Uma análise jurídica
sobre o "processo dos Távora"
Francisco Carlos Távora
de Albuquerque Caixeta *
No ano de 1758, o rei português D. José I foi vítima de um atentado
dentro de seu próprio país. A partir daí, sob a acusação da prática dos crimes
de Traição e Lesa-Majestade, procedeu-se uma perseguição a membros de algumas
das principais famílias da nobreza de Portugal, especialmente o Duque de Aveiro
e o Marquês de Távora. Tal perseguição culminou num julgamento de cunho
político repleto de irregularidades jurídicas e numa execução bárbara com
requintes de crueldade que entrou para a história como "O Processo
dos Távora".
"O Processo dos Távora", igualmente cognominado de "O
Caso dos Távoras" é um episódio histórico muito famoso em Portugal,
mas que permanece até os presentes dias cercado de lacunas e pontos obscuros
tanto do ponto de vista fático quanto jurídico.
Como se trata de um acontecimento praticamente desconhecido no Brasil e
pelo fato de aqui serem residentes e domiciliados vários descendentes das
famílias envolvidas nessa tragédia, pareceu-me oportuno escrever a respeito do
tema.
A história remonta o ano de 1750, quando El-Rei Nosso Senhor de Portugal,
D. João V (tratamento conferido aos reis da época) nomeou D. Francisco de Assis
(o Marquês de Távora), para o cargo de Vice-Rei da Índia. Assim, em março
daquele ano o Marquês de Távora partiu para a Índia com o intuito de
representar a Coroa Portuguesa naquele país, acompanhado de sua esposa D.
Leonor Tomásia de Távora [01] (a Marquesa de Távora) e seus filhos
Luís Bernardo (o Marquês-novo) e José Maria, deixando em Portugal suas duas
filhas casadas e a esposa de Luís Bernardo, Teresa de Távora e Lorena (a
Marquesa-nova).
Enquanto D. Francisco de Assis estava em Goa, na Índia, o rei D. João V
faleceu, assumindo o trono o até então príncipe D. José (agora El-Rei D.José
I).
Ao regressarem a Portugal, após quatro anos de bem sucedido governo de D.
Francisco de Assis na Índia, os Marqueses de Távora foram informados por amigos
e parentes que a esposa de Luís Bernardo de Távora, D. Teresa de Távora
[02] havia se tornado a amante preferida do rei D. José I, e que esse
relacionamento amoroso adulterino já era de conhecimento público. Indignada com
a situação, D. Leonor passou a pleitear a anulação canônica do casamento de seu
filho Luís Bernardo e exigiu que o mesmo não mais convivesse maritalmente com
D. Teresa.
A posição radical adotada pela Marquesa de Távora em relação ao casamento
do filho mais velho, aborreceu extremamente o rei D. José I, o qual mandou seu
principal ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, tentar convencer os
Marqueses de Távora de que D. Teresa deveria retomar a vida conjugal normal com
o marido Luís Bernardo de Távora. Contudo, os Marqueses se mostraram
irredutíveis. Posteriormente, o próprio rei D. José I solicitou pessoalmente a
D. Francisco de Assis que fosse relevado o "suposto affair" de
D. Teresa com aquele regente em troca de favores e títulos no governo, mas D.
Francisco de Assis recusou a proposta do rei, irritando-o mais profundamente
ainda.
Pouco tempo depois, em 1º de novembro de 1755, dia de feriado religioso
católico português denominado "Dia de Todos os Santos", a cidade de
Lisboa (capital do Império Português) sofreu um terrível terremoto que destruiu
casas, igrejas, edifícios e palácios, e que foi sentido inclusive em outras
cidades do Reino. Não se tratou de mais um dos tantos abalos sísmicos a que os
europeus estavam acostumados, mas sim o pior da história do velho continente já
registrado. Além do terremoto, Lisboa foi inundada por um grande maremoto e
depois ficou ardendo em chamas durante seis dias.
Os membros do clero de Portugal encararam essa catástrofe natural como
uma revolta de Deus em relação aos amores adulterinos do rei D. José I e de sua
política de governo, da qual era figura fundamental o ministro Carvalho e Melo.
Um dos sacerdotes mais exaltados foi o padre Gabriel Malagrida, o qual chegou a
escrever um manifesto intitulado "Juízo da Verdadeira Causa do
Terremoto" descrevendo o cataclismo como punição divina aos pecados dos
governantes do país e profetizando novos desastres se os culpados continuassem
a agir daquela forma; o que provocou a ira do rei e do ministro Carvalho e
Melo.
É imperioso mencionar que o rei D. José I não gostava de governar e
delegava a maioria de seus poderes, principalmente para o seu ministro de
confiança Sebastião José de Carvalho e Melo (o qual futuramente foi nomeado
Marquês de Pombal [03]). Desse modo, determinados membros da nobreza
começaram a se incomodar com o fato de uma pessoa considerada de origem
inferior a deles deter cada vez mais poder prestígio e importância no Reino.
Foram nessas circunstâncias que se esboçou um movimento palaciano
contestatório, encabeçado pelo desembargador Costa Freire, com o fulcro de
derrubar o governo e substituí-lo por outro, a ser constituído por alguns
membros da nobreza portuguesa.
Posto isso, em 03 de setembro de 1758, deu-se o incidente que mudou a
história. Nessa noite, o rei D. José I saiu secretamente para uma breve visita
a sua amante predileta, D. Teresa de Távora. Tanto era secreto esse encontro
que alguns dias antes o rei havia decretado luto oficial no país em virtude da
morte de sua irmã Maria Bárbara, ex-rainha da Espanha; fato esse que impedia as
saídas dos membros da Família Real do Paço que habitavam em Belém, depois do
terremoto em Lisboa. Desse modo, o rei não se serviu da carruagem nem da
escolta reais.
Ao retornar do encontro com a Marquesa-nova, o monarca tomou a estrada de
volta ao Paço, quando por volta das onze e meia da noite, homens encapuzados
abriram fogo de clavina e pistola sobre a carruagem que transportava o
soberano, ferindo-o no ombro e braço direitos, bem como nas costas. Contudo, o
cocheiro conseguiu escapar levando o rei até a casa do Marquês de Angeja
[04], na Junqueira, onde permaneceu até o amanhecer, quando regressou ao
Paço numa carruagem real e escoltado por um corpo de Dragões.
Depois do ocorrido, o rei D. José I ordenou que o ministro Carvalho e
Melo procedesse a uma investigação sobre o atentado [05] com o
intuito de apenar os culpados. Sendo assim, o aludido ministro se aproveitou da
situação utilizando o atentado sofrido pelo monarca como pretexto para deflagrar
um processo de perseguição aos maiores opositores deles (ou seja, pessoas
contrárias ao rei e ao ministro), culpando e incriminando setores do clero e da
nobreza pelos crimes de Traição e Lesa-Majestade.
As principais retaliações sofridas pelo clero foram à queda da Companhia
de Jesus, o encarceramento de figuras exponenciais do alto e baixo clero e até
mesmo a morte de alguns deles.
Por sua vez, no que tange à nobreza, foi criado expressamente para julgar
as pessoas as quais se atribuíam à culpa da tentativa de regicídio um órgão
denominado Tribunal da Inconfidência; porém os juízes encarregados do caso
jamais lograram provar substancialmente uma inteira e líquida culpabilidade dos
réus, pois as provas eram tão fracas e inconsistentes que às vezes nada mais
eram do que deduções extraídas do que indivíduos teriam dito ou ouvido pelas
ruas, e as confissões obtidas de alguns réus teriam sido conseguidas por
intermédio de coação física.
É nesse contexto que deve ser analisada a confissão do Duque de Aveiro, o
qual sob tortura chegou a confessar muito mais do que lhe fora perguntado,
implicando na conjura todos aqueles que sabia terem caído no desagrado do Rei e
de seu todo-poderoso ministro. Por conseguinte, asseverou que o desacato havia
sido cometido por instigação dos padres jesuítas, tendo como cúmplices os
nobres Marquês de Angeja, o Conde de Avintes, os Condes da Ribeira Grande,
Óbidos e São Lourenço, os Marqueses de Távora pai e filho, José Maria de Távora
e o Desembargador Costa Freire [06]. Todavia, por ordem do ministro,
o conteúdo dessa "confissão" não serviu para incriminar a totalidade
das pessoas nele envolvidas, mas apenas as que lhe interessavam.
Ademais, a Marquesa Leonor de Távora nunca esteve presente no Tribunal e
sequer foi inquirida pelos juízes, pois nem se sabia que ela estava entre os
acusados. De fato, só quando o desembargador Eusébio Tavares de Sequeira (o
qual houvera sido incumbido pelo próprio rei de proceder à defesa dos
inculpados) requereu a Carvalho e Melo os quesitos do processo e inculpação
para redigir tal defesa, é que o ministro lhe comunicou que ela era um dos
principais acusados.
Vale ressaltar a incrível celeridade com que ocorreram os derradeiros
atos da marcha processual, pois a defesa dos réus foi entregue no dia 11 de
janeiro de 1759 às quatro horas da tarde e nesse mesmo dia a Junta conclui os
autos e requereu ao rei permissão para agravar as penas previstas em lei. No
dia 12, foi concluída a devassa, redigida a sentença, comunicada aos réus e
executada na manhã do dia 13.
Destarte, o julgamento em tela foi em tudo contrário às leis e a justiça,
mesmo porque consoante o escritor português Luiz Lancastre e Távora [07]
há registros de que a sentença já se encontrava previamente lavrada antes mesmo
do término do julgamento. Tanto isso é verdade que nem os juízes cuidaram em
averiguar um único fato alegado pelos réus em sua defesa ou em inquirir uma só
testemunha por eles oferecidas.
Não obstante, passa-se, enfim, à parte das sentenças: ao Duque de Aveiro
e ao Marquês de Távora pai seria aplicada a pena de serem rompidos em vida,
quebrando-lhes os ossos das pernas, braços e peito a golpes de maça, estando
seus corpos atados às rodas, após o que seria queimados, sendo as cinzas
jogadas ao mar. D. Leonor teria a cabeça decepada à espada pelo carrasco, o
qual após expor a cabeça ao povo deveria queimá-la juntamente com o restante do
corpo e lançar as cinzas ao mar. O Marquês Luís Bernardo, José Maria Távora e o
Conde de Atouguia seriam logo garrotados e só depois quebrados os ossos das
pernas e braços, antes de serem seus corpos lançados na mesma fogueira que os
predecessores. Pena igual aplicar-se-ia aos criados Manuel Álvares e João
Miguel, assim como ao cabo Brás Romeiro. António Álvares e José Policarpo de
Azevedo seriam atados em postes altos e queimados em vida, tendo suas cinzas o
mesmo destino das dos outros réus. Além disso, todos foram condenados a
desnaturazilação de Portugal, exautoração das honras e privilégios da nobreza a
que tinham direito e total confisco de bens.
Ademais, no tocante especificamente à família Távora, ficava de futuro
proibido o uso do sobrenome Távora; determinava-se que suas armas fossem
picadas e raspadas onde quer que se encontrassem; o restante das mulheres
deveriam ser separadas dos filhos (os quais ficavam obrigados a professar) e
encerradas em conventos; e suas casas arrasadas e salgados os chãos onde se
erguiam para eterna lembrança desse castigo.
A execução da sentença ocorreu no sítio de Belém, no chamado Cais Grande,
onde se construiu especialmente para tal feito um alto e grande patíbulo
[08] todo em madeira sobre o qual se encontravam os postes, as rodas, as
aspas e todos os outros apetrechos necessários a sua realização; e onde até
hoje existe um pelourinho.
À luz do exposto, percebe-se que todo o processo foi uma farsa, levada a
cabo para ocultar, sob uma aparência de legalidade, uma das mais atrozes
vinganças pessoais e uma política de governo autocrática e absoluta,
constituindo-se "O Processo dos Távora" num ato meramente
político e sendo o Tribunal da Inconfidência tão-somente um instrumento da
política pombalina.
Alfim, faz-se-mister ressaltar que após a morte do rei D. José I e da
saída do Marquês de Pombal do governo português, a nova rainha D. Maria I
ordenou que se procedesse a um inquérito sobre a atuação do ex-ministro e
consentiu na revisão do processo dos Távora. Nesse sentido, os juízes que
examinaram a petição de revisão da sentença condenatória dos Marqueses de
Távora, filhos e genro, o Conde de Atouguia, consideraram -lhes inocentes face
às provas que haviam sido usadas para incriminá-los; reabilitando-se a Memória
da família Távora e devolvendo-se, na medida do possível, os títulos e bens a
que tinham direito.
Notas
01 Leonor Tomásia de Távora e Francisco de Assis eram primos
legítimos entre si e tiveram o casamento arranjado desde cedo pelos respectivos
pais (como era de praxe na época). Ela era herdeira da Casa dos Távoras e ele
era filho do Conde de Alvor. Desse matrimônio nasceram 13 filhos, dos quais 09
pereceram em tenra idade, sobrevivendo só dois homens e duas mulheres, a saber:
Mariana Bernarda de Távora (primeiro rebento do casal), Luís Bernardo de Távora
(o primeiro filho homem do casal), José Maria de Távora e Leonor de Lorena e
Távora.
02 Teresa de Távora e Lorena (a Marquesa-nova) era filha do
Conde de Alvor (portanto, irmã de Francisco de Assis) e nasceu com poucos dias
de diferença de Luís Bernardo. Assim, em tom de jocosidade, o Conde de Alvor
dissera que deveria ficar desde logo aprazado o casamento da tia com o sobrinho
legítimo; o que para a desgraça da família realmente viera a se concretizar em
1742.
03 O título de Marquês de Pombal foi instituído em benefício
de Sebastião José de Carvalho e Melo por decreto do rei D.José I em 16 de
Setembro de 1769.
04 O qual era cunhado do rei D. José I.
05 Na realidade, nunca se descobriram as verdadeiras pessoas
nem motivações envolvidas por trás daquele incidente, existindo diversas
teorias a respeito. Pessoalmente, filio-me a corrente que sustenta trata-se o
atentado ao rei D. José I de uma simples tentativa de assalto, muito comum
àquela hora e local.
06 O qual já havia sido castigado há bastante tempo com o
desterro para Angola, na África.
07 D. Leonor de Távora. O Tempo da Ira. O Processo dos
Távora, 3.ed., Lisboa: Quetzal, 2003. (Livro que serviu de base à
redação do presente artigo).
08 Concluída com êxito a execução da sentença, fora ateado
fogo no patíbulo, transformando-o em uma enorme fogueira e fazendo com que a
maior parte das cinzas dos mortos sujassem casas e telhados já distantes, na
Junqueira e Ajuda.
* Advogado em Belém (PA).
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7669>. Acesso em: 12 jun. 2006.