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Três concepções acerca do conhecimento humano

Por Maria Rita Demenis Fogalle, Acadêmica de Direito.

A Ciência de Galileu e sua nova traição


Não havia nenhuma objeção ao ensinamento de Galileu da teoria matemática do sistema, na medida em que ele deixasse claro que seu valor era apenas instrumental; que ela nada mais era do que uma "suposição", como dizia o cardeal Bellarmino, ou uma "hipótese matemática" - uma espécia de estratagema matemático, "inventado e assumido com o fito de abreviar e facilitar os cálculos.


Sem nenhum debate ulterior acerca do problema filosófico, sem produzir nenhum novo argumento, a Concepção instrumentalista (como a chamarei), tornou-se um dogma aceito. Pode-se perfeitamente chama-la agora de "concepção oficial" da teoria física uma vez que a maioria de nossos principais teóricos da física a aceita (embora não seja aceita por Einsten nem por Schrödinger). E tornou-se parte integrante do ensinamento habitual da física.



O problema em jogo


Poucos, se é que existe algum, dos físicos que aceitam agora a concepção instrumentalista do cardeal Bellarmino e do bispo Berkeley têm consciência de que aceitaram uma teoria filosófica. Nem mesmo percebem que romperam com a tradição galileana.

"Se uma teoria é um instrumento, então não pode ser verdadeira (mas apenas conveniente, simples, econômica, poderosa)"

A concepção instrumentalista afirma que as teorias nada mais são do que instrumentos, enquanto a concepção galileana era que elas não somente são instrumentos mas também - e principalmente - descrições do mundo, ou de alguns aspectos do mundo.


Ainda assim, acredito que se deve considerar que o problema está situado entre um racionalismo crítico e ousado - o espírito da descoberta - em um credo estreito e defensivo segundo o qual não podemos nem precisamentos aprender ou entender mais a respeito de nosso mundo do que aquilo que já conhecemos. Um credo, além disso, que é incompatível com a apreciação da ciência como uma das realizações máximas do espírito humano.



A primeira concepção - Explicação última pelas essências


O Essencialismo - primeira das três concepções da teoria científica, faz parte da filosofia galileana da ciência. Dentro desta filosofia podem distinguir-se três elementos ou doutrinas. O cientista aspira a encontrar uma teoria ou descrição verdadeira do mundo (e especialmente de suas regularidades ou "leis"), que seja também uma explicação dos fatos observáveis. Isto significa que uma descrição destes fatos deve ser dedutível da teoria em conjunção com certos enunciados, os chamados "condições iniciais". O cientista pode ter sucesso em estabelecer finalmente a verdade de tais teorias além de toda dúvida razoável. Tudo o que o cientista faz, na opinião de Popper, é testar suas teorias e eliminar todas aquelas que não resistem aos mais severos testes que ele possa planejar.


Porém, ele nunca pode estar muito certo de que novos testes (ou mesmo uma nova discussão teórica) não o levem a modificar, ou descartar, sua teoria. Neste sentido todas as teorias são e permanecem hipóteses: são conjeturas (dóxa) opostas ao conhecimento indubitável (epistéme). As melhores teorias, as verdadeiras científicas, descrevem as "essências" ou as "naturezas essenciais" das coisas - as realidades que estão por trás das aparências. Tais teorias não precisam nem são suscetíveis de uma explicação ulterior: elas são explicações últimas e encontrá-las é o objetivo final do cientista. Esta terceira doutrina (em conexão com a segunda) é aquela que denominei "essencialismo". Acredito que, como a segunda doutrina, ela está errada.


Ora, o que os filósofos instrumentalistas da ciência, desde Berkeley até Mach, Duhem e Poincaré, têm em comum é o seguinte: Todos eles afirmam que a explicação não é um objetivo da ciência física, uma vez que a ciência física não pode descobrir a "essência escondida das coisas". O argumento mostra que o que eles têm em mente é o que Popper chama explicação última (a explicação científica). Desta forma as teorias são meros instrumentos. E o que pode parecer com o aumento do conhecimento teórico é simplesmente o aperfeiçoamento dos instrumentos.


Os filósofos instrumentalistas rejeitam, portanto, a terceira doutrina, isto é, a doutrina das essências. Ao mesmo tempo rejeitam, e são obrigados a rejeitar, a segunda doutrina; pois, se uma teoria é um instrumento, então não pode ser verdadeira ( mas apenas conveniente, simples, econômica, poderosa, etc )


Ora, concordo totalmente que não há nenhuma certeza acerca das teorias (que sempre podem ser refutadas); e até mesmo concordo que elas são instrumentos, embora não concorde que esta é a razão pela qual não se pode haver nenhuma certeza acerca das teorias. (acredita que a razão correta é simplesmente que nossos testes nunca podem ser exaustivos).


Pois, seu argumento de que não podem existir "essências escondidas" baseia-se em sua convicção de que não pode existir nada oculto ( ou de que se alguma coisa está oculta, somente se pode conhecê-la através da revelação divina).


Concedo, portanto, prontamente ao essencialismo que muito está oculto a nós, e que se pode descobrir muito do está oculto.


A doutrina essencialista à qual me oponho é somente a doutrina de que a ciência aspira à explicação última, em outras palavras, uma explicação que (essencialmente, ou por sua própria natureza) não pode ser ulteriormente explicada, e que não tem necessidade alguma de qualquer explicação posterior.


Penso que os exemplos esclarecem que a crença nas essências (seja verdadeira, seja falsa), pode criar obstáculos ao pensamento - à colocação de problemas novos e frutuosos.



A Segunda Concepção : as teorias como Instrumento


Segundo o essencialismo, devemos distinguir entre:


I - O universo da realidade essencial.


II - O universo dos fenômenos observáveis.


III - O universo da linguagem descritiva ou da representação simbólica.


Pode-se expressar isto dizendo - como Shlick o fez, seguindo Wittgenstein - que uma lei universal ou uma teoria não é um enunciado propriamente dito, mas, ao contrário, "uma regra, ou um conjunto de instruções, para a derivação de enunciados singulares de outros enunciados singulares".


Quanto ao Instrumentalismo, indubitavelmente, tanto Galileu como Einsten tentaram, entre outras coisas, deduzir o que um observador, ou um observador possível, veria. Porém este não é o problema fundamental para eles.


Ambos investigaram os sistemas físicos e seus movimentos. Somente o filósofo instrumentalista afirma que o que eles discutiram ou "realmente pretenderam" discutir, não eram os sistemas físicos, mas apenas os resultados de observações possíveis; e que seus chamados "sistemas físicos", que pareciam ser seus objetos de estudo, eram na realidade somente instrumentos para predizer observações.



Crítica da Concepção Instrumentalista


A crítica da concepção Instrumentalista das teorias científicas que proponho pode ser resumida da seguinte maneira:


Pode-se formular o instrumentalismo como a tese de que as teorias científicas - as teorias das chamadas ciências "puras"- nada mais são do que regras de computação (ou regras de inferência); do mesmo caráter, fundamentalmente, que as regras de computação das chamadas ciências "aplicadas". (Poderíamos até mesmo formulá-lo como a tese segundo a qual o nome de ciência "pura" está errado, e de que toda ciência é "aplicada".


Ora, minha resposta instrumentalismo consiste em mostrar que há diferenças profundas entre as teorias "puras" e as regras de computação tecnológica, e que o instrumentalismo pode apresentar uma descrição perfeita dessas regras, mas que é incapaz de explicar a diferença entre elas e as teorias.


O que desejo discutir é o fato de que se testam as teorias mediante as tentativas de refutá-las (tentativas das quais aprendemos muito), ao passo que não existe nada que corresponda estritamente a isto no caso das regras tecnológicas de computação ou de cálculo.


Testa-se uma teoria não simplesmente aplicando-a ou experimentando-a, mas aplicando-a a casos muito especiais - casos para os quais ela apresenta resultados diferentes daqueles que esperaríamos sem aquela teoria, ou à luz de outras teorias. Em outras palavras, tentamos selecionar para nossos testes aqueles casos cruciais em que esperaríamos que a teoria falha se não é verdadeira. Tais casos são "cruciais" no sentido de Bacon; indicam as encruzilhadas entre duas (ou mais teorias).


Pois, dizer que sem a teoria em questão esperaríamos uma teoria diferente implica que nossas expectativas eram o resultado de alguma outra teoria (talvez uma teoria mais velha), por mais obscura que possa ser a consciência que temos deste fato.


Ela é tanto mais corroborada quanto menos esperada, ou menos provável, é o resultado do experimento.


Para os propósitos instrumentais da aplicação prática, uma teoria pode continuar sendo usada mesmo após sua refutação, dentro dos limites de sua aplicabilidade.


Os instrumentos, mesmo as teorias na medida em que são instrumentos, não podem, como vemos ser refutados. A interpretação instrumentalista será portanto incapaz de explicar os testes reais, que são tentativas de refutações, e não irá além da asserção de que teorias diferentes possuem diferentes domínios de aplicação. Mas ela não pode explicar o progresso científico.


Mas seja como for, o importante é que negligenciando o falseamento, e reforçando a aplicação, o instrumentalismo demonstra ser um filosofia tão obscurantista quanto o essencialismo.


Pois é somente procurando as refutações que a ciência pode ter a esperança de aprender e de avançar. É somente considerando como suas várias teorias resistem aos testes, que ela pode distinguir entre as teorias melhores e piores e encontrar deste modo um critério de progresso.


Deste modo não se pode falsear um simples instrumento para a predição. O que à primeira vista pode parecer seu falseamento acaba sendo nada mais do que uma cláusula adicional que nos previne acerca de sua limitada aplicabilidade.


Resumindo, podemos dizer que o instrumentalismo é incapaz de explicar a importância para a ciência pura de testar severamente até mesmo as mais remotas parte do cientista puro pela verdade e falsidade. Em contraste com a atitude do instrumentalismo (como aquela da ciência aplicada) é uma atitude de complacência diante do sucesso das aplicações. Desta forma, ela pode muito bem ser responsável pela estagnação recente da teoria quântica.



A terceira opção: conjeturas, verdade e realidade.


Esta terceira concepção não é muito desconcertante nem mesmo surpreendente, segundo acredito. Ela preserva a doutrina galileana de que o cientista aspira a uma descrição verdadeira do mundo, ou de alguns de seus aspectos, e a uma explicação verdadeira dos fatos observáveis; e combina esta doutrina com a concepção não galileana de que embora esta seja a aspiração do cientista, ele nunca pode saber com certeza se suas descobertas são verdadeiras, embora ele possa algumas vezes estabelecer com razoável certeza que uma teoria é falsa.


"Se uma teoria é testável, então ela implica que eventos de um certo tipo não podem acontecer, e desta forma ela afirma alguma coisa acerca da realidade"

Pode-se formular brevemente esta "terceira concepção" das teorias científicas dizendo-se que elas são conjeturas genuínas - suposições altamente informativas acerca do mundo que embora não sejam verificáveis (isto é, embora não seja possível mostrar que são verdadeiras), podem ser submetidas a severos testes críticos. Elas são tentativas sérias de descobrir a verdade.


Aspectos que distinguem esta terceira concepção do essencialismo:


O essencialismo considera nosso mundo ordinário como uma simples aparência, através do qual ele descobre o mundo real.


Aceito a concepção (implícita na teoria clássica da verdade: a teoria da correspondência), de que devemos chamar "real" a um estado de coisas se, e, somente se, o enunciado que o descreve é verdadeiro. Mas seria um erro grave concluir disso que a incerteza de uma teoria, isto é, seu caráter hipotético ou conjetural, diminua de alguma maneira sua pretensão implícita de descrever alguma coisa real.


Nossos falseamentos indicam, portanto, os pontos em que tocamos a realidade, por assim dizer.


Porém, se uma teoria é testável, então ela implica que eventos de um certo tipo não podem acontecer, e desta forma ela afirma alguma coisa acerca da realidade. (eis porque exigimos que quanto mais conjetural é uma teoria, maior seja seu grau de testabilidade.) As conjeturas ou suposições testáveis são assim, em alguma medida, conjeturas ou suposições acerca da realidade; segue-se de seu caráter incerto, ou conjetural apenas que nosso conhecimento concernente à realidade que elas descrevem é incerto ou conjetural. E, embora somente se possa conhecer com certeza aquilo que é certamente real, é um erro pensar que somente é real aquilo que se pode saber com certeza que é real.


Concordo assim com o essencialismo em sua concepção de que a ciência é capaz de descobertas reais.


Admito que nossas descobertas são conjeturais. Mas isto é verdadeiro até mesmo para as explorações geográficas. Contudo os elementos de conjeturas não fazem as descobertas menos reais, ou menos significativas.


Há uma distinção importante que podemos fazer entre dois tipos de predição científica, e que o instrumentalismo não pode fazer, uma distinção que se liga com o problema da descoberta científica. Tenho em mente a distinção entre a predição dos eventos de um tipo conhecido, tais como os eclipses ou as tempestades de relâmpagos por um lado, e por outro lado, a predição de novos tipos de eventos (a que o físico chama "novos efeitos"), tais como a predição que levou às descobertas das ondas sem fio, da energia do ponto zero, ou da construção artificial de novos elementos que não se encontram na natureza.


Parece-me evidente que o instrumentalismo pode explicar somente o primeiro tipo de predição: se as teorias são instrumentos para a predição, então devemos assumir que seu propósito deve ser a determinação de antemão, como acontece com outros instrumentos. As predições do segundo tipo somente podem ser completamente entendidas como descobertas.


É minha crença que nossas descobertas são dirigidas pelas teorias nestes assim como em muitos outros casos, ao invés de crer que elas são o resultado de descobertas "devidas à observação"; pois, a própria observação tende a ser dirigida pela teoria.


Mas, talvez o mais interessante contraste entre a "terceira concepção" e o instrumentalismo origina-se em conexão com a negação deste último da função descritiva das palavras abstratas e das palavras disposicionais.


A terceira concepção desta questão é diferente. Sustento que a maioria das observações são mais ou menos indiretas e que é duvidoso de que a distinção entre incidentes diretamente observáveis e qualquer coisa que somente seja indiretamente observável conduza-nos a algum lugar.


Em minha opinião todos os universais são disposicionais..


Não acredito que uma linguagem sem universais seja eficaz; e o uso dos universais nos obriga a afirmar, e desta forma (pelo menos) a conjeturar, a realidade das disposições - não das disposições últimas e inexplicáveis, isto é, das essências. Podemos expressar tudo isto dizendo que a distinção costumeira entre os "termos observacionais"(ou os "termos não teóricos") e os termos teóricos está errada, uma vez que todos os termos são em algum grau teóricos, embora alguns sejam mais teóricos do que os outros; assim como dissemos que todas as teorias são conjeturais, embora algumas sejam mais conjeturais do que outras.



Bibliografia:


POPPER, Karl, Coleção "Os pensadores", Abril Cultural, 1980, tradução de Pablo Ruben Mariconda, original inglês: "Three views concerning human knowledge", conjectures and refutations, 1972, Routledge Kegan, London, pp 97-119


Maria Rita Demenis Fogalle - Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade de Ciências e Letras de Araras - SP.

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