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Panóptico da contemporaneidade. "Une
surveillance impossibile"
Públio Athayde *
Minha alegoria consiste em me imaginar num grande
Panóptico, estando eu na sua torre central, de onde possa observar todas as
concepções do mundo contemporâneo, as elaborações dos teóricos acerca da
modernidade, as sociedades como elas se constituíram historicamente, os
problemas que há entre as concepções teóricas e a realidade empíricas, a
evolução de tudo isto.
Valho-me da faculdade de ver sem ser visto que me
proporciona o Panóptico para, interpretando e transcrevendo o que vejo, ficar
impune. Ainda assim considero impossível a tarefa proposta: a impunidade que me
proporciona o Panóptico não tem o condão de me permitir observar em toda sua
amplitude as questões que levantei. Considero, da mesma forma, que a análise
tem um vício capital, decorrente ainda da alegoria panoptista: vejo as questões
de maneira estanque, vendo-as em celas, separadas umas das outras, como não se
encontram na realidade, onde elas se imiscuem umas às outras,
interpenetrando-se e inter-relacionando-se de forma complexa, que não pode ser
alcançada nem de muito longe em digressão perfunctória como a que esta proposta
aqui.
Inicio minha observação pelo quadrante em que se situam os
problemas teóricos decorrentes do Modo de Produção vigente e da correspondente
relação entre capital e trabalho.
Capital e trabalho nada mais são que duas formas da mesma
coisa: trabalho; apenas que na forma de capital o trabalho já está morto, já
foi realizado, é passivo; enquanto trabalho propriamente, está latente,
potencial, vivificável. Portanto a relação entre ambos é conjunção de duas
espécies do mesmo gênero.
Posta esta dicotomia, Marx considera-lhe intrínseca uma
alienação. Alienação no trabalho, como atividade produtiva; alienação do
trabalho, como produto da atividade. [01] A esta alienação, por seu
turno, corresponde a divisão do trabalho, especialização das tarefas,
decorrentes do excedente de produção tornado possível com o aprimoramento
técnico. É o principio segundo o qual o homem, por natureza bom, é desvirtuado
pela ação maléfica da sociedade corrupta e corrompedora – "memento"
Hobbes.
Durkheim considera a distribuição dos meios de produção
surgida contemporaneamente geradora de determinada forma de anomia, situada na
esfera jurídica, oriunda da imprecisão das relações entre empregadores e
assalariados. [02] Trata-se da concepção segundo a qual o conflito
se dá em virtude do descompasso entre a realidade social e a evolução
nomotética. Na ausência da lei, o confronto se reinstala, como no estado de
natureza. É o principio segundo o qual o homem, que não é bom por natureza,
carece da lei para lhe possibilitar o convívio em sociedade –
"memento" Rousseau.
O conceito de Weber que tenta dar conta da nova relação de
forças é o de "dominação legal", segundo o qual, com a eliminação dos
sistemas de privilégios da sociedade feudal, instala-se a liberdade de compra e
venda, limitada apenas pela impossibilidade de se comprar a própria liberdade.
O limite de tudo é a lei, o limite da lei é o Direito Natural. O conflito é,
desta forma, restrito pela lei, pela via do Estado e sua burocracia. [03]
A especialização é geradora da burocracia que vem a ser instrumento ativo da
dominação legal.
Ainda que tendo observado apenas ligeiramente este
quadrante, passo a outro, onde se situam as necessidades de vigilância
peculiares à Nova Ordem.
Não sendo mais as relações de fidelidade, ou de fé,
suficientes para manterem a estrutura estabelecida na contemporaneidade,
implantam-se esquemas de "surveillance" sobre os indivíduos e sobre
os grupos. A disciplina, o controle efetivo sobre ponderável número de pessoas,
que desde a antiguidade só se fazia necessário no exército, é requerido para
controlar os trabalhadores, agora agrupados em quantidades cada vez maiores no
interior das fábricas, para controlar as populações, agora aglomeradas em cada
vez maiores concentrações urbanas, pra controlar os estudantes, em escolas que,
a cada momento, passam a receber número maior de alunos egressos de diferentes
camadas da população. Quer-se enfim vigiar tudo e todos, para que os caminhos,
quaisquer que sejam eles, que trilha a sociedade não sejam pervertidos ou
subvertidos.
A vigilância emprega, inicialmente, os recursos de que
historicamente já dispunha. Os mesmos castrenses, os dos sistemas anteriores de
reclusão de diferentes tipos. Adota-os e os adapta. Faz deles uso, procurando
eliminar o abuso. Racionaliza a punição buscando nela a eficiência em
detrimento da vingança. Dá caráter impessoal ao controle, exercido agora em
nome da sociedade e de seus princípios éticos, morais e jurídicos. [04]
O Poder Judiciário se constitui no agente por excelência
da vigilância social. As codificações legais constituem normas mais e mais
positivas, atribuindo relação mais rígida e direta entre crime e castigo,
diminuindo o coeficiente de arbítrio dos juizes. [05]
A sistematização da "surveillance", levada a
cabo em hospitais, presídios, escolas e outras instituições de internamento,
chega a tal ponto que vem a constituir subsídio para a secularização do método
cientifico, transpondo técnicas de acompanhamento, anotação, comparação,
inferência, indução, que se destinavam inicialmente apenas ao controle do
interno, para a pesquisa empírica e a especulação teórica. Esta transposição de
técnicas e conseqüente incremento da ciência enquanto método refletirá
diretamente na produção, na produtividade, possibilitando a ampliação dos
excedentes.
Toda técnica e ciência anexada integra o aparato racional,
ideológico, burocrático, jurídico, implantado na contemporaneidade. [06]
Passo agora a lançar olhos sobre um quadrante deste
Panóptico onde se podem ver os sistemas que se encontram historicamente nas
sociedades, as formas efetivas com as quais as sociedades responderam ao
deságio de reordenar a produção.
Do conflito latente entre a competição do capitalismo,
pura, total, alienante, anômica, contra a democracia plena, igualitária,
participativa, legalista, [07] nascem a democracia competitiva e o
"Welfare State Keynesiano", um sistema que busca compensar as
desvantagens do sistema capitalista pelo assistencialismo estatal, o Estado
passa a se imiscuir na esfera privada, garantindo as pessoas contra as
vicissitudes humanas e sociais: acidentes, desemprego, idade improdutiva,
saúde, calamidades.
Durante um século pelo menos, estes sistemas dão conta,
ora com maior eficácia, ora com menor, de manter em níveis aceitáveis os
conflitos peculiares ao capitalismo.
São ambos sistemas que combinam as lógicas de mercado e a
de autoridade; "voz" e "saída" segundo Hirschan.
Outras sociedades procuraram, por processos revolucionários,
extinguir completamente o conflito oriundo da divisão de propriedade pela
extinção da propriedade privada. Tornando social toda forma de apropriação,
deixaria de haver, segundo a teoria, dicotomia entre classe despossuída e
possuidora. Mas a única via pela qual isto se tornou possível foi pela
revolução, processo pelo qual não passaram todas as sociedades e provavelmente
nenhuma voltará a passar.
A teoria neste sentido previa compulsoriamente o
alastramento global dos processos revolucionários, o que não se deu, ficando
pelo menos por este ponto, incompleta a revolução da extinção formal da
propriedade privada capitalista e, conseqüentemente, da divisão de trabalho que
lhe é inerente. [08]
Duas outras formas de organização podem ainda ser notadas
neste quadrante: o fascismo, que por suas imperfeições é muito efêmero, está
semi-extinto contemporaneamente, e as tecno-burocracias, que eram encontradas
principalmente nas periferias do sistema de WSK, constituindo sistemas
parcialmente integrados ao mercado capitalista, portanto onde há divisão de
classes sociais, mas em que não houve condições para ser implantado o sistema
assistencial efetivo, pelo que se torna necessário implantar o sistema
autoritário para conter o conflito social decorrente das imperfeições do
mercado de trabalho.
Por fim, para completar todo o rápido giro da torre de meu
Panóptico, viso o quadrante onde se contornam as silhuetas da evolução que tudo
o que foi observado nos quadrantes anteriores tem tido.
Os conflitos teóricos têm se tornado menos ideológicos,
menos radicais, no sentido em que a busca pelo conhecimento não tem tido mais a
forte conotação política e político partidária. A adoção, ou mesmo o emprego
menos comprometido de um campo conceitual ‘X’ ou ‘Y’ já não implica necessariamente,
nesta ou naquela filiação partidária.
Todo sistema de vigilância está hoje informatizado, da
mesma forma todo o aparato científico e tecnológico. A produção tem sido
fortemente beneficiada por este fenômeno que é a robotização, a produtividade
idem.
O WSK está esgotado em seus vícios, o limite do
assistencialismo atingiu daquele da tolerância tributária, [09] o
limite da capacidade contributiva. A incompetência do Estado Socialista para a
gestão burocrática da produção fez que os paises que passaram por processos
revolucionários buscassem novas soluções, menos radicais que a total
desprivatização. [10] Os regimes burocráticos, pelo menos em sua
maior parte, se aproximaram-se de formas menos autoritárias, abriram-se.
Por fim, a própria evolução esta evoluindo, dá-se cada vez
com maior velocidade, agilidade.
Como sempre, tudo está em mutação na sociedade
contemporânea
Eis que não fiz o que desde o principio confessei
impossível: abordar com maior pertinência todos os temas contemporâneos,
tratados em uma infindável bibliografia, num curto correr de olhos.
Creio que assim seja o Panóptico: uma tentativa,
previamente fadada ao insucesso, de compreensão ampla de uma realidade.
E com a minha miopia, não pude ver além de um mundo que é
o mesmo de sempre e de antes: superadas as grandes questões dos séculos XIX e
XX, voltamos às medievais, em que a racionalidade dá lugar às questões de fé
que exalam odores pútridos, mais facilmente perceptíveis pelos menos dotados de
visão.
Notas
01 Giddens, Anthony. Capitalismo e moderna
teoria social. Uma análise das obras de Marx, Durkheim e Max Weber. Lisboa:
Editorial Presença, Lda, 1984. p. 306.
02 Durkheim, Emile. A divisão do trabalho
social. Lisboa: Editorial Presença, Lda, 1984. Prefácio à segunda edição. P. 7
ss.
03 Bendix, Reinhard. Max Weber, um perfil
intelectual. Brasília: UNB, 1986. Passim.
04 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. Petrópolis: Vozes, 1988. Cap. II e III.
05 Castel, Robert. "Os Médicos e os
Juízes" in: Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e
meu irmão, … um caso de parricídio do século XIX, apresentado por Michael
Foucaut. Rio de Janeiro: Graa, 1984. p. 229/75.
06 Habermas, Jurgen. "Técnica e ciência
enquanto ideologia". In: Textos escolhidos / W. Benjamin, M.
Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. São Paulo: Abril Cultural 1983. (Os
Pensadores) p. 313/43.
07 Offe, Claus. "A Democracia Partidária
competitiva e o ‘Welfare State’ Keynesiano: Fatores de Estabilidade e
Desorganização. In: Offe, Claus. Problemas estruturais do estado
capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 356/86.
08 Bahro, Rudolf. A alternativa para uma
crítica do socialismo real. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. (Col. Pensamento
crítico; v. 42) Primeira parte.
09 Offe, C. Idem.
10 Bahro, R. Idem, Segunda parte.
* Historiador (UFOP) e
cientista político (UFMG), professor titular da Faculdade de Ciências Humanas
de Pará de Minas.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8515>. Acesso em: 17 jun. 2006.