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Jurisprudências ?!?!?!
Juiz do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo
É ensinamento
que se obtém no aprendizado das primeiras letras que, na língua portuguesa, o
plural das palavras se forma, como regra geral, mas com diversas exceções, pelo
simples acrescentamento do "s" no final. Assim, uma casa, duas casas.
Pela regra
básica, o vocábulo jurisprudência tem por plural jurisprudências.
Não há dúvida alguma a respeito disso.
Ocorre que, como
anotam os gramáticos e lexicólogos, muitas palavras ao serem passadas do
singular para o plural adquirem sentido diferente. Dentre os muitos exemplos
que a língua oferece, lembra-se "féria" e "férias",
"costa" (litoral) e "costas" (dorso),
"vencimento" (termo final de um contrato) e "vencimentos"
(remuneração) (cfr. Napoleão Mendes de Almeida, Gramática metódica da língua
portuguesa, 34. ed., Saraiva, p. 117, § 230, Roberto Melo Mesquita, Gramática
da língua portuguesa, Saraiva, 1994, p. 172, Hildebrando A. de André, Gramática
ilustrada, 2. ed., Moderna, p. 113).
Entretanto,
ignorância a respeito do correto sentido da palavra jurisprudência, no
singular, tem conduzido tanto alguns apedeutas em conhecimento jurídico como
certos profissionais da área, e até autores de obras de caráter doutrinário1,
o que é de pasmar, a empregá-la erroneamente no plural.
Como se sabe, no
singular, os dicionaristas, a exemplo do que faz o nosso Aurélio, trazem
os seguintes significados: "1. Ciência do direito e das leis. 2. Conjunto
de soluções dadas às questões de direito pelos tribunais superiores. 3.
Interpretação reiterada que os tribunais dão à lei, nos casos concretos
submetidos ao seu julgamento".
Podemos dizer,
com Rubens Limongi França (O direito, a lei e a jurisprudência, Revista
dos Tribunais, 1974, p. 145), que o primeiro significado dessa palavra encerra
um sentido lato, e os outros, que muito se assemelham, estão ligados à sua
etimologia, e, pois, mais estritos.
Cabanellas, no
seu conhecido Dicionário de derecho usual, diz que Justiniano definiu a jurisprudência
como o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do
injusto (Divinarum atquae humanarum rerum notitia, justi justique scientia),
embora mais corretamente esclareça o mesmo Limongi França que se trata de noção
apresentada por Ulpiano (D, I, 1, 10, 2) e repetida por Justiniano (Inst.,
I, 1, 1).
Dessa
conceituação adveio o emprego com o significado de ciência do direito,
pouco utilizada nos dias de hoje.
Reportando-se a
F. Mackeldey (Manuel de droit romain, trad. J. Beving, Bruxelles, 1846,
§ 9, p. 6), que a define como "la science de règles de droit après ses
principes et ses sources", Reinaldo Porchat (Curso elementar de direito
romano, 1907, p. 198) afirma que para o professor tedesco "a
jurisprudência abrange o estudo da dogmática jurídica, pela qual se sabe qual o
direito existente em um certo Estado, da história do direito, pela qual se
indaga como se formou o direito, e da filosofia do direito, pela qual se
examina se o direito é conforme a razão".
Não discrepa o
mestre de Leipzig, Theodor Marezoli, quando afirma que "La science du
droit, la jurisprudence, juris prudentia, juris scientia,
se compóse des vérités de droit, des maximes de droit, développées d’après
leurs raisons internes et externes, et réunies en un ensemble scientifiquement
coordené (Précis d’un cours sur l’ensemble du droit privé des romains -
Lehrbuch der Institutionen des römischen Rechtes, trad. Prof. C. A. Pellat, Paris, 1852, § 7, p. 15).
Assim, o nosso
saudoso Prof. Silvio Meira esclarece que, "Na sua forma romana, prudentia
significa ciência; juris, do direito. Daí muitos
escritores utilizarem essa palavra no sentido romano, como faz Terrasson, na
sua Histoire de la jurisprudence romaine, em que estuda a história e
evolução do Direito Romano, desde as origens até o Império (Instituições de
direito romano, 4. ed., Max Limonad, v. 1, p. 42).
Para encerrar,
lembra-se que o Prof. Miguel Reale, na sua obra maior, emprega a palavra
Jurisprudência com significado de Ciência do Direito (Filosofia do direito,
11. ed., Saraiva, p. 185).
Mas, como dito
acima, jurisprudência para os lexicólogos significa, também, o conjunto de
soluções dadas às questões de direito pelos tribunais superiores e
interpretação reiterada que os tribunais dão à lei, nos casos concretos
submetidos ao seu julgamento. Ou seja, trata-se de um substantivo comum coletivo,
visto que, embora na forma singular, exprime, quanto à idéia, um conjunto de
decisões no mesmo sentido. Tanto assim que Altino Costa, em seu clássico Dicionário
de coletivos e correlatos, Rio de Janeiro, Ed. Científica, s/d., no verbete
jurisprudência, a define, sem muito rigor técnico, como o "Conjunto
dos princípios de direito seguidos, num país, numa dada época ou em certa e
determinada matéria".
No mundo do
direito, o mesmo Prof. Miguel Reale, em suas festejadas Lições preliminares
de direito, 7. ed., Saraiva, p. 167, leciona: "Pela palavra
‘jurisprudência’ (stricto sensu) devemos entender a forma de revelação
do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de
uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais".
Não tendo essas
breves notas o objetivo de aprofundamento sobre o conteúdo da jurisprudência, o
que, com extraordinária proficiência, é feito por Limongi França, na obra
citada, à qual remetemos o leitor, cumpre insistir que não se confunde com
"julgado", "aresto", "acórdão",
"decisão" etc. Estes têm a conotação de unidade, ou seja, um
determinado pronunciamento de um tribunal sobre matéria discutida em
determinado processo judicial ou administrativo.
Portanto, como afirmam Aftalon, Olano e Vilanueva,
"El fenómeno de la jurisprudencia debe buscárselo, por lo tanto, en las
decisiones de los órganos jurisdiccionales del Estado y se manifesta como una
repetición, como una forma habitual o uniforme del pronunciarse, forma
que denota la influencia de unos fallos sobre otros y aun la presencia
de un conjunto de principios y doctrinas (comunes) contenidos en las
decisiones de los tribunales (Introducción al derecho, Buenos Aires,
1972, p. 362).
Orlando Gomes,
do alto de sua autoridade de mestre exímio, cuja lacuna pelo passamento
continua em aberto, afirma que "Por jurisprudência entende-se o conjunto
de decisões dos tribunais sobre as matérias de sua competência ou uma série de
julgados similares sobre a mesma matéria: rerum perpetuo similiter
judicatorum auctoritas" (Introdução ao direito civil, 12. ed.,
Forense, p. 46).
Para finalizar,
o Prof. Francisco Amaral, nas suas preciosas lições (Direito civil;
Introdução, 2. ed., Renovar, p. 76), acrescenta que "O poder judiciário
aplica o direito aos casos concretos, solucionando os conflitos de interesses e
realizando a justiça. Por meio de suas decisões, as sentenças, estabelecem
normas individuais e concretas. A reiteração desses julgados no mesmo sentido,
criando uma orientação geral para os tribunais, forma a jurisprudência".
Cumpre, por
derradeiro, lembrar que muitos autores classificam-na como fonte formal, ou
mediata, do direito (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de
direito civil, 18. ed., Forense, v. I, p. 35; Washington de Barros
Monteiro, Curso de direito civil; Parte Geral, 34. ed., Saraiva, v. 1,
p. 12, Alex Weill, Droit civil, Introduction générale, Dalloz, 2ème
ed., v. I, p. 146), outros lhe negam essa qualificação (Orlando Gomes,
ob. e loc. cit.), outros, ainda, preferem considerá-la como forma de
expressão do direito (R. Limongi França, Manual de Direito Civil, 3.
ed., Revista dos Tribunais, v. I, p. 24).
Em conclusão,
constitui imperdoável erronia o emprego do vocábulo jurisprudência com o
significado de um determinado acórdão ou julgado. Por isso, não comporta seu
uso no plural, como, por exemplo, se vê às vezes falar-se em
"jurisprudências" sobre alienação fiduciária, sobre leasing,
sobre dano moral etc.
Poder-se-ia
falar - e assim mesmo com muita cautela -, por exemplo, que "as jurisprudências
americanas sobre sociedades anônimas podem ter aplicação no Brasil, em virtude
de a nossa lei adotar princípios contidos na legislação estadunidense", ou
"as jurisprudências francesas sobre transporte aéreo internacional
podem ser invocadas no Brasil, haja vista que lá como aqui tem aplicação a lei
convencional de Varsóvia".
Nesses casos,
embora se admita o emprego do plural, soa melhor e não desnatura o sentido o uso
do singular.
1 Por exemplo: João Roberto Parizatto, Alienação
fiduciaria, Edipa, 1998, p. 197; Clayton Reis, Avaliação do dano moral,
Forense, 1998, p. 139.
Retirado de: www.saraivajur.com.br