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VERDADE ou DELÍRIO?

 

 

Bruno de Carvalho Motejunas

Acadêmico de Direito do 5º período matutino e

Bolsista do PET-Direito/UFMA

 

 

 

 

 

".. o próprio conceito de que existam leis universais, e uma ordem dada para coisas, implicaria que Deus fosse prisioneiro delas, enquanto que Deus é coisa tão absolutamente livre que, se quisesse, e por um só ato de sua vontade, o mundo seria diferente." ( O nome da rosa- Umberto Eco- p. 242)

 

 

 

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A verdade se mostra como um grande desafio ao homem, conquistá-la é a obstinação daqueles que devotam sua vida ao conhecimento. Porém, de que verdade estamos falando, ou melhor de qual verdade é possível falar? Será que podemos pretender atingir uma verdade absoluta, inquestionável, "a" verdade, ou devemos ter esse conceito como uma construção histórica que, como tal, está passível de transformação? Verdade absoluta, verdade relativa, a qual pode e deve se ater o espírito científico? Falando nisso, apenas o espírito científico é dotado de capacidade para compreender corretamente a realidade? Quais são, se é que existem, os discursos de excelência do saber? É nesse ponto que a questão do método se estabelece como ponto de divergência entre as diversas correntes de pensamento. Poderá existir um método que extraia da realidade sua essência e a mostre ao homem em sua pureza? Estamos falando do conhecimento e do caminho para alcançá-lo, mas bem que poderíamos estar falando da liberdade de pensamento, do direito a questionar. Senão vejamos.

 

A verdade científica nada mais tenta ser que a explicação mais coerente e satisfatória da realidade a que se propõe conhecer. "A ciência se volta para a realidade"1, porém o que ela encontra não é a realidade. Afastá-la dessa definição e querer que ela seja a fonte da verdade absoluta, mesmo que através de mitos acerca da produção do saber, é algo condenado ao fracasso, pois "a realidade que a pesquisa pretende conhecer permanece sempre mais rica que a teoria que a ela se refere."2 Assim, exigir do pesquisador que seja uma máquina que assimila dados sem com eles interagir é por demais fantasioso e idealista. Ao contrário, a ele deve ser exigido "...participação crítica, vontade, empenho em conseguir descobrir, melhor dizendo, construir uma explicação precisa, capaz de satisfazer o nível de exigência requerido."3

 

É preciso também destruir outros mitos, como o referente ao objeto, que não é dado ou descoberto como muitos querem, mas construído pelo próprio pesquisador; sobre a problematização teórica que, por mais que se queira negar, já traz em si a "linha" da resposta, pois quem pergunta "sabe o que quer", "prevê o que vai encontrar..."4. O próprio erro, execrado e amaldiçoado por gerações, hoje pode ser visto como elemento indissociável da transformação do pensamento científico, um de seus pontos de relativização:

 

"A verdade surge com o erro, no sentido de contra o erro, que é deste modo, parte integrante do processo de sua construção. 'Uma verdade sobre um fundo de erro, tal é a forma do pensamento científico.'( Bachelard, 1966,48)"5

 

Disso conclui-se a existência de um mito (ou seria melhor dizer mitos?) acerca do método científico, que tenta ganhar ares de absoluto na ânsia de firma-se como único. Tal tentativa é assim explicada por Norberto Bobbio: "Da finalidade visada pela busca do fundamento, nasce a ilusão do fundamento absoluto."6

 

Contudo, conforme esclarece Mírian Limoeiro: "É um reducionismo grosseiro a pretensão de uma lógica da descoberta, ou de um método científico afirmado de uma vez por todas."7

 

A partir daí devemos tentar traçar a história do conhecimento ligada à busca pela certeza última, principalmente com o advento do espírito científico que, pelo rigor e seriedade a que se propunha, presumiu possível desmascarar o real sem sombras ou dúvidas. Desse pressuposto partiu-se para a construção de um método científico que, pela pureza de suas regras, iria retirar qualquer entrave ao desejo de conhecer. Nesse primeiro momento o "como fazer" não dependia de quem faria ou do que era feito, bastava a técnica ser seguida corretamente que a solução encontrada necessariamente conduziria à essência do objeto estudado. O método deveria ser a legitimação do conhecimento científico, a credencial que o tornaria verdadeiro. Só depois, através das carências práticas de tal teoria, que pôde se perceber que método, objeto real, objeto científico, experiência, técnica, pesquisador são elementos distintos, mas interligados, partes de uma mesma "unicidade de construção teórica" que torna falsa a suposição de uma técnica universal e neutra, pois, "a modificação de um acarreta modificações nos demais."8

 

Podemos dizer que o mito do método surge para dissipar as dúvidas sobre os resultados da ciência, dar-lhes credibilidade e respeito, ao mesmo tempo que concede aos cientistas certificados de semideuses inumanos e perfeitos. O espírito científico sofre com isso o mal de outras formas de pensamento que, na defesa e busca de auto-afirmação, tornaram-se dogmáticas e intolerantes àqueles que não seguiam suas doutrinas. Acaba por buscar no irracional argumentos para a sua dita "racionalidade", como bem adverte Hilton Japiassu:

 

"E a certeza só pode ser credulidade e cegueira. Apoiar-se numa verdade como num absoluto é realizar uma censura cuja legitimidade não conseguimos fundamentar. Toda verdade absoluta converte-se em superego opressor e castrador."9

 

 

 

O catolicismo, que imperou inconteste por toda a Idade Média e até hoje tem seu poder dentro da sociedade, sob a insigne da opressão (enquanto teve forças) e intransigência a qualquer forma de pensar diferente da sua, é um exemplo. A suposição da pureza de suas verdades muitas vezes foi um pretexto para manipulações de homens nada santos, muito mais preocupados com poder e riqueza e que usaram sua "autoridade" para professar a verdade que lhes convinha. A base do poder naquela época era a ignorância de uns aliada a "sabedoria" de outros, "...cuidando de substituir a rebelião pelo medo"10. O conhecimento era artigo raro e a palavra final sobre sua validade devia caber sempre à Igreja. Ela era naquele tempo o que Foucault chamou muito depois de órgão encarregado do "discurso competente" da verdade. E é exatamente sobre esse signo que hoje é vista a ciência.

 

Nesse caminho podemos detectar como a ignorância ou a suposição de possuí-la foram e são armas de manipulação por parte daqueles que se dizem capacitados para proferir o certo e o errado. Dessa manipulação, que ocorria na Idade Média sob os olhos e em proveito da Igreja, nos fala Umberto Eco: "Os simples são carne de matadouro, de se usar para colocar em crise o poder adverso, e para sacrificar quando não prestam mais."11 Os simples são os excluídos da produção do saber, os resignados de sua inferioridade intelectual.

 

A importância manifesta do método como mecanismo de construção do conhecimento não permite separar, como já foi dito anteriormente, a sua evolução com a do próprio conhecimento. A pretensão confessa da verdade incontestável, ou seja, da pureza do processo que, por sua vez, iria levar à pureza da resposta, jogou o método científico único e o próprio espírito científico que ele dizia representar no caminho da estagnação e causou o perigo de desconstrução da ciência, desacreditando-a e não permitindo a ela cumprir seu papel dentro da sociedade, pois negava-lhe instrumentos flexíveis de compreensão da realidade. Nesse ponto difere pouco do pensamento religioso que, pela sua própria forma de interação com seus seguidores, não precisa de respostas mutáveis, nem muito menos busca uma verdade fundada no dinamismo da realidade. Apenas a crença basta para dar ao dogma religioso sua validade e imperatividade, crença que também é partilhada pelos adoradores da ciência. Ambas (Religião e Ciência), costumam ser intransigentes e autoritárias.

 

Contudo, na ciência, a história pode e deve ser outra, nela deve haver a obediência à fundamentação teórica, a busca sincera e racional da verdade (mesmo enquanto transitória) e a eterna luta contra os preconceitos (em muito condenada ao fracasso, diga-se de passagem). Os métodos devem ser vários e mutáveis, agindo como critérios para a apuração e descrição de realidade, recolhendo as evidências que comprovem ou não a teoria a que se propõem, sendo uma "avaliação crítica da evidência disponível"12. A sua relatividade revela a própria dialética do conhecimento, o qual assume uma posição transitória e retificável.

 

Com isso a verdade (científica) deve ser vista como a forma de explicar, satisfatoriamente, naquele momento e naquelas circunstâncias, o objeto de estudo. A construção e mutação perpassa todo o saber, inclusive a forma de construi-lo, ou seja, "no mundo plural em que vivemos, simplesmente não existe mais verdade, mas verdades"13. Não podemos compreender todo o caminho da evolução, porém sabemos que estamos a percorrê-lo, logo "o conhecimento só pode ir construindo as representações que o vão explicando num processo infinito de aproximação."14

 

Esse deve ser o espírito científico, livre de dogmas e preconceitos que o fazem deixar de ser a busca pelo novo, pela transformação. Devemos escapar da mitificação da qual "supõe-se o método como elemento capaz de permitir desvendar o mundo, a realidade, aguardando desta a sua objetividade pura e total."15

 

Ao saber científico não interessa ser absoluto, deve sim, está constantemente reavaliando-se, pois "nunca a ciência considera seus resultados acabados."16 Apenas se avança mas nunca se põe fim à busca pelo real. O fato de não podermos captá-lo completamente não significa que não tenhamos a obrigação de nos aproximarmos o máximo possível dele. A busca do verdadeiro se refaz a cada instante através da descoberta. É esse espírito que Japiassu proclama ao dizer:

 

"Vejo como algo extremamente saudável, fonte de saúde mental e intelectual, o gosto amargo das incertezas e a dor íntima do desamparo face a posturas intelectuais relativizadas, incapazes de se ancorarem em parâmetros absolutos."17

 

O método deve seguir esse caminho, pois é elemento essencial e inseparável na mutação permanente do saber. Estagná-lo, paralisá-lo, querer dar-lhe uma feição única e permanente é, sem dúvida, obstaculizar a transformação do saber. Pior que isso, é matar o espírito científico. O dogma que daí advém transforma-se em grilhão que aprisiona o saber, impede-o de respirar, sufoca-o. O que é chamado de verdade absoluta nada mais é que a prova da decadência e do menosprezo pela evolução do pensamento. Ao contrário do que muitos pensam, a certeza não traz reputação à ciência, ao invés disso ela a desqualifica e a assemelha ao fanatismo:

 

"Todo dogmatismo leva à esclerose do pensamento e à esterilidade do poder criador. Uma verdade absoluta, uma verdade em si, opõe-se radicalmente à circulação das verdades. Ademais, alimenta-se do espírito de intolerância, de sectarismo e de fanatismo."18

 

Finalmente, aceitar a idéia de uma verdade estática é limitar a liberdade de questionar, é querer impor uma forma de pensar conservadora, ou seja, é escravizar a alma. Já houve tempos que aqueles que ousassem questionar o saber oficial eram queimados como hereges, porém, a luz da razão chegou e iluminou nossas mentes, fazendo nascer a revolta contra a opressão e a violência. Mas, às vezes, até a razão escurece sua vista e vira delírio, fazendo-se mister despertá-la antes que se transforme naquilo que quer negar. Sendo assim, lutar contra o pensamento absoluto é reviver a luta da razão pela busca da verdade, luta essa que não acaba nunca e que também tem um compromisso com a democracia e a liberdade de pensamento que implica no respeito a toda e qualquer opinião, mesmo àquelas que não concordamos.

 

 

Retirado de: http://members.tripod.com/CAIM/artigos