do sujeito transcendental e, em última análise, as próprias formas
e validades de se conhecer. Na obra em comento, Kant define os juízos ´a
priori´ e ´a posteriori´, os juízos analíticos e sintéticos, que servirão de
estrutura para o desenvolvimento de toda sua teoria.
O Juízo ´a priori´ constitui o
conhecimento universal e necessário que não funda sua validade na experiência,
como é o caso da matemática e da física. Já os juízos ´a posteriori´ têm na
experiência o seu fundamento de validade.
Juízos analíticos são aqueles em
que o atributo explicita o que já se encontra no sujeito (ex. os corpos são
extensos, a esfera é redonda). Nestes casos o predicado já se encontrava
contido no sujeito. Os juízo sintéticos, por sua vez, têm a particularidade do
atributo acrescentar ao sujeito algo que anteriormente não lhe pertencia (ex. a
mesa é de madeira, a cadeira é pesada). Há, ainda, as categorias ´a priori´
(espaço e tempo) com as quais o entendimento apreende e conhece as coisas.
Nos juízos sintéticos ´a
posteriori´ a experiência me ensina que os atributos convém ao sujeito, contudo
tais atributos, em razão do seu próprio fundamento, não podem ser considerados
necessários e universais. Já nos juízos sintéticos ´a priori´ o atributo
acrescenta algo ao sujeito, mas de uma forma universal e necessária (16).
Ultrapassando a Crítica da Razão
Pura Kant vai se ater na ação moral, a qual afirma que somente será possível se
a razão pura for também prática, ou seja, se ela não depender de nenhum fator
externo, a não ser sua própria força interna. Este é o objeto de análise da
Crítica da Razão Prática que passa a ser estudada na segunda fase do desenvolvimento
de sua filosofia e é precisamente na razão prática que vai se situar o
nascedouro de toda concepção jurídica kantiana, desenvolvida ulteriormente na
Metafísica dos Costumes.
Não se pode negar a influência de
ROUSSEAU nesta fase do desenvolvimento filosófico de Kant, bem como a forte
educação pietista que recebera enquanto jovem. Com Rousseau aprende que a
dignidade do homem esta fundada na sua moralidade.
Como dantes afirmado, a revolução
corpernicana realizada por Kant ocorreu sobremaneira na Ética. O
desenvolvimento da filosofia moral desde SÓCRATES, que voltara os olhos para a
práxis humana ao invés dos deuses (17), centralizava-se principalmente sobre o
objeto enquanto Kant, revolucionariamente, passa a visualizar o assunto sobre o
enfoque do sujeito. Coloca a moral em 1ª pessoa ocorrendo, assim, o processo de
interiorização do "eu". A filosofia volta-se ao próprio conhecimento,
colocando-o em cheque, questionando os fundamentos de validade do próprio
pensar. A metafísica passa a ocupar-se do estudo do sujeito transcendental
(filosofia transcendental).
III - A FILOSOFIA JURÍDICA
A filosofia jurídica kantiana
propriamente dita teve seu início na Crítica da Razão prática mas é
principalmente no Metafísica dos Costumes (18) que Kant aprofunda o seu estudo
jusfilosófico . Nesta obra o filósofo alemão retoma alguma conceitos já
discutidos na Crítica da Razão Prática e os aprofunda. Suas principais
preocupações e, por conseguinte, contribuições, são o desenvolvimento paralelo
dos conceitos de Direito e moral, delimitando seus campos e traçando suas
características fundamentais e a idéia da coação como nota essencial do
Direito.
Kant observa na primeira parte da
Metafísica dos Costumes que existe uma dupla legislação atuando sobre o homem,
enquanto consciente de sua própria existência e liberdade: uma legislação
interna e uma legislação externa. A primeira diz respeito à moral (ética no
sentido estrito), obedecendo à lei do dever, de foro íntimo, enquanto a segunda
revela-nos o Direito, com leis que visão a regulação das ações externas.
O paralelo entre moral e Direito
norteia toda a obra jurídica deste autor, tendo a liberdade como ponto nodal e
pano de fundo desta relação. Kant observa que o verdadeiro critério
diferenciador entre moral e direito é a razão pela qual a legislação é
obedecida. Afirma que a vontade jurídica é heterônima, posto que condicionada
por fatores externos de exigência da mesma, enquanto que a vontade moral é
autônoma, já que o móbil desta é o dever pelo dever.
Desta forma a mera concordância
com a norma, independente do móbil, encontra-se no plano jurídico da
legalidade, enquanto que para o plano ético exige uma concordância com valores
internos independente de inclinações. RAYMOND VANCOURT, comentando a moral
dentro da visão kantiana, expõe: "Pode acontecer, de fato, que as
nossas ações estejam materialmente conformes com o dever, mas que nós a façamos
por interesse ou inclinação: é o que se passa com o comerciante que vende ao
preço justo para manter a sua clientela, ou com o homem que ajuda o seu próximo
unicamente por simpatia. Comportando-se desse modo eles permanecem no plano da
legalidade. Esta exige apenas que se atue de acordo com a lei, pouco importando
as intenções. A moralidade exige mais: que eu me conforme com e espírito e a
letra da lei, que eu me conforme a isso por respeito por ela" (19).
Resta-nos a pergunta; por que se
age por dever(moral) e conforme o dever (jurídica) e não de forma diversa? A
Metafísica dos Costumes tem por objeto o estudo dos princípios "a
priori" da conduta humana. Compreender as condições que estão submetidas o
homem, libertas de toda mistura empírica e, dentro destas condições, a vontade,
na concepção kantiana, a qual ocupa papel de destaque em sua filosofia,
torna-se constituidora da ética. A vontade, para Kant, constitui a própria
razão pura prática e sendo ela a mola propulsora da ética, seus princípios são
erigidos à categoria do universal. Em outras palavras, a moral que estava
centrada no individual e subjetivo agora com a razão torna-se universal e
objetiva. Contudo, como assevera JOAQUIM SALGADO, esta ética para ser universal
não pode ter a sua vontade dependente de uma matéria, precisa ser desprovida de
conteúdo: "O ato moral tem de nascer da própria vontade que, concebida
como desprovida de conteúdo e não se determinando por nada do exterior, mas por
si mesma é vontade pura. Por isso ela mesma cria a lei a que se submete, a qual
não é dada de fora por algum objeto ainda que esse seja concebido como bem
supremo". (20)
Assim, os princípios desta moral
partem do próprio sujeito, sem contudo poder ser considerada subjetiva, já que
não são ditados pela sensibilidade, tratam-se de conceitos derivados da vontade
pura ou "a priori" da razão. Ao agir sobre tal ordem o homem cria
princípios universais que devem ser seguidos por todos. Agindo eticamente o
homem não age por si próprio mas por toda a humanidade. Introduz, portanto, a existência
do dever como uma forma "a priori" da razão, que traduz-se no
imperativo categórico traduzido por ele nos seguintes termos: "obra
conforme a una máxima tal, que a la vez pueda servir de Ley universal" (21).
Concluímos, assim, que a moral
(ética no sentido estrito) kantiana é visualizada sob uma ótica puramente
formal, sem prescrição de nenhum conteúdo. O dever moral é formal (dever por
dever), agindo-se apenas por respeito ao dever.
Por seu turno, diferentemente da
legislação moral que tem como princípio fundamental o imperativo categórico
(22), enquanto postulado da razão pura prática, a norma jurídica tem como regra
um dever exterior, império de uma autoridade investida de poder coativo.
Não podemos esquecer que para
Kant tanto o Direito quanto a moral têm a sua estrutura de justificação na
liberdade (23) e que a diferença entre um e outro reside no fato de que na
moral a força coativa é interna e oriunda da própria razão pura prática
enquanto que no Direito é externa e visa a garantia da liberdade do outro.
Ainda respondendo a indagação
anterior, Kant afirma que o dever se assenta no princípio da liberdade, sem a
qual aquele não seria possível. Aduz, ainda, que o dever constitui uma
vinculação humana à lei. Entrementes, age-se de acordo com a lei moral,
respeitando-a, somente quando esta é fruto da própria vontade e produto da
vontade pura ou da razão pura prática. Para Kant dever moral e dever jurídico
não se diferenciam pela substância. Para a ação moral o homem age por dever e
para o Direito conforme o dever e para ambos os casos o dever só é cumprido
porque derivada da vontade como razão pura prática, sob o imperativo categórico
da razão.
Retomando a doutrina do jurista
alemão THOMASIUS, Kant assevera o caráter coativo do Direito e toma este como
sua nota característica. Diferente de seus antecessores coloca a coação como
nota essencial do Direito, trazendo-a para dentro do Direito. Por isso Kant
fala mesmo de coação e não de coercibilidade. Não seria mais a faculdade de
coagir quando alguém estivesse agindo contrário ao Direito, mas que em toda
estrutura do Direito a coação estaria inerente, como uma malha intrínseca
permeando toda a ação humana que se projetasse para o exterior, já que o
Direito só cuidaria das ações exteriorizadas, projetadas para fora do ser
humano (ao contrário da moral). Mais tarde se afirmaria que o Direito não cuida
tão somente daquilo que se exteriorizaria, mas levaria em conta o próprio mundo
da intenção. (24)
A pergunta que se coloca agora é
como a coação entraria como nota característica do Direito se o conceito de
liberdade encontra-se subjacente à idéia de Direito. Kant pontua que a minha
ação será justa se puder conviver com a liberdade do outro, segundo leis
universais e, contrario sensu, será injusta a ação do outro que me
impeça de agir desta maneira. Cria, assim, o imperativo categórico do Direito
como decorrência lógica do imperativo categórico da moral: "Age
externamente de tal modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a
liberdade de todos segundo uma lei universal".
Destarte, tudo aquilo que exerce
coação à minha ação justa constitui um obstáculo à liberdade, necessitando,
assim, de uma coação contrária e justa. Demonstra-se o próprio caráter ético da
coação dentro do Direito. "Além disso, a coação que o outro me exerce,
contrária à minha ação justa, é um obstáculo à liberdade. O obstáculos ao
obstáculo à liberdade é justo, porquanto concorda com a liberdade segundo leis
universais. Assim, a coação é conforme ao Direito, ou seja, Direito e faculdade
de coagir significam a mesma coisa" (25). Compatibiliza, por
conseguinte, a idéia de coação e liberdade, como sendo aquela não antagônica
mas necessária mesma a idéia desta.
Na busca do conceito de Direito
Kant afirma a impossibilidade de encontrá-lo pela via empírica, apenas com a
observação do direito positivo. Para ele o grande erro dos juristas de até
então foi a procura do conceito na manifestação do Direito, enquanto legislação
positiva, quando deveriam ter ido atrás daquilo que era essencial. A procura
deveria ser feita nos princípios "a priori" da razão pura prática.
Para Kant são três os elementos que compõe o conceito de Direito: "em
primeiro lugar, este conceito diz respeito somente à relação externa e,
certamente, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como
fatos, possam influenciar-se reciprocamente; em segundo lugar, o conceito do
Direito não significa a relação do arbítrio como o desejo de outrem, portanto
com a mera necessidade (bedürfnis), como nas ações benéficas ou cruéis, mas tão
só com o arbítrio do outro; em terceiro lugar, nesta relação recíproca do
arbítrio, ao fim de que cada qual se propõe com o objeto que quer, mas apenas
pergunta-se pela forma na relação do arbítrio de ambas as partes, na medida que
se considera unicamente como livre e se, com isso, ação de um poder
conciliar-se com a liberdade do outro segundo uma lei universal". (26)
Acentua-se o caráter tipicamente
formal do Direito para Kant, independente de conteúdo, prescrevendo um complexo
de condições através de uma liberdade formal de arbítrios, para uma possível
coexistência destes próprios arbítrios.
Assevera, por fim, o seu o
conceito de Direito: "O conjunto de condições sob as quais o arbítrio
de cada um pode conciliar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei
universal da liberdade" e deste extrai o seu princípio universal:
"Uma ação é conforme ao Direito quando permite, ou cuja máxima permite, à
liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma
lei universal" (27)
IV - CONCLUSÃO
Dentro daquilo que inicialmente
foi proposto, ou seja, trazer à baila alguns pontos da filosofia Kantiana e a
sua influência para o Direito, eram estas as considerações a fazer,
reconhecendo que, complexo e extenso, o tema é fonte inesgotável para todos os
estudiosos da Filosofia e do Direito, uma vez que a influência deste filósofo
germânico para a história do pensamento humano foi imensa. Suas idéias foram
decisivas no surgimento do idealismo alemão. A releitura de sua obra feita
pelos neokantianos, a inspiração a movimentos filosóficos como a fenomenologia
e o existencialismo já atestariam o tamanho da reviravolta que causaria este
filósofo no desenvolvimento da filosofia moderna.
Ademais, sua contribuição para a
Doutrina do Direito foi incomensurável. Aprofundou e sistematizou a teoria de
Thomasius, descrevendo um paralelo entre moral e Direito. Introduziu no
conceito de Direito a idéia de coação, tomando esta como nota característica
daquele. Sem mencionar que o conceito de liberdade e justiça não podem ser hoje
estudados sem se ter como norte a obra deste pensador.
NOTAS
1.
2. Aguiar,
Roberto A R. de. O que é Justiça - Uma abordagem dialética. São Paulo. Ed.
Alfa-Ômega, 1982, p. 27
3.
4. Matos,
Carlos Lopes de. Vista Geral da Filosofia Moderna -Revista Brasileira de
Filosofia, vol XXXII, pag. 408.
5.
6.
Como observa IRINEU STRENGER a atividade filosófica de
Kant divide-se em quatro grandes períodos: O primeiro vai até 1760 e nesta
época Kant ainda é racionalista e dogmático. Sua filosofia se desenvolve dentro
dos limites traçados por LEIBNIZ-WOLF, atraindo-o, nesta época, as ciências
naturais mais que a metafísica pura. O segundo período vai de 1760 a 1769, é o
empirismo-cético. Neste período sua maior preocupação é a crítica ao
racionalismo, analisando o valor da lógica pura e chegando à conclusão que esta
nunca dará ao conhecimento resposta que se espera. Afirma, ainda neste período,
após as leituras de HUME, ter despertado do sono dogmático, que a razão jamais
poderá descobrir o porquê da causalidade na natureza e o que se possa saber a
respeito, deve ser obtido na experiência. O terceiro período, que vai de 1770
até 1780 é um período de transição, em que aprofunda seu pensamento crítico. O
quarto último período é o criticista com a publicação de seus grandes livros,
que vai de 1781 até a sua morte (Strenger, Irineu. Temas de Formação
Filosófica. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 1986. P. 48-9)
7.
8.
strenger,
Irineu, p.47
9.
10.
Vancourt,
Raymond. Kant. Lisboa, Ed. Edições 70. P. 19.
11.
12. Kant, Imannuel. Crítica da Razão Pura.
Lisboa. Ed. Calouste GulbeKian, 1985, p. 87
13.
14. Leite, Flamarion
Tavares. O Conceito de Direito em Kant. São Paulo. Ed. Cone., p. 30
15.
16.
Habermas, Jürgen. Consciência Moral e Agir
Comunicativo. Apud Chueri, Vera Karan de. Filosofia do Direito e
Modernidade. Ed. JM. 1995, p.
15-16.
17.
18. Cf. Mattos, Carlos Lopes
de, cit., p. 408
19.
20. A vontade aparece na
obra Kantiana desempenhando um papel fundamental. Ela é a própria razão pura
prática, podendo a liberdade ser explicitada a partir do conceito de vontade.
Ela é, por conseguinte, ´a faculdade de desejar não em relação à ação como
arbítrio (Willkür) -, mas em relação ao fundamento de determinação do arbítrio´
(Op. Cit, p. 47).
21.
22. "Do fato de algo
ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de
algo dever ser não pode seguir que algo é. O fundamento de
validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma" (
Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo. 1997, Trad. João Batista
Machado. Ed. Martins Fontes, p. 215)
23.
24. Salgado, Joaquim Carlos.
A Idéia de Justiça em Kant-Seu Fundamento na Liberdade e na Igualdade. Minas
Gerais. 1986. Ed. EDH- UFMG, p. 175.
25.
26. Sustenta REINACH que o
conhecimento jurídico se processa exatamente como se propõe na gnosiologia
husserliana: o pensamento está intencionalmente voltado às vivências
determinadas do mundo jurídico (são as experiências do Direito Positivo ou as
situações jurídicas concretas; pondo entre parêntesis, desconectando esta
realidade empírica do Direito, capta a inteligência o Eidos jurídico, os
conceitos jurídicos, que são estruturas ontológicas imanentes e ´a priori´,
condicionantes da experiência particular" (Mendoça, Jacy de Souza.
Problemática Jurídico Filosófica Atual. Revista Brasileira de Filosofia. Vol.
XXI, fasc. 81, p. 53.
27.
28. Reale, Miguel.
Meditações Sobre a Experiência Ética. Revista Brasileira de Filosofia. Vol
XVII, faz. 68, out-dez/67,p. 382.
29.
30. Martínez Paz, E.
Influência de Kant sobre a Filosofia jurídica contemporânea -Córdoba, 1925
31.
32. O que há de necessário e
universal no conhecimento é oriundo de sua própria razão, de suas estruturas
intrínsecas, que são as condições ´a priori´ transcendentais procuradas por
Kant.
33.
34. . "Sócrates
realiza também a passagem do ´logos´ mítico das narrações cosmogônicas,
teogônicas e heróicas, que constituem modelos indiscutíveis de comportamentos
na esfera da práxis, para o de ´logos´ epistêmico, como discurso que demonstra
por meio dos fatos ou da razão, de modo reflexivo ou crítico". Cf.
Joaquim, Carlos Salgado. Cit. P. 148
35.
36. que divide-se em duas
partes: A Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude
37.
38. Cf. Vancourt, Raymond. Cit. p. 33. Kant
foi acusado por alguns filósofos de sua época de excesso de rigorismo, como foi
o caso SCHILLER.
39.
40.
Cf. Salgado, Joaquim Carlos. Cit. p. 159
41.
42.
Juntamente
com este imperativo categórico Kant nos oferece mais outras duas formas: "Obra
de tal manera, que la persona humana, ni en ti, ni en otras, sea tomada nunca
como un simple medio, sino como fin" e ainda " Obra de tal
manera, que tu voluntad sea fuente de legislación universal"
43.
44. "Age como se a
máxima de tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza"
45.
46. "Justa é somente
a ação, sob cuja a máxima a liberdade de arbítrio de cada um pode coexistir com
a liberdade de todos. A liberdade é a condição de toda vida moral e, portanto,
também do direito. Nenhum direito e nenhum dever tem sua origem noutra coisa
senão na liberdade: von der alle morallische Gesetze, mithin alle Recht, sowohl
als Pflichten ausgehen". Cf. Salgado, Joaquim Carlos. Cit p. 253.
47.
48. "Por outro lado
se é certo que o Direito só aprecia ação enquanto projetada no plano social,
não é menos certo que o jurista deve apreciar o mundo das intenções. O foro
íntimo é de suma importância na Ciência Jurídica" Reale, Miguel.
Lições Preliminares de Direito. São Paulo, Ed. Saraiva. 10ª edição. 1983, p.
55.
49.
50. Kant, Imannuel.
Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Apud, Leite, Flamarion
Tavares. Cit. p. 37
51.
52.
Kant. Imannuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do
Direito. P. 336, Apud Op.
Cit p. 68-69.
53.
54.
Cf.
Leite, Flamarion Tavares. Cit. p. 70.
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L& Pm..
* Juiz de Direito no Rio Grande do Norte
Disponível em : < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=25 >. Acesso em : 18 de setembro de 2006.