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O embasamento epistemológico como legitimação do conhecimento e da formação da lei na modernidade: uma leitura a partir de Descartes
Alexandre da Maia*
1. O
ambiente de Descartes[1]: circunstâncias, condicionantes
históricos e gnoseológicos.
Como
advertência preliminar, cabe ressaltar que o objetivo deste
trabalho é o de mostrar o panorama de um determinado ambiente
intelectual e político para o qual Descartes é
utilizado como exemplo, na filosofia, do momento em que se vivia na
época na tentativa da afirmação da racionalidade
na teoria do conhecimento. Tal postura, como veremos, foi de
importância capital para a formação da lei e a
afirmação do modelo positivista de determinação
do direito como ciência. Claro que uma abordagem da filosofia
de Descartes merece muito mais que um simples artigo. Todavia, a
intenção aqui é a de mostrar os elementos que
consolidam o perfil cartesiano da segurança e da verdade,
ficando nossa abordagem adstrita a tais questões[2].
René
Descartes nasceu em 1596, em La Haye. Entre 1606 e 1614, estuda no
colégio de jesuítas de La Flèche. E é
talvez nesse período em que começa a surgir a grande
aflição em seu pensamento. A ele foi ensinada a
filosofia Escolástica (que transparece em muitos trechos do
Discurso do Método), e, ao mesmo tempo em que era educado por
uma determinada forma de ver o mundo, percebia também a sua
transformação. As descobertas nos diversos ramos do
conhecimento começavam a mostrar a Descartes que sua forma de
lidar com o conhecimento, a partir da Escolástica, estava
fadada à mutação do ambiente intelectual em que
se vivia, surgindo a necessidade de combater a “Filosofia da
Escola” e reestruturar os pilares do conhecimento.
Apesar
das mudanças ocorridas na determinação do
conhecimento, a Escolástica, mesmo no Séc. XVII,
mantinha uma influência muito forte, pois ainda era considerada
a “filosofia oficial”, a “ filosofia da Igreja e dos Colégios”.
A filosofia Escolástica apresenta-se como um corpo doutrinário
construído no Século XIII através de uma junção
de elementos da filosofia aristotélica com a possível
interpretação dos chamados textos sagrados, objetivando
uma “organização racional” pela fé. A
exteriorização da filosofia Escolástica se deu
pela produção dos homens da Igreja católica e de
professores.
A forma utilizada para expressar a
doutrina era o comentário ou a suma. Enquanto o comentário
buscava a explicação a partir da visão direta do
texto, a suma era formada por um conjunto ordenado de questões
tratadas, quando as proposições são tiradas, por
dedução, de princípios que são
originários dos textos revelados. Curioso é notar a
busca de união entre os procedimentos da fé e os da
razão, funcionando a primeira como um limite à segunda,
haja vista que: 1) a fé e a razão provêm de Deus.
Se ambas surgem da mesma origem (perfeita e divina), não podem
ser totalmente contrapostas; 2) o “controle da fé” é
necessário por conta de não poder existir uma razão
humana absoluta, pois o absoluto e o sublime só podem ter
origem divina.
Consequentemente, a fé se torna um
mecanismo de controle da razão humana[3]. Ou seja, funcionando
como um limite ao humano na aferição do conhecimento.
Em relação à Escolástica, pode-se afirmar
que Descartes cria um mecanismo que emancipa o pensamento do homem e
insere a razão humana como o centro do conhecimento e da busca
pela verdade. A verdade, em Descartes, é fruto da demonstração
que cria leis formuladas pelo homem a partir de sua condição
de ator no conhecimento. Ou seja, uma filosofia independente da fé.
Com medo de não acontecer com suas obras o mesmo que ocorreu
com Galileu no Santo Ofício, a leitura do Discurso do Método
nos mostra uma série de reflexões que incluem Deus e a
religiosidade nas questões, sempre com o cuidado de não
ser considerado um profanador das escrituras. Basta verificar algumas
passagens do texto (DESCARTES, 1996). Por exemplo: na p. 3, fala na
“existência de Deus e da alma humana”. Outro momento
interessante sobre o vínculo com Deus está na p. 19,
quando, num exercício um tanto quanto exagerado de modéstia,
Descartes afirma que não aconselha ninguém a imitar o
seu modelo de método, mas enfatiza que “aqueles a quem Deus
melhor dotou de suas graças terão, talvez, propósitos
mais elevados”. Quando trata da construção de regras
morais a partir do método (a chamada Terceira Parte do
Discurso), a primeira delas é “obedecer às leis e aos
costumes de meu país, conservando com consonância a
religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído
desde minha infância...” (DESCARTES, 1996:27), dentre outras
passagens que atestam a precaução (não tão
bem-sucedida como queria) que Descartes tomou para preservar a
integridade de sua obra.
A despeito da educação
escolástica recebida, os progressos no conhecimento humano
foram notáveis nos tempos anteriores a Descartes. Como
exemplo, cite-se a busca por desvendar os segredos da natureza
conjugando a matemática com a experiência, com Leonardo
da Vinci, dentre outros, bem como o trabalho dos matemáticos
na unificação da noção de número e
na simplificação dos sinais algébricos
(DESCARTES, 1996: XII). Todavia, é no Século XVII que a
chamada “ciência moderna” se inicia, e, conseqüentemente,
a consolidação do referencial epistemológico
como forma de justificação do conhecimento. E é
exatamente a base filosófica da episteme que Descartes
consolida em sua obra.
Como exemplo dessa pujança no
conhecimento, ressaltemos o desenvolvimento de estudos e pesquisas
acadêmicas em boa parte da Europa, sendo a Itália o País
pioneiro na produção de entidades de fomento ao
trabalho dessa grandeza, como, por exemplo, a Academia de Lincei,
fundada em 1603, da qual Galileu era membro (DESCARTES, 1996: XII).
Muitos estudos foram desenvolvidos na área da hidrostática
e da física matemática, de cujas bases Descartes
retirará muito para a formação de seus escritos.
Nessa época, surge o Novum organon, de Francis Bacon, Galileu
cria a mecânica moderna, surgem os primeiros passos para a
determinação da possibilidade do cálculo
integral, assim como a utilização de métodos
experimentais por Torricelli e Blaise Pascal, dentre outros. Não
há maiores avanços na matemática por conta de as
pesquisas ainda continuarem vinculadas à alquimia.
Esse
progresso no conhecer, chamado por muitos de “processo
quantitativo”, é extremamente notável. O curioso é
que o avanço das pesquisas contribui de forma decisiva na
formação de um ambiente diferenciado, modificando a
forma de ver o mundo das pessoas ligadas ao desenvolvimento desses
trabalhos. Eis o ambiente que forma a necessidade, em Descartes, de
não acreditar nas verdades determinadas anteriormente e
incluir o homem na perspectiva de criador da forma de determinação
da verdade. Theodor Viehweg, já no Séc. XX, cita
Giambattista Vico como um autor influenciado por aquele momento
(inclusive pelo cartesianismo), especialmente com o livro A Ciência
Nova (1725), no qual Vico quer fazer prevalecer a nova forma de ver o
mundo em detrimento da “ciência antiga”, vinculada a
referenciais dialéticos e à noção de
prudência típica dos antigos (VIEHWEG, 1986:
29-33).
Quando classifica os métodos de
conhecimento possíveis, Vico os determina como sendo o antigo
(retórico) e o novo (crítico). O método antigo é
difundido por Aristóteles e Cícero. O modelo crítico
é fruto do cartesianismo (VIEHWEG, 1986: 31); daí, não
se pode negar a influência de Descartes na formulação
do pensamento do Séc. XVIII, quando da rejeição
da retórica e da prudência.
O método
crítico, formador da ciência nova, se estrutura da
seguinte forma: o ponto de partida do investigador é o que
Vico chama de primum verum, que não pode ser posto em xeque
(cf. GRASSI, 1999: 17-44). O desenvolvimento se faz a partir das
bases trazidas da geometria, através de uma série de
deduções em cadeia, como se a estrutura do conhecimento
fosse eminentemente estática, sem elementos que demonstrassem
a dinamicidade do conhecimento que, no direito, é cristalizada
na Teoria Pura de Kelsen (KELSEN, 1985: 205 s.).
Tal
mecanismo dedutivo transmitiria segurança e previsibilidade,
ao passo que a ciência antiga, baseada no método tópico,
teria como ponto de partida o senso comum, que lida com as noções
de verossimilhança, trabalhando, no que possível, por
meio de silogismos. Vico defende a possibilidade de intercalar o
velho e o novo modo de pensar, em função das vantagens
e desvantagens que ambos possuem, e, com a junção, os
defeitos de um são encobertos pelas qualidades do outro, e
assim sucessivamente (VIEHWEG, 1986: 32).
Vê-se,
claramente, o quanto a obra de Descartes foi importante para a
cristalização teórica de uma nova visão
de mundo do Séc. XVII em diante. Muitos dos seus críticos
não consideram a época em que o referido filósofo
viveu, nem o tormento existente em seu espírito: manter-se
fiel à Escolástica na qual foi educado ou romper com as
verdades e visões de mundo do passado e criar um modelo
próprio de determinação da verdade? Por certo,
Descartes não escolheu o caminho mais fácil e veio à
luz, em 1637, o Discurso do Método.
2. O método:
dedução e demonstrabilidade como racionalidade na
filosofia.
Apesar de o Discurso do Método ter sido o
trabalho inaugural de Descartes no “campo editorial”, sabe-se que
não foi o primeiro a ser escrito. A intenção de
Descartes era publicar seu livro escrito anteriormente, intitulado O
Mundo ou Tratado da Luz. Porém, com medo de que acontecesse
com seu Tratado da Luz o mesmo que sofreu Galileu, Descartes decidiu,
inicialmente, pela não-publicação do livro.
Um
dos detalhes que saltam aos olhos quando da leitura do Discurso do
Método é a frase inicial do livro: “Para Bem Conduzir
a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências” (DESCARTES,
1996: 3). A expressão utilizada demonstra bem os objetivos
traçados na obra de Descartes, partindo de algumas premissas
para a construção do seu argumento na busca da
segurança.
O primeiro dos argumentos é a
possibilidade de haver a boa condução da razão.
Isso nos mostra que há – dirá Descartes – um
caminho para a existência da verdade a partir da razão,
que será aferida, como veremos a seguir, a partir da
formalização do seu método, que permitirá,
inclusive, segundo sua pretensão, a determinação
de regras morais a partir das premissas trazidas pelo método.
O
segundo argumento que se depreende da pretensão cartesiana é
o de vinculação da ciência à verdade. Ou,
ao menos, da possibilidade de o método científico
aferir a verdade. Ou seja, um reforço a uma determinada noção
de episteme e de racionalidade vinculada à verdade. O que, de
uma certa forma, inclui o humano na construção do
conhecimento e do método. Veremos mais adiante como o direito
se vê influenciado por essas bases teóricas.
Para
tal mister, Descartes divide seu Discurso em seis partes. Na
primeira, trata da noção de ciência. Na segunda,
enumera as suas regras do método. Na terceira, e uma das mais
interessantes na leitura, a busca pela determinação dos
postulados morais a partir das regras estipuladas na segunda parte.
Na quarta, por conta da necessidade de afirmação da
religiosidade e evitar problemas com o Santo Ofício, Descartes
tenta provar a existência de Deus e da alma a partir da
aplicação do método. Na quinta, questões
ligadas à física e a sexta, como sendo as razões
de ter escrito o discurso, bem como a necessidade dos avanços
na investigação da natureza (DESCARTES, 1996: 3).
Nesse particular, vale ressaltar que nosso trabalho estará
vinculado diretamente às três primeiras partes do
Discurso, mais importantes, pela nossa perspectiva, para a análise
do tema proposto neste texto. Porém, apesar de tal
delimitação, vale ter em mente que a quarta parte,
apesar de não estar estritamente ligada à nossa
apreciação, é de fundamental importância
para a compreensão do turbilhão de idéias pelas
quais Descartes passou: o conflito entre a religiosidade herdada de
seus estudos (e respectiva manutenção do status quo
ante) e a necessidade de romper e criar uma epistemologia que inclua
o humano, como afirmamos anteriormente.
No que tange à
postura do conhecimento em relação à religião,
agora Deus é conhecido, e não mais dado. Se Deus
existe, Ele pode ser provado por meio da aplicação do
método de Descartes, nunca adotá-Lo como um a priori,
ontologicamente estabelecido. Portanto, Deus não é mais
um dado previamente aceito, mas sim conhecido pelo ato gnoseológico
informado pelo método. Assim, cria-se uma noção
de segurança na existência de Deus e da alma
humana.
Outro dado interessante a ser ressaltado no Discurso
do Método é o estilo de redação do texto,
que mescla informações pessoais, ligadas à vida
e ao trabalho de Descartes, com seu projeto de determinação
do conhecimento e da verdade. O estilo de escrever adotado pelo autor
torna a leitura extremamente agradável, criando uma empatia
entre o leitor e a forma de escrever, através da qual
Descartes tenta demonstrar que os acontecimentos por ele vividos
foram fundamentais para a consolidação de sua visão
de mundo e, por conseguinte, de sua atitude filosófica de
compreensão e da determinação dos postulados
formadores do seu pensamento[4].
Descartes começa o
Discurso, na primeira parte, enfatizando a necessidade da razão,
identificando-a com a noção de bom senso. Não um
bom senso que enfatize o verossímil e o provável, como
as teses da nova racionalidade argumentativa do Séc. XX, mas
sim como uma forma de “distinguir o verdadeiro do falso”
(DESCARTES, 1996: 5), como se houvesse a possibilidade de aferição
de uma única visão do certo e do errado que nos pudesse
guiar ao encontro da verdade. Com isso, Descartes tende a refutar a
razoabilidade, pois afirma que o fato de os seres humanos pensarem de
forma diferente não é decorrência de haver
opiniões mais (e menos) razoáveis, mas por conta de o
homem guiar seu pensamento por diversas vias. Assim, há o
caminho certo, identificado na filosofia com a verdade, e o homem
deve guiar seu pensamento em busca de uma forma de determiná-la.
Quando fala da razão, existe de um certo modo uma
influência da Escolástica em sua forma de pensar,
sobretudo a partir da distinção entre “essência”
e “acidente”, que Descartes traz da “Filosofia da Escola”.
Descartes afirma que a razão e o bom senso são o
elemento de distinção dos homens em relação
aos demais animais, e por conta disso todo ser humano possuiria o
arcabouço necessário à razão, pois, se
assim não fosse, não poderia ser chamado de “humano”.
Portanto, a razão estaria incluída na essência de
todo e qualquer homem ou mulher. A essência é a chamada
forma ou substância, que sempre permanece a mesma em qualquer
ser humano, e a razão faria parte da forma do ser humano.
Enquanto que os elementos acidentais, que podem estar presentes ou
não nos objetos, podem variar de quantidade ou mesmo não
existir em todos ou em cada um.
Descartes tenta mostrar, na
primeira parte do seu trabalho, a sua ânsia pela perenidade do
método que constrói, a fim de que ele não se
mantenha adstrito ao seu criador nem ao seu tempo. Por outro lado,
mesmo convencido de que não quer que os outros necessariamente
venham a aderir à visão cartesiana de mundo, o autor em
questão salienta, sem muito exercício de modéstia,
que “se entre as ocupações dos homens puramente
homens[5] há alguma que seja solidamente boa e importante,
atrevo-me a crer que é a que escolhi” (DESCARTES, 1996: 7).
Na mesma linha, acrescenta que sente “uma imensa satisfação
pelo progresso que penso já ter feito na procura da verdade”
(DESCARTES, 1996: 6-7).
Porém, do alto de sua postura
imodesta, Descartes acredita que pode até estar enganado, e
que “talvez não passe de cobre e vidro o que tomo por ouro e
diamantes” (DESCARTES, 1996: 7). Com base nessa concessão de
modéstia a si próprio, afirma que seu propósito
é não o de ensinar um método para que cada um
encontre a sua razão, mas sim uma forma de mostrar como achou
a sua forma peculiar de ver o problema.
Quando determinamos
que Descartes busca o grau de certeza e previsibilidade na
determinação da verdade, nossa afirmativa se assenta no
apego confesso que o aludido autor tinha pelas formas exatas de
estudo, que ele chama genericamente de “matemáticas”
(DESCARTES, 1996: 11), por conta da evidência que a
demonstração de fórmulas matemáticas
trazem. Referindo-se aos postulados das matemáticas, Descartes
afirma que por serem “tão firmes e sólidos os seus
fundamentos, nada de mais elevado se construiu sobre eles”.
Criticando a “ciência antiga” – especialmente aos
escritos dos estóicos - , mas não demonstrando
claramente, refere-se aos “escritos dos antigos pagãos”
como “palácios soberbos e magníficos, que eram
construídos apenas sobre areia e lama” (DESCARTES, 1996:11).
Como uma crítica à verossimilhança,
Descartes sustenta que, por mais que sejam doutas as opiniões
dos filósofos ou teóricos do conhecimento, não
pode haver mais de uma opinião que seja verdadeira, pelo que
reputou “quase como falso tudo aquilo que era apenas verossímil”.
E se só existe uma verdade, há a necessidade de
determinação de uma forma de conhecer que a desvende,
baseada em um método tão seguro que não dê
margem à verossimilhança.
Mesmo buscando tal
forma de conhecer, devemos reconhecer que Descartes não se
encastela no campo da sabedoria dos doutos. Pelo contrário:
fundamenta seu ponto-de-vista a partir da noção de bom
senso que o homem possui, sem precisar estar preso à “ciência
dos livros”, como ele faz questão de enfatizar (DESCARTES,
1996: 17), haja vista que a referida “ciência” traz
opiniões as mais diversas, que, pela discrepância
existente entre si, pouco contribuem para a determinação
racional da verdade. Ao que nos parece, eis a tese central de
Descartes para possibilitar a construção de seu método,
como se a razão fosse atemporal, e que, pela atemporalidade,
sempre deveria acompanhar os nossos atos. Para tanto, há a
necessidade do ajuste ao nível da razão, que seria a
possibilidade de refutar todas as opiniões aceitas pelo ser
humano, substituindo os alicerces antigos por outras opiniões
melhores (ou mesmo pelas próprias opiniões antes
rejeitadas), desde que agora haja a solidificação da
base, que só ocorre a partir do momento em que as opiniões
são verificadas através da demonstração
do método cartesiano (DESCARTES, 1996: 18), o que não
implica que haja a necessidade de reformulação do
Estado e seu corpo político, bem como das ciências
estabelecidas.
Descartes explica tal forma de pensar com a
seguinte metáfora: não se vê comumente as casas
de uma cidade serem demolidas inteiramente para serem reconstruídas
de uma forma mais harmônica. Porém, é mais comum
que alguns proprietários derrubem as casas, isoladamente, que,
correndo o risco de desabamento, necessitem de uma reconstrução
com base em alicerces mais fortes (DESCARTES, 1996: 17-18). Tal
atitude implica, portanto, em uma total falta de apego aos princípios
que Descartes adotara como basilares, sem que haja uma filtragem pelo
método para aferir se aqueles princípios eram de fato
verdadeiros. Portanto, a determinação racional da
verdade pelo método implica uma atitude de desapego aos dogmas
fixados sem que haja uma determinação clara de sua
vinculação à verdade. O que era aceito antes
como verdadeiro, de forma precipitada, deve ser suprimido em favor
daquilo que é claramente demonstrado como tal.
Claro
que esse raciocínio cria uma dicotomia entre crença e
razão. Uma dicotomia que, vista por outro ângulo, pode
ser representada pelos binômios fé x racionalidade,
ontologia x epistemologia, a priori x a posteriori, e assim por
diante.
A crença se baseia num a priori,
ontologicamente estabelecido, e, portanto, não está
sujeito à demonstração elaborada por quaisquer
métodos. A crença é pelo simples fato de assim o
ser, sem nenhuma atitude gnoseológica ou mesmo epistemológica
que a confirme.
Se a episteme cartesiana requer a
desvinculação às crenças ainda não
atestadas como verdadeiras pelo método, parece claro que não
há espaço para a crença como forma de
justificação do conhecimento, nem para as ontologias ou
para quaisquer formas apriorísticas de observação
do conhecimento.
Tais formas, exaustivamente consolidadas na
Idade Média, e que se sustentavam no apego ético ao
Divino e ao Sublime, não podem mais ser a mola mestra de
justificação do conhecimento. A razão e a
verdade são, pois, sempre a posteriori, pressupondo um ato de
conhecimento que os confirme. Parece claro o pioneirismo de Descartes
em relação à construção
epistemológica e à inclusão do homem, rechaçado,
quase sempre, pela limitação da razão à
fé.
Eis, pois, a necessidade do método. E
Descartes o estabelece em quatro premissas básicas, que seriam
os postulados da episteme cartesiana:
1. Nunca aceitar algo
como sendo verdadeiro sem que haja uma determinação
clara de sua verdade. Tal atitude evita possíveis formas de
precipitação e de dúvida. Havendo uma mínima
possibilidade de uma contraposição (geradora da
dúvida), não há a evidência da verdade, e,
portanto, não se deve aceitar um conhecimento de tal
monta;
2. “Dividir cada uma das dificuldades que examinasse
em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário
para melhor resolvê-las”;
3. Efetuar a condução
dos pensamentos em uma ordem, a partir dos objetos mais fáceis
de conhecer (objetos simples), para, a partir de então, “como
em degraus”, subir paulatinamente até o conhecimento dos
objetos mais compostos e, portanto, mais difíceis de serem
conhecidos. Mesmo que os elementos não precedam naturalmente
uns aos outros, o método deve pressupor que existe uma ordem
entre eles;
4. Fazer enumerações completas em
relação aos elementos e às dificuldades, e, a
partir de uma revisão geral, ter a certeza de que nada omitiu
ao conhecer (DESCARTES, 1996: 23).
Não há como
evitar a transcrição do pilar da episteme: “todas as
coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da
mesma maneira, e que, com a única condição de
nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que não o seja,
e de observarmos sempre a ordem necessária para deduzi-las
umas das outras, não pode haver nenhuma tão afastada
que não acabemos por chegar a ela e nem tão escondida
que não a descubramos” (DESCARTES, 1996: 23-24).
3.
Pontos relevantes na estruturação do método em
Descartes
Tal método de construção da
abordagem tem alguns méritos que devem ser destacados. O
primeiro deles é a idéia através da qual a
atitude gnoseológica é fruto eminentemente de uma
atividade desenvolvida pelo homem. Tal postura de inclusão do
homem é fundamental, pois, como visto anteriormente, a
justificação do conhecimento estava restrita à
impossibilidade gnoseológica do homem, sendo ele guiado por um
a priori fruto da perfeição divina. Um conhecimento,
pois, que inclui o homem é uma forma de rejeição
da ontologia e da teologia como origem metafísica de tudo o
que é e o que existe, bem como do próprio conhecimento.
Trocando em miúdos, uma revolução na teoria do
conhecimento.
Em segundo lugar, Descartes inclui o
subjetivismo e a dúvida quanto ao ser e à existência,
exatamente por conta de o método ser a forma de atestar a
verdade. Se a verdade ainda não foi aferida pelo método,
parece óbvio que antes do ato gnoseológico tudo seria
incerto e duvidoso, e por isso deve ser afastado, a fim de que o
método se desenvolva e determine a verdade e a segurança
a partir da razão estampada em seus postulados. Tal dúvida
está bem explicitada na quarta parte do Discurso, quando
Descartes utiliza como máxima inicial do conhecer o cogito
ergo suum (DESCARTES, 1996: 38)[6].
Um terceiro ponto de
observação: Descartes tem por objetivo a determinação
da segurança do método que trará,
consequentemente, a certeza da verdade. Mesmo partindo de uma dúvida,
como vimos no segundo ponto acima destacado, Descartes destaca a
necessidade de uma certeza e de uma previsibilidade que, mesmo no
auge de afirmar não querer servir de modelo para quem quer que
seja, consolidou uma forma de pensar que norteou a episteme que se
consolidaria na filosofia e, como veremos a seguir, influenciou o
direito (inclusive no método comparativo) até às
raízes do chamado positivismo jurídico.
Tal
previsibilidade que o método determina é fundamental
para a cristalização da segurança no
conhecimento. Como postulado da episteme, antes a certeza da verdade
do que a insegurança gerada pela dúvida, que seria um
estágio anterior à determinação da
verdade, da seguinte forma:
DÚVIDA -----------à
MÉTODO ----------à VERDADE
A estruturação
do método que cria as deduções em cadeia a
partir das enumerações de possibilidades determinaria
postulados verdadeiros e seguros por meio da demonstração,
que estabeleceria verdadeiras leis naturais para a observação
dos fenômenos. De tanto repetir a demonstração,
estabelecer-se-ia a previsibilidade e a transmissibilidade do
conhecimento obtido. Assim sendo, a fórmula da causalidade
(Dado A é B, tentativa típica de determinação
do conhecimento no mundo do ser) estabelece a forma de aferição
da verdade. Algo que, no direito, será refutado por vários
jusfilósofos, inclusive por Kelsen, quando estabelece a
distinção entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser
no direito, justificando sua teoria da norma jurídica a partir
da cópula deôntica (KELSEN, 1985: 3-10 e 84 s.).
4.
Ciência como determinação racional do
conhecimento (e do direito): um leito de Procusto.
Como uma
forma de aferição crítica à idéia
de Descartes, não se pode afirmar que a determinação
epistemológica da verdade possa ser feita de maneira
inexorável. Talvez este seja o maior equívoco de
Descartes. Quando o referido autor tenta determinar um método
único para encontrar a verdade, e o solidifica a partir de uma
constante dedução, cria-se um mecanismo que funciona
como uma forma de esconder os problemas relativos à
divergência existente entre, principalmente, as pessoas que
conhecem.
Admitindo a possibilidade de uma única
verdade, o autor em questão rechaça a multiplicidade e
a diversidade, criando uma estrutura racional no conhecimento que
cria privilégios para os detentores do método, e,
conseqüentemente, donos dos critérios de aferição
da verdade.
Se a verdade é uma só, parece claro
que a única forma possível de seria a propiciada pelo
método, que traria a maneira correta de se alcançar a
verdade que ainda não se tem. Se a verdade só pode ser
aferida, pois, pelo método trazido no Discurso cartesiano,
ocorrem os seguintes problemas imediatos:
1) Não
existirá outra forma de determinação da verdade.
Logo, o método se impõe inexoravelmente como sendo o
modelo racional (e único possível) de desvendá-la;
2)
Por conseguinte, só haverá uma única forma (ou
modelo) de racionalidade, que é aquele que segue o método
determinado para a abordagem do objeto em cognição;
3)
Tal forma de pensar consolidou uma visão de mundo baseada na
noção de racionalidade determinada no item acima;
4)
Além de consolidar uma visão de mundo, solidificou a
episteme a partir de tais premissas. Ou seja, a abordagem do objeto
pelo método não é só a única
racional, mas é também a epistemologicamente correta.
Seguindo a receita das deduções e enumerações,
o investigador estará fazendo ciência;
5) Por ser
a única epistemologicamente correta, também seria a
melhor, pois um conhecimento “comprovadamente científico”
pela demonstração determinaria uma prevalência da
ciência em relação às demais formas de
conhecimento;
6) Tal prevalência ocorre por conta da
segurança obtida. O método é o que está
estampado. Se o investigador seguir o roteiro, que traz em si a noção
de previsibilidade dos acontecimentos, encontrará a verdade a
partir de uma enunciação eminentemente causal (Dado A é
B, por exemplo).
Apesar de tais postulados, Descartes foi
importantíssimo na consolidação da Filosofia
moderna, sobretudo ao admitir o homem como ator do conhecimento.
Independentemente de sua forma de escrever permeada pelo excesso de
modéstia (e pela total ausência, em alguns trechos do
Discurso do Método), o autor influencia de forma marcante o
desenrolar do conhecimento nos séculos seguintes, inclusive na
necessidade de um direito que, por conta de sua estruturação
formal, não traga discussões que traduzam uma
preocupação ética na aferição do
conhecimento jurídico. E, a despeito do mundo jurídico,
a forma cartesiana de pensar contribuiu para que a noção
de racionalidade na episteme fosse reduzida a uma perspectiva
meramente instrumental, contentando-se tão-somente em
verificar se os procedimentos lógico-formais de dedução
foram cumpridos, a fim de que a verdade possa ser considerada, em
última análise, racional. Tal forma de pensar
transforma a racionalidade, metaforicamente, num “leito de
Procusto”.
A lenda sobre Procusto, oriunda da mitologia
grega, é um tanto quanto controversa em certos detalhes[7]. Em
algumas fontes pesquisadas, vimos que Procusto (“o estirador”)
era filho de Possêidon e seu nome verdadeiro era Damastes ou
Polípemon. Era um ladrão que vivia em Elísios,
na Ática. Atraía pessoas para a sua casa, ora através
da oferta de banquetes, ora como forma de dar abrigo às
pessoas. Porém, em sua casa, havia um leito no qual o abrigado
descansaria. Todavia, para merecer o repouso após a festa ou o
cansaço, havia uma condição: o abrigado deveria
caber exatamente no tamanho do leito, o que implicaria em duas
situações possíveis: na primeira, a pessoa sendo
maior que o leito, Procusto decepava seus membros inferiores, a fim
de que a pessoa pudesse caber estritamente nos limites da cama. Outra
possibilidade era de o abrigado ser menor que o leito, e, para poder
repousar, Procusto esticava seus membros com tenazes até
chegarem aos limites do leito. Invariavelmente, não havia a
possibilidade de uma pessoa ser exatamente do tamanho do leito, pois
a cama seria sempre modificada por Procusto, dependendo da altura
daquele que estava em sua casa, a fim de que sempre a pessoa fosse
torturada por ele.
Uma das controvérsias sobre a lenda
reside no fato de Procusto oferecer o banquete às suas
vítimas. Segundo outro relato, ele atacava as pessoas que
vagavam no caminho de Megara a Atenas[8], e, por vitimar as pessoas,
não havia como oferecer banquetes atrativos a eles. Procusto
foi morto por Teseu, que impôs a ele o mesmo castigo que
vitimava as pessoas que se deitavam no leito.
A fábula
de Procusto ilustra bem a noção de racionalidade e de
verdade naquele contexto, pois o modelo cartesiano cria um mecanismo
limitador a partir de uma única verdade possível. Logo,
tudo aquilo que foge da estruturação racional para
obter a verdade será simplesmente desconsiderado do âmbito
epistemológico de observação, assim como os
membros superiores e inferiores do abrigado que é maior que o
leito. O “leito”, em nossa metáfora, seria a racionalidade
única baseada na mesma idéia de unicidade da verdade
trazida pela episteme do século XVII e influenciadora das
formas de fundamentação da epistemologia (inclusive a
jurídica) no Século XIX. Tal forma de pensar a
racionalidade e a verdade não mais se coaduna com o atual
momento de estágio do conhecimento, da ciência, da
pluralidade, da hipercomplexidade e da diferença.
Veremos,
a partir de agora, como tal “leito de Procusto” se consolida,
sobretudo, com o advento da modernidade e do Estado liberal, e como a
visão filosófica de um método racional (por ser
seguro) chega à teoria do direito e do Estado, criando um
esvaziamento de conteúdo no debate acerca do direito
(ADEODATO, 1989: 29-52). Tal esvaziamento, seguindo a metáfora,
é a prova viva de que o embate ético “excedia o
tamanho do leito” por enaltecer um grau de subjetividade que não
era compatível com a formalização da
racionalidade naquelas circunstâncias. O leito era a certeza, a
segurança, a previsibilidade, a transmissibilidade, a forma. A
verdade, enfim.
5. A racionalidade como fruto do ato
epistemológico.
Num determinado contexto do Século
XIX, a noção de racionalidade começa a ser
vinculada à própria epistemologia, quando a afirmação
do ser racional estava adstrita à possibilidade da cognição
que confirma a cientificidade de um determinado ramo do conhecimento.
O iter da epistemologia – entenda-se, o caminho metodológico
que confirma um determinado ramo do saber como o dotado de
cientificidade – é quem determinaria a racionalidade que
estaria implícita e estritamente atrelada à ciência.
Em curtas palavras, o racional é o verdadeiro, que é o
que pode ser cientificamente demonstrado. Tal caminho da
racionalidade como demonstrabilidade também influencia a
formação dos ideais políticos trazidos pela
Revolução Francesa, bem como dos matizes do positivismo
jurídico. Vejamos como.
Em primeiro lugar, o “leito
de Procusto” referido no item anterior deve atender a alguns
requisitos para a sua confirmação como ciência,
tratados aqui perfunctoriamente, como:
1) A possibilidade de
generalização do conhecimento;
2) A
possibilidade de transmissibilidade do conhecimento obtido;
3)
O rigor da determinação do objeto e do método de
estudo;
4) A previsibilidade de que aquele conhecimento
testado pelo método possa ser verificado independentemente das
circunstâncias;
5) A segurança gerada por todas
essas circunstâncias acima narradas;
6) O conhecimento
epistemologicamente aferido como sendo o verdadeiro.
No que
diz respeito à possibilidade de generalização do
conhecimento, a cientificidade daquele modelo de episteme se impõe,
sobretudo, pela capacidade com a qual o modelo formal constrói
enunciados que pretendem concentrar uma validade universal em seus
postulados. Além disso, a generalização
consolida uma noção de que aquele conhecimento obtido
goza de credibilidade frente à comunidade científica.
Se uma determinada regra obtida através do método
epistemológico pode ser repetida várias vezes e em
circunstâncias semelhantes, dir-se-á que a segurança
foi obtida. Por exemplo, o fato de a água ferver a 100ºC
transmite segurança por, dentre outros motivos, ter sido
repetida à exaustão para se chegar a uma regra geral de
tal monta. E, pela constante repetição que faz com que
a regra se confirme, a credibilidade da segurança se
estabelece.
Além da generalidade, outra característica
da episteme tradicional é a transmissibilidade do conhecimento
obtido. Usando o mesmo exemplo tratado acima, no momento em que se
pode transmitir a alguém a regra através da qual a água
ferve a 100ºC, é previsível que, pelo fato de a
regra possuir um lastro de segurança atestado pela
demonstrabilidade, o resultado obtido seja o mesmo, independentemente
do sujeito que produza o conhecimento. Por conta da
transmissibilidade, outros podem ter acesso às leis do
conhecimento.
O rigor da determinação do objeto
é uma herança clara da episteme determinada por
Descartes. A busca pelo rigor traz a preocupação com a
forma acima de tudo. Afinal de contas, é a forma que estrutura
a segurança e a previsibilidade no conhecimento e, com tal
postura gnoseológica, a confirmação da
existência clara de uma verdade.
A tentativa de
determinação da verdade no conhecimento é a
chave mestra do problema gnoseológico. E “ser verdade”
implica necessariamente em um método rigoroso (e, por isso,
científico) de aferição de tal verdade. Mesmo
nos livrando do cartesianismo, a busca pela verdade ainda é
uma das grandes perquirições da filosofia. A
credibilidade da verdade estava no rigor formal do método para
aferir seu postulado, criado pelo homem (Cf. BLUMENBERG: 1999: 73
s.). Assim, se a verdade é o centro da discussão e ela
só pode ser obtida pela forma, só resta à teoria
do conhecimento a sua redução a tal. E essa redução
do conhecimento à episteme formal espelha a necessidade de
rigor na determinação da verdade, como se o método
fosse um certificado de qualidade e de garantia da verdade. Claro que
tal credibilidade, fruto da episteme demonstrativa, faz gerar a
racionalidade na estrutura do conhecimento de então. Ser
racional, pois, consistia em seguir os ritos formalmente determinados
para transmitir segurança e certeza no conhecimento aferido,
que se verificaria, em última análise, como uma
verdade. E para nós parece claro que o direito não
podia ficar de fora dessa necessidade daquele tempo.
A
racionalidade seria o resultado do ato epistemológico.
Medir-se-ia a racionalidade pelo prisma formal de determinação,
e esse postulado é fundamental para o direito e o Estado na
transição da estrutura do poder no Século
XIX.
6. A necessidade de consolidação dos ideais
liberais na teoria do direito e do Estado: o problema da vinculação
do direito à idéia de lei.
No mesmo contexto do
Século XIX, percebe-se que, no prisma da teoria política,
buscava-se um mecanismo formal garantidor do novo perfil de Estado
que se desenhava após a Revolução Francesa
(1789). Quando o Estado burguês, de feição
liberal, começa a se perfazer, há a busca cada vez
maior de segurança jurídica e política àqueles
que sucumbiram ao jugo do absolutismo e da estrutura do poder
político centrada em um ente unipessoal.
Como agora o
poder surge do povo, há que se executar e ter em mente uma
nova forma de justificativa do poder, haja vista que a explicação
de uma racionalidade filtradora da vontade divina e concentrada na
mão do monarca absoluto não mais servia aos tempos de
então. Portanto, o Século XIX traz em si não
apenas a consolidação de uma discussão
contratualista sobre a formação e a justificação
do poder político, mas também – atrelado a este
debate – o delineamento de um perfil que transmite, ao mesmo tempo,
densidade em seus postulados e segurança a partir da episteme
herdada do cartesianismo. E, assim, buscar justificar o direito como
ciência.
O ambiente do Século XIX mostrou o
seguinte desdobramento interessante: no plano filosófico,
vimos a consolidação da episteme pensada pelos autores
que advieram desde o Século XVII. Tal postura reforçava
o paradigma homem/objeto/método/racionalidade/verdade na
filosofia. Numa equação de pretensa simplicidade, o
homem determinaria o método rigoroso para conhecer o objeto em
questão, obtendo, a partir da aplicação do
método, uma verdade racionalmente estruturada sobre o objeto
do conhecimento em questão.
Já no plano
político, a segurança propiciada pelo método era
exatamente o que o poder necessitava para se justificar. Se a
estrutura da legitimação agora vinha de cima para
baixo, criando a distinção entre legitimidade e
legitimação (ADEODATO, 1989: 53-76), a segurança
é a forma encontrada para cristalizar o novo exercício
do poder, bem como a noção de soberania estatal que
passa a ser inerente à formação do Estado a
partir da modernidade. Para fortalecer o Estado, formaliza-se a noção
de direito a fim de que o Estado, através de um instrumento
formal, possa fornecer previsibilidade na aferição de
direitos subjetivos a partir do postulado fornecido pela forma.
Adota-se a estrutura da independência e da harmonia dos poderes
e o legislativo passa a se justificar, inicialmente, por ter sido
formado através de um exercício de soberania popular.
Configura-se, pois, o fenômeno da lei como sendo a expressão
jurídica por excelência do período em
questão.
No plano jurídico, como anunciado
acima, o “fenômeno da lei” como forma de impedir o arbítrio
se torna a mola propulsora da estrutura do Estado e do pensamento
jurídico. É o auge do chamado positivismo legalista
(LARENZ, 1997: 45 s.), no qual a estrutura do pensamento jurídico
de então se baseia na noção de ciência
herdada não apenas do cartesianismo, mas do positivismo lógico
em geral. Para tanto, como busca de uma identificação
de um método rigoroso das ciências sociais sem abrir mão
dos postulados formalistas da episteme, os pensadores construíram
a tese da possibilidade de uma observação controlada e
continuada da realidade sem o intermédio de estruturas
axiológicas no conhecimento. É como se o método
das ciências sociais – incluindo-se aí o direito –
pudesse ser totalmente isomórfico, sem nenhuma variação
ocasionada pelos elementos axiológicos e ideológicos do
conhecimento na sociedade.
Como o cartesianismo nos fornecia
segurança, mas não estava adaptado a uma estrutura
gnoseológica que comportasse as chamadas “ciências
sociais”, o positivismo, utilizando-se da previsibilidade e da
noção de verdade trazida pela filosofia de Descartes,
incorpora elementos de distinção para a construção
de uma metodologia das ciências sociais (LARENZ, 1997: 9-19).
E, no direito, a necessidade da determinação de sua
cientificidade baseada na estrutura trazida pelo cartesianismo e pelo
positivismo. E, sendo ciência, o direito está legitimado
no plano epistemológico.
Além disso,
transmitindo segurança a partir de uma verdade determinada
epistemologicamente, o direito se justifica também no plano
político. E assim, epistemológica e politicamente
legitimado, o direito quer agora, com o positivismo jurídico,
justificar-se a si próprio por intermédio de uma
metodologia não mais própria das ciências
sociais, mas uma forma jurídica de determinação
da segurança que surgia na doutrina jusfilosófica do
Século XIX, consolidando, assim, o direito como ciência
e a banalização da expressão “ciência do
direito”, por se tratar, para muitos, de uma tautologia. Curioso é
perceber que a agenda da episteme que chega ao Século XIX é
a mesma utilizada para tentar oferecer um patamar de credibilidade ao
direito.
Para que tais referenciais epistemológicos
pudessem explicar o direito, o que deveria ser feito,
preliminarmente, era a delimitação do objeto da
“ciência do direito”. E assim se fez. E, pela necessidade
de previsibilidade da ciência e do poder político de
então, a forma encontrada para a fixação do
objeto do direito foi o de efetuar uma identificação
com a lei. Eclode, pois, o positivismo legalista.
A lei é
escolhida como tal por algumas razões, dentre as quais as
seguintes:
Por ser escrita, possuir ritos previamente
determinados de elaboração (institucionalização)
e ser produzida por um poder legítimo, emanado do povo, a lei
possui o lastro de segurança e de previsibilidade. Ou seja, se
todos são sujeitos de direito, os seus direitos e os
respectivos limites estarão adstritos ao que a lei diz.
Portanto, a teoria do direito subjetivo se sofistica, a partir do
referencial da lei como sendo o ponto de partida para a verificação
de um direito de tal ordem. Por conseguinte, a segurança se
verifica na medida em que o direito subjetivo de um determinado
sujeito de direito existe porque a lei assim o determinou. Por
conseguinte, ninguém, por mais poderoso que seja, poderá
impedir o exercício regular de um direito subjetivo;
Pelo
fato de determinar rigidamente os limites e possibilidades dos
direitos subjetivos, a lei se torna uma forma de limitar o arbítrio
de cada um, reduzindo as chances de um estado de natureza no qual a
força bruta fosse a forma de consagração da
barbárie. A lei, pois, seria a forma de impedir que as “leis”
da sobrevivência num estado natural se sobrepujem à
necessidade de limites ao nosso instinto e à liberdade;
A
lei, por transmitir a segurança narrada nos itens anteriores,
coaduna-se com a necessidade de uma rigidez na aferição
do objeto das ciências, sendo, assim, considerada como o objeto
jurídico e, ao mesmo tempo, a estrutura que determina a
cientificidade do direito. Claro que nos referimos à rigidez
da forma, e não a uma visão epistemológica que
se volte à necessidade do pluralismo e da multiplicidade;
A
lei formalizava procedimentos que determinavam uma metodologia da
ciência do direito. Todavia, apesar de a lei ser o objeto do
direito na visão da episteme do Século XIX, a
metodologia jurídica, mesmo não refutando tal dogma,
varia conforme a corrente positivista de pensamento em questão;
A lei, como expressão de um direito seguro e pela
forma inerente à sua estrutura, não estava sujeita a
juízos de valor que porventura prejudicassem a determinação
do direito com base em seus postulados. Ou seja, por conta da
estrutura e dos ideais da episteme, as questões axiológicas
são desconsideradas na determinação da
metodologia jurídica, e a lei se tornou um excelente
instrumento para que tal postulado pudesse se consolidar, perfazendo
uma dogmática jurídica positivista;
Em síntese,
a lei, como expressão máxima do direito e da verdade
epistemologicamente aferida a partir dos ideais positivistas do
direito, passa a ser sinônimo de estrutura jurídica
racional. A racionalidade jurídica oriunda da episteme
tradicional (cartesianismo e positivismo) reduz o direito à
forma, à institucionalização, pouco importando
os conteúdos que serão inseridos na forma da lei.
Tais afirmativas trazem à baila a noção
de que a racionalidade jurídica oriunda do positivismo também
se portava como um leito de Procusto, tal como vimos anteriormente.
Se o direito está adstrito à forma da lei, pouco
importa o que a lei nos diga: a preocupação do jurista
deve ser com a determinação da metodologia jurídica
a partir da inegável vinculação do direito à
lei. Tudo aquilo que não está na forma da lei é
automaticamente considerado não-jurídico em nome da
segurança que o direito deve propiciar. A lei funcionava,
pois, como o leito de Procusto com pretensão de racionalidade,
sendo o limite formal da determinação do mundo
jurídico. Veremos agora como tal leito de Procusto jurídico,
travestido em forma de racionalidade, influencia a determinação
da teoria do direito positivista do Século XIX.
7.
Exemplos na teoria do direito: a consolidação da
episteme.
Como colocado anteriormente, a estrutura da teoria
jurídica foi fortemente influenciada pela episteme da época,
que necessitava de segurança, previsibilidade e rigor no
método de determinação do conhecimento jurídico.
Veremos como a teoria jurídica do Século XIX é
quase que um corolário da visão de conhecimento,
ciência e segurança da época.
Num primeiro
momento, nota-se que o cartesianismo influencia de forma decisiva a
chamada Escola da Exegese francesa, bem como a Jurisprudência
dos Conceitos, ambas extremamente legalistas e, portanto, adotam a
lei como o paradigma estático da segurança jurídica.
Com a Escola da Exegese, surgida na França para a
consagração dos ideais liberais trazidos pela revolução
burguesa, consolida-se o pensamento através do qual o direito
e a lei não se diferenciam, haja vista que a lei seria a única
fonte do direito existente, por ser, sobretudo, fruto da chamada
“vontade do legislador”, o que cria na teoria do direito a noção
da mens legislatoris como base de fundamentação da lei.
Claro que tal vontade não se prenderia ao aspecto psicológico
do legislador, por ser inacessível ao jurista. A saída
encontrada é a vinculação à vontade
presumida do legislador, expressa na literalidade do texto da
lei.
Além de tal postulado formalista, só
poderia haver uma única forma de interpretação
da lei. Conseqüentemente, há a necessidade da
determinação da verdade cartesiana no direito através
da consolidação da tese de haver sempre uma única
forma de interpretar a lei, e esta forma correta seria a verdadeira.
Além de verdadeira, só se permitia como método
seguro de interpretação da lei aquele que se vinculava
à literalidade do que é determinado pelo seu texto.
Assim, o intérprete só pode efetivar seu mister a
partir da determinação literal da lei. E a
interpretação literal não pode agregar nenhum
outro elemento que seja externo ao texto da lei, a partir das
acepções de uma interpretação gramatical
e lógica do enunciado.
Tércio Sampaio FERRAZ
JR.(1994) traz um exemplo para demonstrar como a interpretação
literal pode nos levar a absurdos. Utilizando-se da norma “não
pise na grama”, a interpretação presa à
literalidade do texto geraria a seguinte situação: um
jardineiro, ao cuidar da grama, poderia ser punido pela norma,
exatamente pelo fato de pisar nela. Por outro lado, um casal que
estivesse rolando na grama, danificando toda a sua estrutura, não
poderia sofrer nenhum tipo de sanção, justo por não
pisar na vegetação. Tal exemplo nos mostra a
insuficiência do método literal na interpretação
jurídica. Por outro lado, ao buscar a literalidade, os
exegetas de plantão buscavam enquadrar a teoria jurídica
à necessidade de segurança que os tempos e a episteme
requeriam ao conhecimento. E, com isso, confirmar ao direito o status
de ciência.
Na literatura, um excelente exemplo de como
funcionava a racionalidade jurídica de então está
na obra Os Miseráveis, de Victor Hugo. O inspetor Javert,
policial que persegue Jean Valjean, faz menção a todo o
momento da importância da lei e de fazer cumprir a lei,
independentemente dos condicionamentos e circunstâncias.
Produzido o texto legal de forma racional pelo legislador, não
há o que questionar acerca da sua legitimidade e da
justificação de atos sob o seu manto. No diálogo
final, Javert faz a afirmação de que sempre quis pautar
a vida pelo não-descumprimento de nenhuma lei, dizendo que
sempre viveu buscando cumprir a lei, mesmo que o seu texto determine
a perseguição de um homem que quer reconstruir sua vida
em paz. Como o esvaziamento de conteúdo nos leva à
forma, Javert queria um consolo ético na sua busca incessante
pelo legalismo.
Outro exemplo interessante, desta feita no
cinema, está em um recente filme feito no Brasil, intitulado
Cronicamente Inviável, de Sergio Bianchi. Numa das cenas, uma
senhora atropela um menor de rua, e ela, como sói acontecer
com a maioria dos brasileiros (segundo a tese do filme), exime-se da
culpa, afirmando a plenos pulmões os seguintes argumentos: 1.
Uma criança não deve estar no meio da rua, e sim em
casa com os seus pais. Se as crianças não têm pai
nem mãe, ela não pode fazer nada, não tem culpa
pelo fato de o menino estar ali; 2. O menino deveria atravessar a rua
na faixa de pedestres, o que a eximiria de culpa porque o menino não
havia cumprido a lei. Afirma ainda que o seu carro estava em ordem,
era novo e que, além disso, conhecia a lei. Se a lei manda
atravessar a rua na faixa de pedestre, quem descumpriu a lei foi o
garoto, e, por conta disso, ela não poderia ser punida por ser
“legalista”. E, alegando um compromisso para o qual estava
atrasada, foi a senhora embora, passando os pneus do seu carro por
cima de um dos braços do garoto, deixando-o a sofrer ao
relento.
No que tange à Escola da Jurisprudência
dos Conceitos, formulada, dentre outros, por Puchta, sabe-se que o
referido autor cria uma estruturação do direito a
partir da famosa figura de uma pirâmide (LARENZ, 1997: 21 s.).
À diferença da estrutura que ficou célebre na
teoria do ordenamento jurídico de KELSEN (1985), a forma de
pensar o direito parte do pressuposto de que as leis de hierarquia
superior formulam conceitos fechados, estanques, prontos e acabados,
através dos quais a formação das leis de
hierarquia inferior será efetuada a partir de deduções
lógicas efetuadas a partir daquele conceito. É uma
estrutura de derivação estática, ao contrário
da derivação nomodinâmica explorada na teoria
kelseniana. Conseqüentemente, se toda lei é uma dedução
de uma outra mais geral, todas as leis possuiriam um elemento em
comum, que seria o elemento mais genérico a partir do qual
houve as contínuas deduções para a formação
da ordem jurídica.
Nas palavras de Karl Larenz, “se
um conceito inferior se subsumir ao superior, valerão para ele
‘forçosamente’ todas as afirmações que se
fizerem sobre o conceito superior” (LARENZ, 1997: 25), formando,
assim, uma “genealogia dos conceitos” (LARENZ, 1997: 23).
Outros
exemplos, menos legalistas, também eclodiram no século
XIX como tentativa de determinação de uma metodologia
da ciência do direito, porém, a despeito de certas
escolas interpretativas acrescentarem novos elementos à
interpretação, todas elas têm algo em comum: a
crença na possibilidade de uma única forma correta de
interpretação do direito, reflexo direto não só
do cartesianismo, mas também do positivismo jurídico.
Como exemplo, cite-se a escola da livre investigação
científica, de François Gény, que determina a
forma ideal de interpretação da lei a partir dos
cânones positivistas, acrescentando as noções de
autoridade e tradição na interpretação do
direito[9]. Apesar disso, afirma que nem sempre há a
possibilidade de se chegar à decisão. Para evitar um
descrédito à epistemologia jurídica, Gény
afirma que o juiz, quando intérprete, poderia captar, através
da observação continuada da realidade, a norma a ser
aplicada ao caso como se legislador fosse (Cf. OST, 1993: 169 s.).
Cristalino é o formalismo de tal propósito metodológico
quando dá um poder, mesmo que subsidiário, ao juiz de
construir o embasamento através do qual se assentaria a
decisão jurídica, como se necessariamente todo o juiz
tivesse capacidade para tal. Isso se não questionarmos, claro,
as bases positivistas da teoria de Gény (cf. AFTALIÓN e
VILANOVA, 1994).
Como se vê, todas as buscas pela
metodologia jurídica do Século XIX consubstanciam seus
pilares em estruturas estritamente formalistas, na esteira da
episteme da época, que requeria esse apego irrestrito à
forma, a fim de dar um grau de racionalidade à estrutura
epistemológica do período. Ocorre que tal postura
começa a sofrer alterações, e o direito, por seu
turno, também passa por uma reestruturação de
suas bases. Assim, a partir de um determinado período do
Século XX, surge um referencial de racionalidade distinto,
baseado na pluralidade e na controvérsia (cf. LENK, 1990: 77
s.), e o direito também se modifica a partir de tal
embasamento teórico, sobretudo em relação ao seu
papel enquanto ciência. Essa discussão, porém,
será travada em outro momento.
8.
Referências
ADEODATO, João Maurício. O
problema da legitimidade – no rastro do pensamento de Hannah
Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1989.
AFTALIÓN, Enrique e VILANOVA, José.
Introducción al derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1994.
BLUMENBERG, Hans. Las realidades en que vivimos.
Barcelona: Paidós, 1999.
DESCARTES, René.
Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao
estudo do direito – técnica, decisão, dominação.
São Paulo: Atlas, 1994.
GRASSI, Ernesto. Vico y el
humanismo – ensayos sobre Vico, Heidegger y la Retórica.
Barcelona: Anthropos, 1999.
KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997.
LENK, Hans. Razão pragmática
– A filosofia entre a ciência e a práxis. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
OST, François.
“Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez”.
Doxa, n. 14. Alicante: Universidad de Alicante, 1993, pp.
169-194.
PESSOTTI, Jorge. “Procusto, um bandido entre os
imortais”.
http://www.webavista.com.br/mitologia/mitos/procusto.html, em 27 de
novembro de 2001.
VIEHWEG, Theodor. Tópica y
jurisprudencia. Madrid: Taurus,
1986.
--------------------------------------------------------------------------------
[1]
Todas as referências ao ambiente intelectual da época
foram retratadas a partir do prefácio contido na edição
brasileira do Discurso do Método (DESCARTES, 1996). Já
as conclusões trazidas são de nossa
responsabilidade.
[2] Isto posto, a delimitação
de nossa abordagem está suficientemente clara, não
sendo objetivo do autor fazer uma digressão mais alentada
sobre a filosofia de Descartes.
[3] Ver prefácio à
edição brasileira do Discurso do Método (1996:
VIII-X).
[4] Para demonstrar o excelente estilo adotado por
Descartes (ou, pelos méritos da tradutora da obra em
português), cite-se, como exemplo, o início da segunda
parte do Discurso, quando Descartes fala de sua estada na Alemanha
por conta da Guerra dos Trinta Anos e, ao regressar, ficou retido
numa caserna que propiciou a ele o isolamento necessário para
meditar. “Não tendo, aliás, felizmente, nenhuma
preocupação nem paixão que me perturbasse,
ficava o dia inteiro sozinho fechado num quarto aquecido, onde tinha
bastante tempo disponível para entreter-me com meus
pensamentos.” (DESCARTES, 1996: 15).
[5] Ressalte-se que os
“homens puramente homens”, assim textualmente referidos por
Descartes, são os que verdadeiramente estão empenhados
em busca da verdade e da razão, sem precisar de um vínculo
com elementos sobrenaturais para explicar o conhecimento. Daí,
dizemos que Descartes inclui o elemento humano na determinação
do conhecimento, não estando a verdade e a razão
determinadas aprioristicamente por Deus ou por alguma outra forma de
fundamentação. O ponto-de-partida de Descartes, por
assim dizer, é o fato de a razão ser inerente a todo o
ser humano. Se há algum dado a priori na episteme cartesiana,
ele se concentra no dado ora referido. O a priori é muito mais
adotado como um ponto de partida para o desenvolvimento das teses que
se formarão a partir de tal assertiva.
[6] O trecho
trazido à baila é ressaltado como uma forma de poder
ter a certeza da existência do homem a partir da dúvida
que a não-aplicação do método sempre
gera. Mesmo a sua existência (que para muitos parece uma
evidência empírica) deve ser determinada como certa pelo
método. E o dado trazido pelo raciocínio, tanto em
estado de total concentração quanto em sonhos, mostra
que a existência se confirma no método a partir do
pensar. E que o pensar pressupõe a presença de um
elemento alheio ao corpo físico que tenha tal mister. E a
imperfeição do homem em determinar a verdade seria uma
evidência que demonstra claramente a existência de um ser
superior que coordenaria as imperfeições, e dessa forma
tenta Descartes provar que, pela aplicação do método,
consegue atestar a existência de Deus e da alma humana (cf.
DESCARTES, 1996: 37-46). Eis a saída encontrada por Descartes
para incluir a existência de Deus, mesmo negando a ontologia
teológica, apesar de não fugir de elementos
metafísicos, como Deus e a alma.
[7] Cf., para maiores
detalhes, http://sites.uol.com.br/molimpo2/procusto.htm, em 27 de
novembro de 2001. Ver tb. PESSOTTI, 2001.
[8] Cf.
http://es.geocities.com/proyectoarcadia/clasica/procusto.html, em 27
de novembro de 2001.
[9] As noções de autoridade
e tradição possuem elementos em comum, pois ambas são
fruto de uma análise a partir de elementos do costume e da
jurisprudência. No caso da autoridade, o intérprete
analisa o costume e a jurisprudência atuais, enquanto que a
tradição restringe aos elementos consuetudinários
e jurisprudenciais do passado.
*Mestre
e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de
Direito do Recife, onde é professor adjunto das disciplinas
Introdução ao Estudo do Direito (graduação)
e Teoria Geral do Direito (mestrado e doutorado).
MAIA, Alexandre da. O embasamento epistemológico como legitimação do conhecimento e da formação da lei na modernidade: uma leitura a partir de Descartes.
Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br Acesso no dia 04 de agosto de 2006