Crise do Direito e
ensino jurídico
Eduardo Kroeff Machado Carrion *
1. Introdução
Ao longo de sua história, os cursos jurídicos no Brasil,
através da formação de sucessivas gerações de bacharéis, têm alimentado as
instituições, em especial as instituições constitucionais. Da mesma forma,
nunca é demais salientar o papel e a importância da criação dos cursos
jurídicos para a história republicana do Estado, a primeira Faculdade de
Direito tendo sido a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, constituída em 1900 e então denominada Faculdade Livre de Direito de
Porto Alegre, sucedida pela instalação da Faculdade de Direito de Pelotas em
1912. Hoje, já temos no Rio Grande do Sul trinta e quatro (34) cursos de
direito, oferecidos por vinte (20) instituições de ensino superior, públicas
(federais) e privadas.
Com o passar do tempo, os cursos de direito ampliaram
significativamente suas funções, em correlação aliás com o aumento da
complexidade da sociedade contemporânea. Como cursos profissionais que são,
destinam-se hoje à formação de bacharéis para o exercício de atividades
públicas e privadas as mais diferentes na área jurídica.
Até que ponto os cursos de direito preparam
suficientemente seus egressos para o exercício competente das mais diversas
atividades jurídicas?
Antes de tudo, cabe lembrar que a situação dos cursos de
direito é bastante diversificada, dependendo da região onde se localizam, da
condição de serem cursos públicos ou privados e, se privados, da de serem
particulares, comunitários, confessionais ou filantrópicos, entre outros
elementos. Mas há, em que pesem as diferenças, pontos comuns que merecem exame
mais acurado.
Costuma-se falar em uma crise direito que se traduziria
igualmente em uma crise do ensino jurídico. Sem falar, globalmente, na própria
crise do modo jurídico de regulação social, trata-se das novas problemáticas e
demandas que surgem para a reflexão jurídica neste final de século, assim como
também das novas modalidades de solução dos conflitos jurídicos.
A presumida crise do ensino jurídico explicaria em grande
parte o surgimento de cursos complementares para bacharéis em direito, alguns
melhores, outros piores, com o objetivo de prepararem para concursos públicos e
para o exercício da profissão.
Podem os cursos de direito ser suficientemente flexíveis
na sua organização curricular, ampliando o elenco de disciplinas eletivas ou
facultativas, isto é, daquelas de livre escolha do aluno, de forma a acompanhar
as transformações e mudanças na realidade jurídica, mas de forma também a não
perderem, por excesso de flexibilidade curricular, sua identidade?
Tende-se, hoje, a reconhecer a importância, nos cursos de
direito, do fortalecimento das disciplinas, jurídicas ou não, de base, aquelas
que habilitam em grande parte o aluno à reflexão e à criação, como instrumento
para enfrentarem-se os novos desafios e problemáticas do direito.
Algumas iniciativas significativas já foram tomadas. A
Portaria nº 1886 de 1994 do MEC, que fixa as diretrizes curriculares e o
conteúdo mínimo dos cursos de direito, representa um avanço considerável nesse
sentido. Some-se a isso as distintas modalidades de avaliação dos cursos de
direito e a correspondente maior exigência de qualificação do ensino ministrado:
Avaliação das Condições de Oferta dos Cursos de Direito, de iniciativa da
SESu/MEC; Exame Nacional de Cursos, o chamado "Provão", promovido
pelo INEP/MEC; Exame de Ordem, de iniciativa da OAB; Ranking das Melhores
Faculdades de Direito do País, promovido pela Revista Playboy, entre outras.
Pode-se dizer, sem ser temerário, que há hoje a uma
preocupação crescente por parte dos responsáveis e administradores com relação
à qualidade dos cursos de direito. Muito se encontra ainda por fazer, mas o
rumo está fixado. Em especial no Rio Grande do Sul, nossos cursos de direito,
nos últimos anos, têm passado por um processo de qualificação crescente, o
fortalecimento e a expansão recentes da pós-graduação, com sua capacidade de
favorecer a qualificação do ensino de graduação, sendo apenas um dos
indicadores positivos.
2. Crise do Ensino Jurídico
Já há pelo menos algumas décadas, refere-se a existência
de uma crise do ensino jurídico, a afirmação tornando-se inclusive um
lugar-comum. Aponta-se assim para o reconhecimento de uma "inadaptação do
ensino do direito às condições presentes". Inadequação essa que remete por
sua vez a uma própria crise do direito, direito aqui entendido como modo de
regulação das relações sociais. Aliás, o caráter e mesmo os resultados das diferentes
propostas de reforma do ensino jurídico dependem consideravelmente da
pertinência do diagnóstico realizado.
O modelo clássico dos estudos de direito adequava-se antes
de tudo a uma sociedade fundada na supremacia de normas genéricas e abstratas,
em que o direito, confundido com as regras dos códigos, possuía um papel
destacado na organização e na representação social. Neste contexto, o ensino
dispensado pelas Faculdades de Direito, intérpretes dos códigos, correspondia
significativamente à prática social. Entretanto, essas condições alteraram-se
com o tempo, denunciando um cada vez maior descompasso entre as regras dos
códigos e a realidade social, sobretudo em sociedades marcadas por profundas
desigualdades, como a nossa, o modo jurídico de regulação social encontrando-se
em conseqüência afetado. Não só, para indicar apenas alguns elementos desta
crise, a intervenção progressiva do Estado nos domínios econômico, social e
cultural, entre outros, no âmbito de um Estado do Bem-Estar Social, enfraquecendo
inclusive o tradicional princípio de legalidade da sociedade liberal, mas
principalmente as dificuldades crescentes de o direito resolver a contento
conflitos que não são necessariamente ou exclusivamente interindividuais, mas
cada vez mais supra-individuais ou intergrupais. Lembre-se contudo a esse
propósito que a Constituição de 1988 reconheceu e ampliou o papel dos
denominados "novos sujeitos sociais".
A crise do direito, que se traduz em um fenômeno
multifacetado, talvez possa ser melhor percebida através da crise do ensino do
direito. Assim, as discussões sobre a reforma dos estudos jurídicos serviriam
de revelador da crise do direito. Afinal, a crise do direito não é antes de
tudo uma crise do conhecimento jurídico? Nesta perspectiva, o ensino do direito
não pode constituir-se em lugar privilegiado de resposta à crise do direito?
3. Crise do Direito
Mas, quando falamos em crise do direito, de qual crise do
direito falamos ou, também, da crise de qual direito falamos? Finalmente, de
quais elementos dessa crise do direito falamos? Sem esgotar o exame da matéria,
conviria sumariamente chamar a atenção para alguns aspectos da crise do
direito, cada um deles podendo ser objeto de amplos desenvolvimentos.
3.1. descompasso do direito com relação à realidade,
problema estrutural;
3.2. crise do direito como expressão da crise da
modernidade e da crise dos paradigmas;
3.3. crise da universalidade do direito: superação
do etnocentrismo (ver, por exemplo, em matéria de direitos humanos ou de
direitos fundamentais, a diversidade das representações do universal);
3.4. crise do direito estatal e fenômeno do
pluralismo jurídico: "a existência, no seio de uma sociedade determinada,
de mecanismos jurídicos diferentes aplicando-se a situações idênticas"
(VANDERLINDEN, Jacques, Le Pluralisme Juridique – Essai de synthèse, in Le
Pluralisme Juridique, Editions de l’Université de Bruxelles, Belgique,
1972, p. 19);
3.5. surgimento de ordens jurídicas paralelas: as
"entidades caóticas ingovernáveis" (DE RIVERO, Oswaldo, Les entités
chaotiques ingouvernables, in Le Monde Diplomatique, Paris, abril de 1999,
p. 3: "As ECI distinguem-se pela impotência de o Estado manter sob seu
controle o território nacional e sua população. Amplos setores da economia, das
cidades, das províncias e das regiões caem sob o jugo dos novos mestres da
guerra, dos narcotraficantes ou das máfias. A legalidade, a ordem pública e os
esboços de sociedade civil volatizam-se".);
3.6. crise do modo jurídico de regulação social em
face da emergência do modo "midiático" de regulação social;
3.7. crise do princípio de legalidade, já referido;
3.8. crise do próprio Estado de Direito, levando ao
desequilíbrio entre os poderes;
3.9. crise da soberania estatal em decorrência do
processo de globalização;
3.10. crise da codificação ou a "era da
descodificação";
3.11. crise do paradigma privatista, também já
referida: a percepção de que os conflitos jurídicos não são necessariamente ou
exclusivamente interindividuais, mas cada vez mais supra-individuais ou
intergrupais; a expansão do "direito social";
3.12. tentativas de subsunção do tempo do direito,
que é um tempo diferido, ao tempo da economia, que é um tempo real ou
instantâneo;
3.13. flexibilização do direito, sobretudo no
âmbito do direito do trabalho, na perspectiva de um direito mínimo;
3.14. crise do próprio ensino jurídico como reflexo
da crise do direito, mas alimentando-a e potencializando-a (ver, por exemplo,
as dificuldades de adaptação do ensino jurídico às rápidas mudanças do
direito);
3.15. crise do Judiciário: entre outros, o problema
do acesso à justiça em face de demandas sociais crescentes.
4. Investir na Qualificação do Ensino Jurídico
4.1. Considerações Preliminares
a) dados referentes aos cursos jurídicos:
- Brasil: 320 cursos jurídicos e 43.000 bacharéis (Jornal
do Conselho Federal OAB, Junho 1999)
- Rio Grande do Sul: 34 cursos jurídicos (20 instituições
de ensino superior) e 3482 bacharéis (Zero Hora, 06/10/99)
b) consciência da necessidade de implementarem-se
instrumentos objetivando uma maior qualificação dos cursos jurídicos: trabalho
da Comissão de Especialistas de Ensino de Direito (CEED) da SESu/MEC e da
Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB e papel da Portaria nº
1886 de 30/12/94 do MEC.
4.2. Mecanismos de Avaliação dos Cursos
Jurídicos:
a) Avaliação Interna por parte das próprias instituições;
b) Avaliação Externa através de inúmeros mecanismos, entre
os quais os seguintes:
- Avaliação das Condições de Oferta dos Cursos de Direito
(Plano Global de Avaliação Externa dos Cursos Jurídicos), sob responsabilidade
das Comissões de Visita e Avaliação Externa dos Cursos Jurídicos, considerando
Corpo Docente, Organização Didático-Pedagógica e Infra-Estrutura, de iniciativa
da SESu/MEC (Lei nº 9131 de 24/12/95, art. 3º, e Decreto 2026 de 10/10/96,
arts. 1º, III, 5º e 6º), talvez o mais completo;
- Exame Nacional de Cursos, o denominado
"Provão", promovido pelo INEP/MEC (Lei nº 9131 de 24/12/95, art. 3º,
e Decreto 2026 de 10/10/96, arts. 1º, III, 5º e 6º);
- Exame de Ordem, de iniciativa da OAB (Lei nº 8906 de
04/07/94, art. 8º, IV e § 1º) , que não abarca a totalidade dos egressos;
- Ranking das Melhores Faculdades de Direito do País,
promovido pela Revista Playboy, de caráter mais seletivo.
4.3. Controle da Criação dos Cursos Jurídicos:
a) inicialmente, foi editado o Decreto nº 2207 de
15/04/97, revogado pelo Decreto nº 2306 de 19/08/97, que o substituiu;
b) nos termos do art. 17 do Decreto nº 2306 de 19/08/97,
"a criação e o reconhecimento de cursos jurídicos em instituições de
ensino superior, inclusive universidades, dependerá de prévia manifestação do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil".
Tratando-se de universidades ou de centros universitários
credenciados, a manifestação favorável do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil dispensará a análise do Conselho Nacional de Educação (§
4º). No mesmo caso, a manifestação desfavorável do Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil será submetida ao Conselho Nacional de Educação, que
deverá emitir parecer conclusivo, dependente ainda de homologação do Ministro
de Estado da Educação e do Desporto (§§ 5º e 6º);
c) impõe-se a utilização da Portaria nº 1886 de 30/12/94
do MEC, ou de diploma análogo, como critério para a autorização de novos cursos
jurídicos.
5. Conclusão:
5.1. elementos que podem vir a comprometer a
almejada qualificação dos cursos jurídicos:
- persistência de deficiências no ensino fundamental e no
ensino médio, problema estrutural;
- proposta de cursos seqüenciais, previstos no art. 44, I,
da Lei nº 9394 de 20/12/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional);
- proposta de programas de educação à distância, previstos
nos arts. 80 e 47, § 3º, da Lei nº 9394 de 20/12/96 (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional): possibilidade de cursos, tanto de graduação como de
pós-graduação, nas modalidades semi-presencial, à distância e mesmo "on
line"(ver proposta de Curso de Mestrado da Escola Nacional da Magistratura
– ENM, órgão vinculado à Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB);
- proposta de mestrados profissionais ou
profissionalizantes, regulamentada pela Portaria nº 80 de 16/12/98 do MEC
- proposta de cursos presenciais de especialização,
regulamentada pela Resolução nº 3 de 05/10/99 da Câmara de Educação Superior do
Conselho Nacional de Educação;
- proposta de aproveitamento dos alunos dos cursos de
pós-graduação "stricto sensu" como professores nos cursos de
graduação;
- proposta do Plano Nacional de Educação no sentido de
aumentar, em dez anos, a taxa de matrícula no ensino superior, na faixa de
idade de 18 a 24 anos, dos atuais em torno de 12% para 30%.
5.2. importância da Portaria nº 1886 de 30/12/94 do
MEC, cuja legalidade é hoje questionada em face da superveniência da Lei nº
9394 de 20/12/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), ou de
diploma análogo, como instrumento para alcançar-se uma maior qualificação dos
cursos jurídicos;
* Professor
titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFRGS, diretor da
Faculdade de Direito da UFRGS, mestre em Direito Constitucional e Ciência
Política pela Université Paris I.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=43>. Acesso em: 14 jul. 2006.