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A Natureza das Leis e o Conceito de Direito na Visão de Godofredo Telles Júnior





Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva*





Didaticamente, Gofredo Telles Júnior define ordem como a disposição conveniente de seres, para a consecução de um fim comum. A ordem visa a unidade da multiplicidade de seres. Por exemplo, tijolos, telhas madeiras e ferros jogados ao léo, constituem uma multiplicidade de seres, mas de seres não relacionados, não conjugados, não ligados uns aos outros, em razão de um fim comum. Tais seres não estão em ordem, como estariam se fossem componentes de uma casa. Não constituem uma unidade.


A ordem, continua, pressupõe elementos materiais de constituição, que segundo os filósofos são a "causa material". Toda unidade é composta de materiais ordenáveis. Tomaz de Aquino afirmava que "não há ordem sem distinção". A forma da ordem (causa formal) é sempre constituída pela disposição imputada aos elementos materiais. A razão de ser da ordem (causa final) é a finalidade para a qual se forma a unidade.


A desordem não precede a ordem. Na verdade, toda desordem é uma ordem que não desejamos. A realidade é a ordem, jamais a desordem. A desordem compreende dois elementos, a saber: 1) fora de nós, uma ordem (criada pela vontade humana ou resultante do determinismo físico); 2) dentro de nós, a representação ou idéia de ordem, diferente da primeira, mas que é a que nos interessa. Dessa forma, a desordem pode ser objetiva e subjetiva. Porém, o que leva à denominação de desordem é dissociação entre a ordem existente e a nossa noção de ordem.


A ordem é uma espécie de acordo entre o sujeito e o objeto. O espírito se encontrando nas coisas. Na prática, a ordem ou desordem varia de acordo com as conveniências. A desordem seria a falta de determinada ordem. Ao contrário, a falta de determinada ordem não é desordem, mas sim a existência de outra ordem (não desejada). A desordem em si é um nada, insuscetível de valoração.


Montesquieu (Do Espírito das Leis) definiu lei da seguinte maneira: "As leis, na significação mais extensa, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas", pois "as leis são as relações que existem entre uma razão primitiva e os diferentes seres entre si". Na realidade, as leis não são relações propriamente ditas, mas sim fórmulas gerais de que tais relações são manifestações concretas e particulares. Daí a imprecisão do conceito de Montesquieu para Gofredo. A relação real existe apenas entre seres. No mundo real uma relação é sempre concreta. A lei não possui relação de fato, concreta, com os seres. A lei contém idéias de relações entre seres reais. A lei, portanto, é uma fórmula genérica.


As noções apresentadas sobre idéia e imagem são de interessante colocação: "A idéia é a visão genérica e abstrato do homem como ser humano. Imagem é o conhecimento particular e concreto do homem (conhecimentos sensíveis). A idéia é conhecimento intelectual e o trabalho dela resultante é denominada abstração. A abstração é a operação de descobrir, nos seres individuais do mundo real, os tipos de ser que eles constituem as realizações concretas e particulares. É a função de descobrir o que é sempre o mesmo em coisas diversas. É o trabalho de achar o uno no diverso, achar o universal. Daí a idéia ser sempre abstrata e universal".


A lei é uma relação entre idéias, entre abstrações, e não entre coisas concretas. A lei unifica o diverso. A lei só existe no mundo da inteligência, pois não é particular nem individual. A lei é o plano concebido do que vai acontecer. É a fórmula da ordem. Não é por menos que se tem a lei como um ato geral e impessoal.


A lei é uma espécie do gênero norma jurídica. E duas são as espécies de normas jurídicas. A primeira relativa a ações que podem ser exigidas. A segunda relativas às ações proibidas. Na primeira categoria, as normas mandam que as ações sejam praticadas, sob pena de serem prejudicadas aquelas pessoas em benefício das quais as normas preconizaram as ações. Aos lesados é autorizada a reação, isto é, a exigir as ações não praticadas. Daí, as normas da primeira categoria serem mandamentos e autorizamentos.


Na hipótese da segunda categoria de normas, a realização da ação prejudica aquelas pessoas em benefício das quais as normas jurídicas estabeleceram as proibições. Nesses casos, o lesado também será autorizado a reagir, exigindo a reposição das coisas no estado em que se encontravam antes da prática da ação proibida. Também são tais normas mandamentos e autorizamentos.


Portanto, para Gofredo Telles, todas as normas são mandamentos, imperativas. Umas imperam mais que as outras, assim como a norma que manda rezar é pouco obedecida, porém a norma que manda pagar o devido é seguida a risca. Apenas as normas que contêm diretrizes de comportamento humano são imperativas. As normas destinadas a outros seres não, pois não têm estes consciência.


Apenas a norma jurídica contém autorização para reações. Reações sem amparo na norma jurídica são atos ilícitos. Por exemplo, a violação da norma moral de piedade não traduz autorização para reação de quem quer que seja, pois a norma não é jurídica. Norma jurídica alcança não só as leis mas também todas as fontes de obrigações, tais como o contrato, o estatuto, o regulamento etc. Ao conjunto de normas jurídicas de uma sociedade dá-se o nome de direito objetivo.


A autorização da norma ao lesado para reagir não é o mesmo que uma atribuição de faculdade de agir. É erro considerar a norma jurídica como atributiva. Como a faculdade de reagir pertence ao lesado, a norma jurídica jamais poderia atribuir tal faculdade. Na realidade, a norma jurídica autoriza o exercício da faculdade. Aliás, faculdade de agir todos possuímos, porém licitamente apenas se houver prévia autorização da norma jurídica.


É a sociedade que autoriza o uso de faculdades de exigir o cumprimento da norma, porém seja a norma que exprima a vontade social. A faculdade de exigir determinado comportamento é o mesmo que coagir. Não obstante, é um equívoco afirmar que a norma coage. A coação é exercida pelo lesado e não pela norma jurídica, que se limita a exprimir a autorização.


A norma precede a coação. Primeiro nasce a norma; depois, a norma é violada. Não seria mesmo possível violar o que não existe. Aliás, um dos fundamentos do princípio da irretroatividade da norma. É até provável que a norma jurídica sequer enseje coação. Uma norma não violada não dá margem a coação, lembrando-se, ainda, que, até mesmo no caso de violação, só haverá coação se houver vontade do lesado para tanto.


A afirmação de que a norma coage em função do medo que inspira a sua violação é duplo equívoco. Se a norma precede a coação, o medo só existiria após a norma. Além disso, o medo só incide para aqueles que pretendem violar a norma, o que não é a regra, pois o normal é o direito ser eficaz pacificamente. A tese de que a coação é essência da norma é o mesmo que afirmar que o direito voluntariamente cumprido não é direito, o que alça o absurdo.


Não é o direito que depende da coação, mas sim a coação que depende do direito. A coação é um instrumento de realização do direito. É um remédio do direito. Costuma-se dizer que a coação aparece quando o direito desaparece. A coatividade não pertence à norma, mas sim ao lesado que exercerá a coação em face daquele que lhe der causa com o descumprimento da norma.


A autorização da norma jurídica ao lesado de exercer coação é denominado direito subjetivo. Portanto, direito subjetivo não é uma facultas agendi, é uma autorização da norma para o sujeito agir (ou reagir). As faculdades humanas são qualidades do homem, independentemente do direito, tanto que, como já dito, todos possuem irrestritas faculdades, embora para o seu uso lícito seja indispensável a autorização da norma. A faculdade de agir é anterior ao direito subjetivo, pois primeiro vem a faculdade e depois a autorização para exercê-la (adequação da norma ao fato).


A idéia realista de que o direito subjetivo é uma autorização concedida pelo direito objetivo possibilita a ampliação do conceito de direito subjetivo. Direito subjetivo não é apenas a autorização para exigir o cumprimento de norma jurídica violada, mas também de fazer e de ter o que a norma jurídica não proíbe. O que não é proibido é permitido.


O E. Professor define direito subjetivo como a autorização dada pelo direito objetivo, compreendendo: "1) a autorização de fazer ou de ter o que o direito objetivo não proíbe; 2) a autorização, dada a quem for lesado pela violação da norma jurídica, de exigir, por meio dos órgãos competentes do poder público, o cumprimento da norma infringida ou a reparação do mal sofrido. Direito subjetivo será somente a autorização concedida pela norma jurídica (direito objetivo)".


"Impedir que alguém exerça o direito subjetivo é crime de constrangimento ilegal". "E a todo direito corresponde uma ação que o assegura, de modo que o lesado se valerá dos meios legais para fazer valer o seu direito". Nesse ponto, me parece mais preciso afirmar que é a obrigatoriedade, sem autorização da norma jurídica, do fazer ou não fazer (e com isso impossibilitando o exercício do direito subjetivo) que constitui crime. E, no sentido técnico, não é a ação que corresponde a um direito, mesmo porque a ação é por si só um direito subjetivo. É a faculdade de reagir ou agir, previamente autorizada pela norma, que corresponde a um direito subjetivo.


O direito subjetivo está intimamente vinculado ao direito objetivo. O direito objetivo existe para autorizar faculdades de agir. Dessa maneira, não há direito subjetivo contra direito objetivo em decorrência da relação de subordinação entre ambos. Aparentemente, no caso da ação de declaração de inconstitucionalidade há direito subjetivo sem direito objetivo. Entretanto, só aparentemente, pois é o direito objetivo que concede a faculdade de obter uma declaração de que determinada norma não é jurídica, é inconstitucional.


A vontade não é elemento constitutivo do direito subjetivo. É possível ter o direito de alienar, sem a vontade de alienar. O direito de cobrar uma dívida pode ser dispensado pelo credor. É possível até mesmo que o direito exista sem o conhecimento do seu titular, como a criança que ao nascer é titular do direito à vida. Afasta-se, pois, a teoria de que o direito é o poder da vontade (Windscheid e Savigny).


O interesse não é um direito subjetivo. Quando uma pessoa tem interesse sobre um bem, o que faz é agir em seu favor, o que dependerá de autorização da norma jurídica. O direito subjetivo não é um bem (interesse), mas sim a autorização para satisfazê-lo. Afasta-se, igualmente, a teoria de que direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido (Ihering).


O direito objetivo nem sempre coincide com o direito objetivo de uma sociedade da qual os seus componentes gostariam de ver vigorante. "O direito desejado é aquele que possibilita a utilização dos bens soberanos. Bens soberanos são aqueles que têm existência histórica e mudam com as circunstâncias. É possível que o sistema de referência desses bens evolua e se renove, enquanto que o direito objetivo perdure e envelheça. Outra hipótese é aquela em que o governo impõe a uma sociedade um direito objetivo em discordância com os ideais do sistema de referência da sociedade, o que gera um direito artificial".


Direito natural é o direito que não é artificial. É o direito consentâneo com o sistema ético de referência, vigente em uma dada comunidade. Direito natural não é o conjunto de regras morais, mesmo porque apenas as normas jurídicas autorizam faculdades. Direito natural é sempre um direito positivo, direito este que está de acordo com as expectativas da sociedade. O direito positivo é que pode ser natural ou artificial.


Em suma, Godofredo Telles define direito natural como o conjunto das normas em que a inteligência governante da sociedade consigna os movimentos humanos que podem ser oficialmente exigidos, e os que são oficialmente proibidos, de acordo com o sistema ético reinante.


Nas sociedades dos homens, certos movimentos são sempre exigíveis e outros sempre proibidos. Para produzir os primeiros e para vedar os segundos necessário se faz a liberação de energia humana. A liberação dessa energia humana é comedida. É uma liberação com delimitações impostas pelas exatas exigências dos movimentos a produzir. A liberação da energia humana não se esgota num jato, mas vai sendo liberada em porções discretas na medida do necessário.


Uma relação jurídica é sempre uma interação quântica. Toda relação jurídica pressupõe movimentos comedidos de uns que propiciam movimentos comedidos de outros. Esses movimentos são comedidos por duas razões: 1) são somente os movimentos autorizados pelas normas jurídicas; 2) em cada relação jurídica direitos subjetivos se compõem , limitando-se reciprocamente, a fim de que deles resultem movimentos convenientes para uns e outros.



*Professor da Faculdade de Direito da UFF

Pós-graduado em Direito Penal (UnB)

Mestre e Doutor em Direito Processual Civil (UGF)


Disponível em: <http://www.uff.br/direito/artigos.htm>. Acesso em: 01 agosto 2006.