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Kelsen e a Teoria Pura do Direito

(O)posição crítica

 

 

 

 

 

 João Trigo Morais

Advogado

 

 

 

 

* RESUMO: Kelsen é o expoente máximo da corrente filosófica denominada de Positivismo jurídico, onde o

Direito consagra um “corte epistemológico”. São, no entanto, inúmeras as críticas ao ideal positivista do mestre de Viena, já que um sistema reduzido a operações lógico-dedutivas obviaria a que os nossos tribunais alcançassem a justiça no caso concreto.

 

* PALAVRAS-CHAVE: positivismo, kelsen, teoria pura do direito, norma fundamental, direito positivo

 

 

1) INTRODUÇÃO

A Teoria Pura do Direito é a mais importante obra de Hans Kelsen. No início do século XX, o jurista filósofo apresenta, por intermédio desta obra, uma concepção de ciência jurídica segundo a qual o Direito celebraria um corte epistemológico relativamente à moral e qualquer outra disciplina, visando torná-lo num saber objectivo e exacto. Preterindo a importância do jusnaturalismo como teoria válida para o Direito, o ousado objectivo de Kelsen é, bebendo em Fichte, alcançar a pureza do Direito, dele varrendo tudo o que entrou pela mão do Positivismo Empírico.

Não obstante a legitimidade das críticas que se lhe possam apontar, a coerência e o rigor metodológico da Teoria Pura do Direito são de inegável mérito filosófico-jurídico, ao ponto de que, presentemente, as principais correntes jurídicas assumam contornos anti ou pós-Kelsenianos. Torna-se assim possível afirmar categoricamente que “qualquer avanço ou reformulação na teoria jurídica não olvidará da contribuição do genial formulador da teoria pura do direito”(1).

 

2) CONTAMINAÇÃO DA CIÊNCIA DO DIREITO

O triunfo do Positivismo na teoria do Direito delimita a acção do jurista à lei, e a do filósofo à filosofia. No entanto, esta completa dicotomia parece-nos altamente criticável. O adágio latino “dura lex sed lex” afirma uma máxima positivista que, nos dias de hoje, não poderá de forma alguma valer em absoluto. Não obstante, várias disposições do nosso ordenamento jurídico formalmente consagram o inverso: obediência à lei dos tribunais, ainda que o preceito legal seja, na óptica do juiz, manifestamente injusto.

As críticas mais acesas ao formalismo normativista de Kelsen vêm sendo elaboradas na esteira do chamado Movimento de Renascimento da Filosofia Jurídica, ocorrido após a trágica experiência histórica do Estado-assassino de Hitler. Recorrendo à citação de Mauro Almeida Noleto(2) retirada da obra de Perelman, “com o advento do Estado-criminoso que foi o Estado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gustav Radbruch, continuar a defender a tese de que ‘lei é lei’, e que o juiz deve, em qualquer caso, conformar-se com ela. Uma lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao direito”(3).

Centrado no propósito de alcançar uma objectividade e segurança no campo do Direito, Kelsen propõe a construção de uma teoria que excluísse quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. Pretendia que, na sua actividade, o aplicador do Direito ficasse circunscrito a operações lógico-dedutivas, fruto de um sistema dinâmico de normas feitas pelo Estado, capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto. No entanto, alerta Mauro Noleto(2) que novas abordagens epistemológicas acerca da ciência do Direito vão levar a que a problemática assuma outros contornos. Refere-se o autor brasileiro às correntes que perspectivam a actuação do aplicador judicial como uma actividade criadora, assumindo real preponderância a hermenêutica e argumentação jurídica. Este movimento, denominado de Pós-Positivismo, denuncia a falibilidade do modelo lógico-dedutivo proposto pelo ideal kelseniano. Importa a este propósito referir as contribuições de Theodore Viehweg e a nova retórica do já referido Chaim Perelman, cujas perspectivas que de seguida vamos expor se baseiam no artigo de Mauro Noleto(2).

Mesmo depois da consolidação do positivismo como paradigma científico no Direito, Viehweg(4)vem defender que um sistema jurídico logicamente perfeito é algo impossível de se atingir. Ressalta que o sistema jurídico é permeável, ou seja, que o Direito efectivo é algo de impuro porque é sempre contaminado pela interpretação. Concordamos com o autor brasileiro nas considerações que faz à análise de Perelman(5), “para quem Kelsen e sua teoria pura partem de um pressuposto equivocado, que é a cisão absoluta dos planos do ser e dever-ser”(2). Deve a ciência jurídica escapar da pureza relativista que lhe impõe o positivismo, e procurar critérios razoáveis de decisão. “Uma consequência paradoxal desse relativismo na teoria pura”, continua o professor de Brasília, “é a equiparação da decisão do juiz - autorizado pela normatividade a proferir, nos casos concretos, uma norma individual (sentença) - à decisão do legislador, que também autorizado pela normatividade, cria regras gerais. Ambos participam da dinâmica do Direito, havendo entre eles apenas uma diferença de grau”. Sendo ambos criadores de direito, Kelsen é forçado a reconhecer que existe a probabilidade de as decisões que realimentam o sistema serem contraditórias, já que elas são incontroláveis.

Focando o caso português, o conceito de Direito era, paradoxalmente, mais amplo na Constituição de 1933, que estabelecia como limites da ordem jurídica interna “a Moral e o Direito”. Cingindo-nos ao plano estritamente formal, parece-nos mais propício à realização da justiça permitir que a Lei não seja, simultaneamente, a única fonte e único critério de aplicação do Direito. Este não se deve esgotar numa aplicação “tout court” das normas legais, pois as vertentes da justiça, bem comum e segurança não devem nunca ser preteridas. Recorrendo à expressão de John Rawls, neste sentido de “uma teoria da justiça” será de realçar a posição doutrinal de Oliveira Ascensão(6), que vem de encontro aos vectores atrás apontados, com a ideia de que o Direito Natural estaria impreterivelmente ligado a uma teoria do direito justo. Defendendo que o Direito Natural é variável consoante a sociedade histórica em questão, sustenta o jurista que ele deve ser entendido como Direito Positivo, na medida em que, assente na pessoa e sua pendência social, é o melhor caminho para se prosseguir o valor da Justiça. O citado professor vem, desta forma, opor-se à essência da Teoria Pura de Kelsen, que radica na estrutura do Direito em termos de raciocínio lógico-formal.

            Acredita o mestre de Viena que a ciência do Direito é da ordem do dever-ser. Não obstante, este dever-ser não é uma referência metajurídica, mas sim uma decorrência da própria dinâmica interna e construção do Direito. Autonomizando-o do Positivismo cientista dos factos (área por excelência da Psicologia e Sociologia do Direito) e do Jusnaturalismo, o filósofo afasta, desta forma, o Direito das Ciências Naturais e da Moral, respectivamente. Varrendo completamente da sua filosofia as reflexões do Direito na sociedade, Kelsen sustenta que não é função do jurista preocupar-se com a justeza do sistema. Aliás, a justiça depende também ela de uma hierarquia de valores, como, por exemplo, os valores da vida e da liberdade. Neste sentido, poder-se-ia enumerar vários casos em que as hierarquias dos valores seriam diferentes, chegando-se à conclusão de Kelsen: o juízo só pode ser válido ao aplicador do Direito.

Contra a ideia de “corte epistemológico” (expressão de Bachelard) do Direito insurge-se também Castanheira Neves, no artigo “O papel do jurista no nosso tempo”(7). Face ao problema da lei injusta, isto é, da norma legal positiva que não permita realizar a ideia de Direito, defende o autor que mais do que o poder, o juiz tem o dever de lhe recusar validade e obrigatoriedade. No entanto, alerta que não será qualquer injustiça que preencherá o conceito de lei injusta, mas somente aquela que envolva a negação da própria ideia de Direito. Este é um ponto de vista com o qual concordamos plenamente. Se, por um lado, é condenável sustentar uma exacerbada permeabilização do sistema por todo o tipo de valores, que impreterivelmente conduz às indesejáveis insegurança e incerteza jurídicas, será reprovável também, por outro lado, o ideal positivista de Kelsen, traduzido num sistema jurídico auto-referenciado, isto é, dobrado criticamente sobre si mesmo.

Resta-nos abordar as considerações desenvolvidas por Menezes Cordeiro(8), que coincidem precisamente com as interrogações que nos levaram a escolher o tema deste trabalho. Como é possível defender em absoluto o positivismo jurídico, quando recai sobre o juiz a proibição do non liquet, que o obriga a proferir sempre uma decisão para o caso concreto? O autismo do ideal positivista depara-se com iguais dificuldades no que concerne às lacunas do ordenamento, ou perante o frequente recurso, por parte do legislador, a cláusulas gerais e conceitos indeterminados, como a ordem pública, bons costumes, bom pai de família, etc. Nestas matérias, as concepções valorativas, envoltas por considerações de Direito Natural, frustram por completo a tentativa purificadora do Direito que Kelsen propõe, pois é impossível ao juiz, como ser humano que é, decidir sem a elas atender. Os Direitos Fundamentais são também fonte de problemas para a Teoria Pura do Direito. Embora teoricamente não colidam, na prática entram, não raras vezes, em confronto uns com os outros, tendo de ser sopesados (privacidade vs direito à informação). Tal tarefa é da responsabilidade do juiz, que caso se limitasse a uma operação lógico-dedutiva, não conseguiria nunca alcançar uma solução para o caso. Surge finalmente “a questão complexa, mas inevitável das normas injustas”(8), perante a qual o juspositivismo se detém. Conclui o autor português que “munido (...)de instrumentação meramente formal ou positiva, o julgador terá de procurar, noutras latitudes, as bases da decisão. A experiência, a sensibilidade, certos elementos extra-positivos e, no limite, o arbítrio do subjectivo, serão utilizados”. Mas é o próprio professor a admitir os inconvenientes que daqui resultam, dos quais salienta a inviabilidade de controlo da decisão, por falta de uma fundamentação objectiva assente exclusivamente em considerações juspositivistas.

¨São numerosas as críticas tecidas ao positivismo jurídico kelseniano, pois um sistema de tal forma fechado/inventado sobre si próprio corre o risco de se esvaziar de sentido, já que esquece que o Direito é, de facto, um fenómeno social. No prefácio da obra, o prof. Baptista Machado é, aliás, peremptório em afirmar que “como se mantém completamente alheia a toda a política, a Teoria Pura do Direito afasta-se da vida real e, por isso, fica sem qualquer valor científico”(9). Retirando-lhe a sua função social, Kelsen afasta o Direito da vida, pois transforma-o num saber acrítico e numa mera técnica.

Concordamos com Kelsen quanto à importância da positivação de normas, e, embora com reservas, com as características de Neutralidade, Formalismo e Objectividade das mesmas: de facto, a ciência do Direito deve ser anti-ideológica, cujas proposições jurídicas constituam enunciados formais que o tornem num saber rigoroso e exacto. Não obstante, saliento que o valor da Justiça deverá, na nossa perspectiva, ser o escopo fundamental do Direito. Não podemos, no entanto, esquecer que o “justo” não é um conceito objectivo. Trata-se de um valor, que apesar de universal, é mutável consoante o contexto histórico-situacional, já que varia ao longo dos tempos e de sociedade para sociedade. Realça o prof. Baptista Machado que há um “compromisso do Direito Positivo com a Justiça”, e que “o Direito não pertence ao mundo dos ‘factores ideais’ nem ao mundo dos ‘factores reais’, mas representa justamente a estrutura mediadora entre os dois grupos de factores”(10). A realização do Direito passa pelo equilíbrio entre os supramencionados vectores: bem comum, segurança e justiça. Debruçando-nos apenas sobre o princípio da segurança e certeza jurídica, visto por alguns como o expoente máximo do positivismo legalista, não deverá nunca ser sobrelevado relativamente aos restantes. Isto porque poderá conduzir à aplicação de leis injustas, o que segundo Kelsen não seria nunca uma preocupação do jurista enquanto tal, mas que na nossa óptica será altamente reprovável. No entanto, será para nós certo que, para se proclamar uma harmoniosa ideia de Direito, tais princípios terão de contar sempre com o apoio da letra da lei.

Subscrevemos Perelman para apontar que a Teoria Pura do Direito é, liminarmente, de inaplicabilidade prática, pelo motivo de que “não atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos dados da experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o papel da argumentação”(5). No entanto, somos da opinião de Mauro Noleto no sentido de que um poder jurisdicional assente na total autonomia dos intérpretes desvirtuaria por completo a ciência do Direito, já que as decisões emanadas por tais órgãos de soberania não se encontrariam submetidas a qualquer espécie de controlo.

Posto isto, parece-nos necessário ultrapassar a vinculação à lei formulada no artigo 203º da Constituição como condição de independência dos juizes. Em alternativa, a vinculação dos aplicadores ao Estado de Direito democrático, nos termos do artigo 2º do mesmo diploma, possibilitaria ultrapassar teoricamente o positivismo legalista, sem cair no vício da discricionariedade jurisdicional.

 

3) A “GRUNDNORM” DEFENDIDA POR KELSEN

No positivismo jurídico que propõe, o filósofo bebe em Savigny quanto à ideia de Genealogia dos Conceitos. Esta consiste numa teoria do Direito que toma as expressões jurídicas organizadas hierarquicamente e logicamente, que Kelsen traduz sob a forma de uma Pirâmide Normativa. Dissertando rapidamente sobre esta, a Grundnorm ocupa o seu lugar cimeiro, seguindo-se-lhe as normas constitucionais. Em terceiro lugar, surgem as normas ordinárias, ao lado das quais deve ser colocado o costume (que embora fonte subsidiária, opera na falta da lei), já que ambos pertencem ao ordenamento jurídico. Em quarto lugar, encontramos as normas regulamentares, elaboradas pelos órgãos administrativos, chegando finalmente à base da pirâmide, constituída pelas normas individualizadas, que decorrem de um sistema de delegações, por parte das normas superiores, aos agentes públicos (juizes e órgãos da administração) e membros da comunidade, para a disciplina de determinadas relações jurídicas específicas prospectivamente previstas nas normas anteriores(11).

O propósito da Grundnorm, como a mais elevada da pirâmide normativa, é conferir validade a todas as normas que regulam a conduta dos homens num determinado sistema. Por esse motivo, diz Kelsen que a Norma Fundamental é hipotética, pois necessariamente se trata de uma norma suposta e não imposta, já que a ela devem obediência tanto a autoridade legislativa como os indivíduos que se encontram sujeitos às normas por ela fixadas. Numa perspectiva formal, o Princípio da Soberania garante que cada Estado é um sistema autónomo e independente. Logo, a norma fundamental de um determinado sistema não excede o âmbito estatal, sendo que apenas poderá ser alterada em decorrência de uma revolução ou golpe de Estado, pois só nesse caso a norma básica que fundamenta a validade da ordem jurídica vigente é alterada(12).

A analogia com as ciências naturais leva a teoria kelseniana a dividir-se, quanto à natureza do fundamento de validade das normas, em dois sistemas distintos: estático e dinâmico. Enquanto que o Estático é relativo ao conjunto de normas, tanto gerais como individuais, que não variam no tempo, o Dinâmico prende-se com a produção jurídica desenvolvida no seio do próprio sistema legal. Para o mestre de Viena, apesar da norma fundamental poder fornecer o fundamento de validade das normas nela baseadas, não poderá nunca concretizar o seu conteúdo de validade, tratando-se, por essa mesma razão, de um sistema dinâmico. Relativamente ao tipo dinâmico, “é caracterizado pelo facto de a norma fundamental não ter por conteúdo senão a (...) atribuição de poder a uma entidade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determine como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental”(13). Baseados no próprio texto de Hans Kelsen, é-nos possível concluir que a Grundnorm “constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa”(14); pelas razões expostas, possui dentro do ordenamento jurídico uma “dupla função constitutiva”(15).

¨Apesar de conseguir, com a Pirâmide Normativa, isolar o Direito, conferindo-lhe autonomia, as grandes críticas a Kelsen residem precisamente na Norma Hipotética Fundamental. Sustentam as vozes discordantes que qualquer hipótese jurídica teoricamente elaborada deve ser testada, de modo a que, por uma série de factos decorrentes do comportamento efectivo das pessoas que compõem a ordem que se pretende erigir, se conclua no sentido da aplicabilidade prática da referida hipótese(12).

Na obra “Teoria Pura do Direito”, pese embora o intuito de dissociar as categorias do Direito (dever-ser) e do Direito Natural (ser), o mestre de Viena não logrou tal propósito. Neste nível, o filósofo aproxima-se muito de Kant, ao afirmar que a norma fundamental supõe-se, não existe, é transcendental. Ainda nesta linha de raciocínio, “a norma fundamental não deve ser considerada como uma categoria, no sentido kantiano, pelo simples motivo de que não é um ‘a priori’: depende de certas condições empíricas; só pode ser estabelecida ‘a posteriori’, ou seja, após a verificação do facto”(15). O sistema jurídico de determinado ordenamento não poderá, portanto, ser reduzido a um conjunto de normas e uma Grundnorm enquadrados numa mecânica lógico-dedutiva, tendo necessariamente que haver lugar a uma comprovação de que a generalidade dos indivíduos que integram aquele sistema interiorizaram a norma fundamental nos seus comportamentos.

Afastando qualquer possibilidade de um ponto de vista externo ao Direito, ou mesmo de este, apesar de auto-iluminado, se debruçar sobre si próprio mas assente noutros pressupostos, a validade inferida exclusivamente por referência à norma superior leva à crítica de que Kelsen põe ao mesmo nível os sistemas democráticos e os despóticos. Não será por isso de estranhar que as objecções mais fortes à metodologia que o filósofo preconiza surjam no pós-Segunda Guerra Mundial.

 

4) CONCLUSÃO

Embora seja salutar reconhecer a procedência das críticas tecidas, a perenidade da obra Kelseniana deixa em aberto se teria conseguido concretizar a sua preocupação de uma ciência jurídica depurada de ingerências metodológicas indesejáveis.

Não obstante o objectivo de tornar o Direito num sistema fechado e autopoiético, Kelsen não conseguiu expurgar a ciência jurídica do mundo essencialmente político no que concerne à produção das normas, em conformidade com a tese segundo a qual o Direito Positivo se realiza no Estado: “Deus em face do mundo”, e o “Estado em face do Direito”(16). Ainda que ressalve que a autoridade criadora, seja o juiz ou o legislador, deve conhecer o Direito, o filósofo reduz o trabalho do jurista científico a uma tarefa meramente descritiva situada na fase preliminar do processo de criação normativa.

Concordamos com Radbruch quanto à ideia de que o Direito é um facto valorado, e que a missão da Filosofia do Direito não poderá reduzir-se a uma epistemologia do Direito Positivo. A utilidade deste “saber do universo e dos universais” (prof. C.Agra) em que consiste a Filosofia do Direito é aproximar o Direito vigente da ideia de Justiça, sua estrela polar. Concluímos, portanto, a permeabilidade do método proposto pela Teoria Pura do Direito, pois na realidade os criadores do Direito não conseguem (nem sequer devem) alhear-se de outro tipo de considerações valorativas, que são o único meio de evitar o autismo normativo, noutras palavras, evitar a desadequação entre as leis e a concreta realidade.

A nosso ver, e concordando com Mauro Noleto(2), “a via da hermenêutica reúne as potencialidades para a reconstrução das bases epistemológicas da ciência jurídica, principalmente porque, a partir dela, será possível trazer para a luz aquilo que o brilho da normatividade pura tinha ofuscado”. Serão aqui de referir os benefícios de uma abordagem do Direito do ponto de vista dos factos, maxime através da Sociologia, na medida em que resultem na formulação de juízos éticos que, uma vez concretizados normativamente, continuem a não impedir as autoridades criadoras de justificar de forma racional as suas decisões.

Terminamos este trabalho citando um dos maiores estudiosos de Hans Kelsen, o prof. Baptista Machado: “toda a norma editada pelo legislador leva em si a pretensão de ser justa”, já que “toda a vontade legislativa remete para um universo de valores em que se louva e pelo qual se justifica”. Chegamos assim à mesma conclusão que o saudoso professor: “o que nos separa dos positivistas é, afinal, o irrealismo destes”(17).

 

 

5) BIBLIOGRAFIA

 

(1)FILHO, Dirceu Marques Galvão, “Kelsen: a pureza metódica”; (2)NOLETO, Mauro Almeida, “Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen”; (3)PERELMAN, Chaim. “Lógica Jurídica”, São Paulo, Martins Fontes, 2000, pg 95; (4)VIEHWEG, Theodor, “Tópica e jurisprudência”, tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr., Brasília, Imprensa Nacional, 1979; (5)PERELMAN, Chaim. “A Teoria Pura do Direito e a Argumentação”, tradução de Ricardo R. de Almeida;; (6)ASCENSÃO, José de Oliveira, “O Direito: Introdução e Teoria Geral”, 10ª ed., Almedina, pgs 195-197; (7)NEVES, António Castanheira “O papel do jurista no nosso tempo”, in Boletim da Faculdade de Direito da U.C., XLIV, pg 83ss; (8)CORDEIRO, António Menezes, Introdução in: CANARIS, Claus-Wilhelm “Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito”, Lisboa, Calouste Gulbekian, 1989, pgs 20-24; (9)KELSEN, Hans “Teoria Pura do Direito”, Prefácio, 6ª ed., tradução de J. Baptista Machado, Coimbra Editora, pg 9 (10)MACHADO, J. Baptista, “Introdução ao Direito e ao discurso legitimador”, 12ª impressão, Almedina, pg 213; (11)ARAGON, Celio da Silva, “A visão do Direito, segundo Hans Kelsen”; (12)LIMA, Susana Rocha Cunha, “Considerações sobre a norma hipotética fundamental”; (13)KELSEN, Hans “Teoria Pura do Direito”, 6ª ed., tradução de J. Baptista Machado, Coimbra Editora, pg 271; (14)KELSEN, Hans “Teoria Pura do Direito”, 6ª ed., tradução de J. Baptista Machado, Coimbra Editora, pg 269; (15)DINIZ, Maria Helena. “A Ciência Jurídica”,4 ed., São Paulo, Saraiva, 1996, pgs 124 e 136; (16)KELSEN, Hans “Teoria Pura do Direito”, 6ª ed., tradução de J. Baptista Machado, Coimbra Editora, pgs 423-425; (17)MACHADO, J. Baptista, “Introdução ao Direito e ao discurso legitimador”, 12ª impressão, Almedina, pgs 215 e 216.

 

 

 

Publicação: Verbo Jurídico (www.verbojuridico.net | com | org)

Data de Publicação: Maio de 2003.