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Kant e o tuiuiú:
o Direito pela revolução copernicana em Kant.
Abordagem
crítica
Joelson de
Campos Maciel
Promotor de Justiça
em Cáceres (MT)
O maior pássaro que povoa o
Pantanal é o tuiuiú.
Mas,
que comparação da filosofia kantiana poderíamos fazer com tal ave?
O
tuiuiú, para prevenir o intenso calor que sofremos nessa região do centro-oeste
sempre faz o seu ninho a uma altura considerável do solo e, via de regra,
procura abrir as suas asas sobre os filhotes nas horas mais terríveis de calor,
além de trazer-lhes água pelo seu imenso bico.
Pois
bem, o nosso pássaro sempre conhece qual a melhor posição para colocar o seu
ninho, ou seja, possui uma visão do todo para poder sobreviver às agruras do clima
pantaneiro.
Assim,
uma das ferramentas que o tuiuiú usa para proteger a prole é o instinto ou
intuição. Com efeito, ele não pode elaborar qualquer tipo de juízo de valor
sobre os raios solares ou o tempo que estes ficam em incidência direta sobre os
seus pobres filhotes.
Ele
simplesmente escolhe o melhor lugar na árvore e deixa que as suas próprias asas
sirvam de anteparo para o sol.
Qual
o conhecimento que ele teria de um fenônemo tão complexo?
Poderíamos
supor que o tuiuiú tem um conhecimento a priori dos efeitos dos raios
solares ao ponto de elaborar esse mecanismo de defesa?
Ou
seria necessário uma mortandade de sua prole para aprender a lição para as
gestações futuras?
Kant
explica.
Emanuel
Kant (ou Immanuel Kant, se formos preciosistas) nasceu em Königsberg, Prússia,
em 1724. Foi educado no pietismo, isto é, seita religiosa que, como os
metodistas da Inglaterra, insistia na plena rigidez e no pleno rigor da prática
e de crença religiosas. Formou-se em filosofia na universidade natal, onde em
seguida, lecionou a mesma matéria. Faleceu em 1804.
A
história do pensamento kantiano distingue-se em um período pré-crítico: antes,
científico-newtoniano, depois, dogmático-racionalista, enfim, cético-empírico;
e em um período crítico, durante o qual Kant publica as suas grandes obras
críticas: a Crítica da Razão Pura (1781); a Crítica da Razão Prática (1788); a
Crítica do Juízo (1790).
Com
efeito, a análise crítica do autor é o ponto que nos interessa, na medida em
que "o criticismo" representa a síntese especulativa do fenomenismo
racionalista e empirista modernos, donde derivará o idealismo modermo e, em
geral, o pensamento contemporâneo.
Como
fundador do criticismo, Emanuel Kant, vem a ser, portanto, o centro da
filosofia moderna. O criticismo quer limitar a capacidade do conhecimento, não
quanto à sua extensão, mas quanto à sua justificação em si. Porém, na medida em
que esse exame da razão por ela mesma deve ser público, ou seja, capaz de se
confrontar ao pensamento e às práticas de outro, parece que a conduta crítica é
o único meio de evitar tudo o que se assemelha à dissimulação, ao secreto e ao
egoísmo: corresponde então com muita precisão à faculdade de legiferar
universalmente que a razão é por definição.
Na
primeira crítica de Kant, Crítica da Razão Pura, ele propõe que a
verdadeira composição do conhecimento está na possibilidade de se obter a
"síntese a priori" e que, por isso, tudo está no descobrir qual é o
fundamento que torna possível a "síntese a priori".
Resolvendo-se
o seu real fundamento, pode-se igualmente solucionar as possibilidades do
conhecimento científico (ou seja, o verdadeiro conhecimento).
Ocorre
que tal conhecimento compõe-se fundamentalmente de proposições ou de juízos
universais e necessários e, ainda por cima, incrementa continuamente o
conhecer.
Mas,
que tipos de juízos são aqueles de que se vale o conhecimento?
Até
então, havia-se tentado explicar o conhecimento supondo que o sujeito deveria
girar em torno do objeto, assim, no Direito, teríamos que o homem ao observar
os fatos, faz deles normas gerais para todo o Estado.
Mas
e se invertêssemos os pólos, já que muitas das questões jurídicas permaneciam
inexplicáveis?
Kant,
então, inverteu os papéis, supondo que o objeto é que deveria girar em torno
do sujeito. Copérnico havia feito uma revolução análoga: como, mantendo a
Terra firme no centro do universo e fazendo os planetas girarem em torno dela,
muitos fenômenos permaneciam inexplicados, ele pensou em mover a Terra e
faze-la girar em torno do Sol. Deixando de lado a metáfora, Kant considera que
não é o sujeito que, conhecendo, descobre as leis do objeto, mas sim, ao
contrário, que é o objeto, que é conhecido, que se adapta às leis do sujeito
que o recebe cognoscitivamente.
Deixamos
Kant falar por si, numa página que abriu uma nova época no filosofar e que teve
conseqüências de alcance histórico e teórico incalculáveis: "Até agora,
admitia-se que todo nosso conhecimento se devia regular pelos objetos, mas
todas as tentativas de estabelecer em torno deles alguma coisa a priori, por
meio de conceitos, com os quais se teria podido ampliar o nosso conhecimento,
assumindo tal pressuposto, não conseguiram nada. Portanto, finalmente, faça-se
a prova de ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica
formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso
conhecimento, o que se coaduna melhor com a desejada possibilidade de um
conhecimento a priori, que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes
que eles nos sejam dados. Aqui, é exatamente como na primeira idéia de
Copérnico, que, vendo que não podia explicar os movimentos celestes admitindo
que todo o exército de astros girasse em torno do espectador, tentou ver se não
teria melhor êxito fazendo girar o observador e deixando os astros em repouso.
Ora, na metafísica, pode-se pensar em fazer uma tentativa semelhante
(...)" (1).
Com
a sua "revolução", portanto, Kant supôs que não é a nossa intuição
sensível que se regula pela natureza dos objetos, mas que são os objetos que se
regulam pela natureza de nossa faculdade intuitiva. Comparativamente, Kant
supõe que não é o intelecto que deve se regular pelos objetos para extrair os
conceitos, mas, ao contrário, que são os objetos, enquanto são pensados, que se
regulam pelos conceitos do intelecto e se coadunam com eles.
Em
suma: "das coisas, nós só conhecemos a priori aquilo que nós mesmos
nelas colocamos" (2).
Agora,
então está claro qual é, para Kant, o fundamento dos juízos sintéticos a priori
(3): é o próprio sujeito que sente e pensa, ou melhor, é o sujeito com as
leis da sua sensibilidade e do seu intelecto.
Por
derradeiro, cumpre analisar qual o sentido mais próprio do termo
"transcendental", que atravessa de um lado a outro a Crítica da
razão pura e que tem importância basilar.
Kant
usa esse termo com muita freqüência, definindo-o como: "Chamo
`transcendental` todo conhecimento que não se relaciona com objetos, mas sim
com o nosso modo de conhecer os objetos, enquanto for possível a priori"
(4).
Os
modos de conhecer os objetos a priori pelo sujeito são a sensibilidade e o
intelecto; portanto, Kant chama de transcendentais os modos ou as estruturas da
sensibilidade e do intelecto. Essas estruturas, portanto, enquanto tais, são a
priori, precisamente porque são próprias ao Sujeito e não do objeto, mas são
estruturas de tal natureza que representam as condições sem as quais não é
possível nenhuma experiência de nenhum objeto.
O
transcendental, portanto, é a condição de se conhecer os objetos.
Ora,
para a metafísica clássica, transcendentais eram as condições do ser enquanto
tal, ou seja, aquelas condições sem as quais o próprio objeto deixa de existir.
Depois da revolução proposta por Kant podemos ver que existe somente o
objeto-em-relação-ao-sujeito: transcendental é aquilo que o Sujeito põe nas
coisas no ato mesmo de conhece-las.
Pois
bem, mudando o foco para o processo de positivação das normas jurídicas,
percebemos que igual revolução copernicana existe no Direito.
Conhecimento
transcendental podemos denominar a forma como os fenômenos sociais são
assimilados pelo sujeito, ou legislador, e este aplica a sua razão para poder
normatiza-los com a melhor identidade possível ao perfil do Estado que se vive.
Interessante
notar que, assim como Kant afirmou, não podemos ser ingênuos em acreditar que
uma norma surge com interesses neutros e potencialmente bons, bem ao critério
de Rosseau.
As
normas existem a partir do estado de formação e dominação do Estado em
positivar e organizar aquele agrupamento social.
Pela
análise exterior do fenômeno, o uso da força existe não somente para tornar
imperativo o Direito, mas também para dar razão e uniformidade aos seus
parâmetros.
Assim,
uma constituição democrática busca seu fundamento de validade não na norma em
si, como se fosse um objeto isolado que irradiasse todo o seu conceito
imanente, mas no próprio movimento histórico que cria e instala tal regime.
Com
efeito, a hermenêutica jurídica ganha muito com a filosofia kantiana na medida
em que não se distancia tanto do seu objeto de conhecimento, seja ele o fato
social ou a norma. Isso porque reconhece que o sujeito que analisa o fenômeno
jurídico escolhido também participa do processo de conhecimento não somente com
a sua sensibilidade, mas também com a própria razão em interpretar e subjetivar
o fenômeno que, diga-se ao final, passa a ser transcendental pelo efeito erga
omnes.
Destarte,
o nosso pássaro tuiuiú ao usar a sua sensibilidade sobre os efeitos dos raios
do sol joga neles parte de si, a sua marca característica de proteção (abrindo
as asas, por exemplo) e faz com que aquele objeto de "conhecimento",
se é que podemos usar esse termo a uma ave, seja sempre conhecido a priori
como perigoso aos seus filhotes, mesmo que não tenha sofrido nenhuma baixa na
família.
Em
suma, se reconhecermos que somos parte no processo de interpretação do mundo,
incluindo ai o universo jurídico, poderemos assimilar melhor o seu conteúdo e
forma, sem precisar nos escondermos no sistema, imputando-lhe toda culpa dos
nossos fracassos.
Se
reconhecermos que somos parte do processo de interpretação do Direito,
conheceremos melhor a nós mesmos....
Está
lançado o desafio.
O
exemplo já temos....
Notas
01.
Kant, Imannuel. Crítica da Razão Pura.. Apud Reale, Giovanni e Anteseri, Dario. História da
Filosofia. Vol. II, 1990. São Paulo, Paulus Editora. P. 876/877.
02.
Kant, Imannuel. Crítica da Razão Pura. Apud. Op. Cit. P. 877.
03.
"juízos sintéticos a priori" são os originados da experiência do
sujeito, portanto, sempre ampliam o conhecimento. Mas não se trata de
experiência pura e simples, mas sim se refere a razão que encontra na natureza
aquilo mesmo que nela coloca. Kant cita o exemplo do triângulo isósceles de
Tales. Assim, Tales "descobriu" que para descrever aquela nova forma
geométrica não precisava seguir passo a passo aquilo que via na figura e nem se
apegar ao simples conceito dessa figura como que para apreender as suas
propriedades, mas que, por meio daquilo que, pelos seus próprios conceitos,
pensava e representava que devia produzi-la e que, para saber com segurança
alguma coisa a priori, não deveria atribuir a essa coisa senão aquilo que
brotava necessariamente daquilo que, segundo o seu conceito, ele próprio lhe
havia posto. Em resumo, a Geometria nasceu quando Tales compreendeu que ela era
uma criação da mente humana e que não dependia de nada mais além da mente humana.
04. Op. Cit. P. 877.
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