Experiências
metodológicas no ensino jurídico
Sérgio Rodrigo Martínez *
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta
sozinho:
os homens se libertam em comunhão.
(Paulo Freire)
INTRODUÇÃO
Diante das modificações propostas para o ensino jurídico, em termos de
graduação, para o ano de 1999, muito se tem discutido sobre o excesso de teoria,
destituído de atividades práticas na sala de aula.
A prática referida não é aquela voltada somente para o dia-a-dia do
profissional do Direito, mas aquela também direcionada à realização de
exercícios de análise e crítica dos conteúdos teóricos ministrados na própria
sala de aula, tendo em vista a construção individual do conhecimento, pelo
aluno.
Tal proposta de um ensino pedagógico crítico é ressaltada por RAYS
(1990), que vê, na conexão entre a teoria e a prática, um ponto pacífico para o
desenvolvimento da didática escolar.
Nesse processo de ensino, o aluno deixa de ser um mero repetidor
(memorizador) de conceitos e definições de outrem, fato presente na pedagogia
tradicional descrita por LIBÂNEO (1994) (1), e passa a ser o pesquisador
crítico dos conteúdos que lhe estão sendo apresentados. Ou, conforme nos ensina
FREIRE (1981), estar-se-á deixando de lado a "educação bancária" –
entendendo-se esta como se os alunos fossem um banco, no qual o professor faz o
depósito e os alunos o recebem, arquivando-o, até a chegada da prova, ocasião
em que o professor vem buscar o extrato memorizado de seu depósito - para um
ensino de construção do conhecimento, em que a pesquisa científica e a formação
da cidadania estão a todo momento presentes.
Então, visando atingir tal objetivo pedagógico ou, ao menos, demonstrar
meios para que este ocorra, este artigo traz uma experiência metodológica
realizada perante alunos do ensino jurídico.
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Esta experiência metodológica foi realizada em três turmas do segundo ano
de um curso de graduação em Direito de uma Universidade Paranaense, sendo duas
turmas do período noturno e uma turma do período matutino; a primeira, composta
por 67 alunos; a segunda, por 53 alunos e a terceira, por 72 alunos. (2)
Em levantamento prévio realizado junto a esses alunos, demonstrou-se que
nenhuma das turmas ainda havia tido contado com este tipo de metodologia de
ensino, que intercala teoria e prática.
A disciplina utilizada para este estudo foi a extracurricular de Direito do
Consumidor, com carga horária de 20 horas/aula (estipulada de acordo com a
Portaria 1.886/94 do MEC).
Por tratar-se de uma experiência de curta duração, essa disciplina
mostrou-se de forma ideal, além de que, seu conteúdo está intimamente ligado à
vida cotidiana dos alunos, facilitando a elaboração de exercícios práticos.
Esse curso foi ministrado em duas seções de 10 horas/aula cada, efetuadas
em dois sábados consecutivos, o que possibilitou um tempo maior para os alunos
refletirem sobre o tema e realizarem tarefas individuais de construção do
conhecimento.
As 10 horas/aula da primeira seção foram divididas em duas subseções de 5
horas/aula cada: uma no período da manhã e a outra no período da tarde.
Cada período tinha a sua carga horária dividida ao meio entre a atividade
teórica, caracterizada pela exposição, ministrada pelo professor, e a atividade
prática, caracterizada pelos exercícios de análise, discussão, apresentação e
crítica dos conteúdos anteriormente ministrados.
No plano de aula estabelecido, a idéia inicial era dedicar a primeira
subseção à exposição teórica e a segunda subseção à atividade prática. Mas,
quando da sua efetiva aplicação, notou-se que, melhor seria, para o
desenvolvimento da proposta deste trabalho, a conexão das aulas expositivas com
os exercícios teórico-práticos tanto no período matutino, quanto no período
vespertino.
Todavia, a segunda seção deste curso, ministrada no sábado subseqüente ao
da primeira seção, obedeceu àquela caracterização inicial, mantendo, no período
matutino, apenas a exposição teórica efetuada pelo professor e, no período
vespertino, as atividades práticas em forma de avaliação somativa do curso, na
qual buscou-se verificar se os alunos atingiram os objetivos propostos no
início das atividades e se o professor também atingiu o proposto para o
desenvolvimento das atividades.
2. OBJETIVOS
O objetivo geral dessa experiência foi aplicar uma metodologia de ensino
baseada na pedagogia crítica, de forma que tudo o que foi discutido
teoricamente pelo professor pudesse ser analisado e criticado com eficácia
pelos alunos, visando possibilitar-lhes construir o seu próprio conhecimento
sobre o assunto, contribuindo, assim, para a melhoria do ensino jurídico.
O primeiro objetivo específico foi modificar a relação professor/aluno,
de forma a democratizar e facilitar ao máximo a integração de todos,
possibilitando a formação de um relacionamento destituído de imposições ou
punições; em que a todos foi permitido expor suas idéias e questionamentos em
relação à metodologia adotada, ao conteúdo exposto e aos exercícios
teórico-práticos realizados. Tal objetivo foi formulado com base nos estudos de
CUNHA (1995), que descreve a relação professor-aluno como um elemento de
capital importância no processo pedagógico, e também no estudo dos aspectos
cognoscitivos e sócio-emocionais da relação professor/aluno descritos por
LIBÂNEO (1994).
O segundo objetivo específico foi fomentar a postura crítica dos alunos em
relação ao conteúdo que lhes foi apresentado, possibilitando a construção
pessoal do conhecimento e conscientização da postura do aluno como cidadão que
está inserido no meio social. Tal objetivo tem embasamento na pedagogia crítica
já esboçada na introdução, que é incrementada por uma "tendência
transformadora" da sociedade, conforme expressa LUCKESI (1994, p.51), cuja
proposta é desvendar e utilizar-se das próprias contradições da sociedade,
para trabalhar realisticamente (criticamente) pela sua transformação.
Observa-se este objetivo também na metodologia de ensino proposta por FERREIRA
(1990, p.187), tendo em vista que os alunos possam entender o mundo que os
circunda de maneira crítica.
O terceiro objetivo específico foi incentivar o trabalho organizado em
grupo, visando demonstrar a importância da troca e da construção de
conhecimentos de forma integrada. Tal objetivo foi formulado com base nos
estudos de incentivação da participação ativa dos alunos realizados por
BORDENAVE e PEREIRA (1998).
O quarto objetivo específico foi facilitar a aprendizagem por meio da
utilização de todos os recursos auxiliares e audiovisuais possíveis.
O quinto objetivo foi possibilitar aos alunos a participação democrática
no processo de avaliação dos conteúdos, do seu próprio desempenho e do
desempenho do professor. Tal objetivo foi formulado numa perspectiva de
construção bilateral do conhecimento, conforme destaca HOFFMANN (1990), cabendo
tanto ao professor quanto ao aluno interagir no processo avaliativo da ação
educativa.
3. MODOS OPERACIONAIS
A experiência utilizou-se de aulas teórico-expositivas, seguidas de
atividades práticas, em grupo, voltadas para a análise crítica dos conteúdos
ministrados.
As dinâmicas em grupo seguiram uma adaptação do método Philips 66, descrito
por BORDENAVE e PEREIRA (1998), com grupos de no máximo cinco integrantes,
formados livremente por escolha dentre seus pares. A cada grupo foi destinado
um problema prático relacionado com o tema anteriormente exposto pelo
professor, ao qual coube orientar todos os grupos determinando a forma a seguir
para a resolução da questão em um tempo hábil delimitado.
Após o término do trabalho em grupo, ao professor coube expor o porquê da
realização daquela tarefa prática e qual seria a sua resolução ideal; todavia,
reforçando positivamente todas as construções de conhecimento divergentes que
haviam ocorrido.
Para facilitar o enquadramento da temática do curso, no início da
primeira aula foi projetado um vídeo contendo diferentes situações referentes
ao cotidiano da vida dos consumidores, visando situar inicialmente os alunos na
temática a ser discutida.
Posteriormente foi realizada uma incentivação inicial baseada em técnicas
de brain storm ou tempestade cerebral, através de perguntas abertas a
todos os alunos, visando medir o nível de conhecimento geral da sala sobre o
assunto a ser ministrado.
Após a utilização da técnica inicial, passava-se à demonstração dos
conteúdos a serem ministrados naquela aula e os objetivos os quais se esperava
que os alunos atingissem ao final da aula.
Terminados os pressupostos preparatórios, passou-se, então, à exposição
teórica, que contou com a utilização dos seguintes recursos auxiliares: lousa,
retroprojetor e projetor multimídia.
Terminada a exposição teórica, fazia-se um breve intervalo. Terminado o
intervalo, passava-se às atividades práticas realizadas em forma de dinâmicas
em grupo, encerradas com o feedback do professor.
A avaliação utilizou-se de uma abordagem comportamentalista miscigenada
com uma abordagem sócio-cultural, ambas descritas por MIZUKAMI (1986),
efetivando-se durante todo o processo educacional que se encerrou com testes e
questões abertas sobre o conteúdo temático ministrado e construído nos
exercícios teórico-práticos, com uma auto-avaliação e com uma avaliação da
disciplina realizada pelos próprios alunos.
4. DOS RESULTADOS OBTIDOS
Ao final, na
mensuração dos resultados obtidos pela auto-avaliação e pela avaliação da
disciplina efetuada pelos próprios alunos, observou-se um índice geral de
satisfação com a metodologia adotada em torno de 80%.
O índice de cumprimento dos objetivos propostos também atingiu o nível de
80%, segundo a avaliação dos próprios alunos.
Todavia, algumas observações foram repetidamente efetuadas pelos alunos e
por isso merecem ser destacadas:
a falta de tempo hábil para os alunos realmente se
integrarem à nova metodologia de ensino;
a total divergência entre a metodologia proposta e o
ensino tradicional que impera, de maneira geral;
a mudança positiva na relação professor/aluno, que
possibilitou uma nova concepção de ensino devido à ausência de imposição do
conhecimento, liberdade de manifestação e caracterização da avaliação como um
mero processo educacional e não de punição.
CONCLUSÃO
Pelos satisfatórios resultados obtidos por esta experiência baseada em
ideais educacionais construtivistas, percebe-se que o ensino jurídico requer
mudanças. Modificações na sua estrutura metodológica que possibilitem aos
alunos uma formação crítica, voltada para o contexto social, pois, muito mais
que meros repetidores de conhecimento, necessita-se de construtores do saber e
da justiça, profissionais capacitados a desempenharem suas funções de modo
inovador, crítico e ético.
A experiência proposta representa somente um pequeno exemplo de como o
ensino jurídico pode desgarrar-se de suas amarras tradicionais e partir para um
novo patamar histórico de construção democrática do saber, tendo por base uma
verdadeira faxina pedagógica (3) com a teoria integrando-se à prática na
sala de aula, fato que resultará, quando da sua adoção em larga escala, não só
na formação de juristas, mas também de pesquisadores sociais e cidadãos
conscientes de seus direitos e deveres, com atuação crítica e participativa no
meio social em que estão inseridos.
NOTAS
"O aluno é, assim, um recebedor da matéria e sua
tarefa é decorá-la."
Cf. número de alunos que realmente compareceram ao
curso, excluindo-se os demais que apenas constaram da lista de chamada,
estando, no entanto, ausentes.
Termo adotado por RAYS (1990) para descrever mudanças
no processo educacional.
BIBLIOGRAFIA
BORDENAVE, Juan D.; PEREIRA, Adair M. Estratégias de
ensino-aprendizagem.
18.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
CUNHA, Maria Isabel da. A relação professor-aluno. In: Repensando
a didática.
10ª. ed. Campinas: Papirus, 1995. p.145-158.
FERREIRA, Márcia Ondina Vieira. Como vejo minha prática educativa. In:
RAYS,
Oswaldo A. Leituras para repensar a prática educativa. Porto
Alegre: Sagra,
1990. p.187-191.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 10ª.ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra,
1981.
HOFFMANN, Jussara. Avaliação: mito ou desafio. S. ed. Porto
Alegre:
Educação e Realidade, 1990.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, p.1994.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo:
Cortez,
p.1994.
MIZUKAMI, Maria da Graça N. Ensino: as abordagens do processo. São
Paulo:
EPU, 1986.
RAYS, Oswaldo Alonso. A unidade da teoria e da prática na didática
escolar.
In: Cadernos Didáticos do C.P.G.E. n.21. Santa Maria: UFSM, 1990.
p.03-11.
* Professor
adjunto do curso de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, doutor
em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=46>. Acesso em: 14 jul. 2006.