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Ministério da Fazenda

CRSFN - Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional


IMPLICAÇÕES DA JUSFILOSOFIA NOS DOMÍNIOS DO DIREITO ( CIVIL, PROCESSO CIVIL, DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR , DO MERCADO FINANCEIRO, LÓGICA JURÍDICA, HERMENÊUTICA JURÍDICA E DIREITO CONSTITUCIONAL)

(*) Glênio Sabbad Guedes

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Da Filosofia do Direito.3. Das Implicações da Jusfilosofia nos Domínios do Jurídico ( a.Direito Civil. b.Processo Civil. c. Lógica Jurídica, Hermenêutica Jurídica e Direito Constitucional. d. Direito do Mercado Financeiro e Direito Administrativo Sancionador ). 4. Conclusão.

"É evidente que não somos capazes de colocar

o mundo num só destes esquemas. Isto nos obriga a pensar

segundo um pluralismo intelectual ( Ilya Prigogine )"

1.

INTRODUÇÃO

Não é desconhecida de todos a pouca importância atribuída aos estudos de Filosofia do direito na formação de nossos futuros advogados e demais operadores. Na verdade, trata-se dos reflexos de uma herança positivista, da qual ainda não logramos nos desvencilhar.

Propomos, no presente artigo, tentar demonstrar de que forma podemos colher frutos advindos da conjugação da jusfilosofia ao nosso direito positivo ( não se vá confundir, aqui, direito positivo com positivismo jurídico!...). E o faremos por meio de exemplos relacionados aos ramos supramencionados. Note-se : qualquer ramo do jurídico pode beneficiar-se dos estudos filosóficos ( aliás, a nosso conceber, tudo, na vida humana, ou a ela relacionada – é a tal referibilidade humana -, é filosofável ou jurisdicizável ); e os ramos eleitos acima apenas servem de exemplificação, sendo, na verdade, os por nós mais utilizados, atualmente, na atividade profissional, donde a razão de sua escolha.

2.

DA FILOSOFIA DO DIREITO

A Filosofia do Direito – ou Jusfilosofia – consiste na própria filosofia do direito aplicada às questões ou aporias jurídicas. Assim sendo, é preciso nos perquirirmos o básico, a dizer : qual a concepção, hoje, deste conhecimento chamado "filosofia"?

Essa pergunta, no fundo, já tem cariz filosófico, o que força o filósofo a se utilizar de uma metalinguagem para explicar, ao não-filósofo, em que consiste sua atividade – não que, perfrise-se, seja mais importante definir "filosofia" do que praticá-la.

Apoiados numa periodização historiográfica, podemos dizer que, até Kant, era comum defini-la pela via da negação, apontando-se o que ela não era ( v.g.: não era ciência, não era religião, não era senso-comum, etc. Interessante como esse critério contaminou também o jurídico, como, v.g., quando se tentou definir o direito administrativo por critérios negativistas ); hoje, contudo, sua área de atuação é tão diversificada que fica difícil, se não impossível, continuar optando pelo critério negativista – o qual, ao lume da lógica, não deixa de ser reprochável. Além disso, como salientado por Heidegger, em sua magistral obra "O que é isto – A filosofia", o significante "filosofia" não é mais por nós ouvido e entendido como o fora para os gregos. Variegados estratos semânticos foram se depositando, ao longo dos tempos, nesta camada vocabular, o que, de qualquer forma, já nos distancia da antiga Hélade, complicando, mais ainda, seu entendimento histórico e atual.

Sem embargo das fortes controvérsias em torno do tema – porque, repita-se, ele já é, de per si, filosófico -, podemos traçar alguns semas referenciais, quais sejam : nasceu ela, a filosofia, da emergência do "logos" ( entenda-se : discurso racional, razão, verbo ), afastando-se, portanto, das vivências míticas ; enquanto "logos", ou discurso racional, visa a apresentar modelos de explicabilidade do real, ou realidade, ofertando-nos conceitos, novos ou revisados, para o empreendimento dessa tarefa. De conseguinte, e elegendo – à falta de maior espaço redacional para nos mais bem justificar – por paradigmas os modelos filosofemáticos tecidos por Deleuze e Wittgenstein, abraçamos a idéia de que a Filosofia consiste na atividade de fabricar conceitos e/ou clarificá-los – quando necessário -, aplicando-os na explicação da realidade, ou, por outra, como esquemas de explicabilidade, dentro dos mais variados ângulos de visada, tudo nos limites impostos ao ser-humano pela linguagem – expressando, pois, nossa concordância com Heidegger, ao asserir ser "a linguagem a morada do ser" ( a ênfase, portanto, há de ser posta na conjugação da explicabilidade com a dizibilidade ).

Se Filosofia, dentro do critério por nós eleito, consiste na atividade supra-referida, o que significará, então, a lexia "filosofia do direito"? É aquela mesma atividade, voltada às seguintes questões : o que é o direito ? Qual seu fundamento? Como conhecê-lo ? Que valores ou valor maior representa ( seriam as quatro "logias" do jurídico : ontologia, epistemologia, gnoseologia e axiologia )? Volta-se a essas indagações, não com o propósito de se pronunciar sobre o que deve ser a realidade jurídica, mas sim sobre o que é ou foi, no sempre ingente esforço de clarificar o conceito ( atente-se que assim procede a Filosofia por mera precaução metodológica. Vale reproduzir, aqui as palavras do Prof.Pe.Henrique C. de Lima Vaz, em artigo publicado no livro "Ética, Justiça e Direito", quando afirma : "Ora, a filosofia , segundo lição já consagrada que Hegel enunciou no célebre Prefácio à sua Filosofia do Direito, não se pronuncia, por consciente precaução metodológica, sobre o que deve ser. Ela se contenta em inclinar-se, com olhar crítico, sobre o que é ou o que foi no sempre penoso esforço do conceito, para tentar encontrar os núcleos de inteligibilidade que se ocultam sob as aparências e, se possível, ordená-los num discurso coerente"). Tudo isso se deve à preocupação do filósofo em explicar os conceitos fundado na razão, no discurso racional, com metodologia, com critério, fornecendo as bases para um comportamento ou agir sensatos. Com isso, evitam-se exercícios arriscados de futurologia, tão ao gosto de nossos modernos magos escritores ou curandeiros espirituais...

Antes de entrarmos no tópico seguinte, "ratio essendi" de nossas intenções, não é despiciendo lembrar a missão cada vez mais difícil da Filosofia num mundo crescentemente tomado de insensatez e desrazões. Com efeito, não há confundir-se os projetos de um filósofo como Derrida, voltados à desconstrução de um logocentrismo exagerado, com as idéias antifundacionalistas voltadas a um logocídio, tão caras, repita-se, aos nossos modernos magos do saber. Derrida, v.g., apóia-se nos trabalhos de Freud e Nietzsche – verdadeiros desalojadores do sujeito cartesiano de sua morada pseudoinexpugnável do saber controlado e absoluto -, objetivando demonstrar nossas fragilidades teóricas, apontando os erros a que ficamos sujeitos por nos acharmos senhores da razão. A mensagem deixada por Nietzsche, v.g., de que o intelecto – domínio da racionalidade – não passaria de um "meio de preservação", de uma arma através da qual o homem, "mais fraco e menos robusto", se defende, "já que a ele está vedado travar luta pela sobrevivência com chifres ou presas aguçadas" ( in Úber Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne ) bate fundo e nos cala inexoravelmente! O mesmo se diga em relação a Freud, ao nos mostrar a influência das determinantes do inconsciente nos domínios da razão, impelindo-nos à pergunta estilhaçante : até que ponto dominamos nossa racionalidade, ou não somos por ela dominados, num exercício de auto-ilusão de referencialidade? Atuar desta forma, como o faz Derrida, é exercer um controle ou vigilância sobre os domínios da razão, seus resultados e perspectivas, é desconstruir o LOGOS, e não destruí-lo. Portanto, não há confundir-se a metódica da desconstrução do "logos", com a insensatez de sua negação, com o logocídio.

3.

DAS IMPLICAÇÕES DA JUSFILOSOFIA

NOS

DOMÍNIOS DO JURÍDICO

De modo a comprovar nossa proposição, a de que a Filosofia do Direito é deveras relevante para os operadores do jurídico, escolhemos alguns ramos do direito – poderiam ser todos ! – para tal mister, se não vejamos :

a) DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Um autor brasileiro bastante interessado em aliar a filosofia com os domínios da Processualística é o Prof.Willis Santiago Guerra Filho. Dos trabalhos que escreveu, ressalte-se aqui o voltado à coisa julgada, intitulado "Reflexões a Respeito da Natureza da Coisa Julgada como Problema Filosófico", o qual deu origem a outros artigos, de outros autores, questionadores das idéias ali levantadas.

Aplicando o exercitar filosófico no fenômeno da coisa julgada, fez-se ele as seguintes indagações : se, na esteira de Liebmann, definimos a coisa julgada como uma qualidade de imutabilidade ou estabilidade, incorremos em vício grave, já que uma qualidade, por ser algo acidental à coisa ( refere-se ao acidente "qua" categoria aristotélica ), não lhe inere, não é da sua essência. Logo, estaríamos confundindo essência com acidente, misturando realidades diametralmente opostas. A verdadeira substância da coisa julgada estaria no seu precípuo referencial semântico, a sentença. E passa o autor a tratar do problema pela ótica da semiótica, hoje uma das principais ferramentas na análise da linguagem.

Não vamos nos preocupar em repetir as idéias do autor. O interessante, aqui, é observar o exercício da filosofia sobre um dos tópicos mais importantes da Processualística, a coisa julgada. Ao debruçarmo-nos sobre o em que ela consiste, questionando seus principais teorizadores, propondo clarificação ou revisão de conceitos, buscando um atuar sensato na sua aplicação, estamos operando filosoficamente sobre institutos cruciais ao direito – se não cruciantes...

Ainda ao lume das idéias do autor citado, propôs ele uma epistemologia da jurisdição, ou seja, uma das quatro "logias" apontadas acima. Aqui, a idéia seria trabalhar o conceito de "jurisdição" como uma categoria do conhecimento jurídico, ao lado da legislação e da administração, buscando uma simetrização de estudos, já que, do ponto de vista comparativo, os estudos acerca da jurisdição estão em desvantagem com relação à administração e à legislação. Com isso, buscar-se-ia aprofundar o conceito, revisá-lo, atualizá-lo, "pós-modernizá-lo".

b) DIREITO CIVIL

Neste ramo do direito, a influência e impacto da Jusfilosofia chegam a ser ofuscantes. Efetivamente, se nos apoiarmos, de plano, nos trabalhos do Prof.Miguel Reale, os quais sustentam ser a pessoa-ser-humano o valor-fonte de todo o direito, conjugando-os com as principais preocupações do direito civil neste fim e início de milênio, como a clonagem, a fertilização assistida, a venda de partes do corpo, notamos ser impossível separar o direito da ética ou da filosofia moral, domínios imanentemente filosóficos. Hoje, aliás, o assunto candente é a bioética, a qual, revestida de cogência, passa a se chamar biodireito.

Definir "pessoa", estabelecer-lhe os valores primaciais, as formas corretas do agir-humano, são tarefas originariamente filosóficas, de cujos resultados principiamos a redigir nossos códigos, bem como a atualizá-los ou reformá-los. O que sucede é que não temos consciência de que assim operamos, de que somos caudatários dos resultados da filosofia. Típica herança de nossas correntes positivistas.

c) NA LÓGICA JURÍDICA, NA HERMENÊUTCA

JURÍDICA E NO DIREITO CONSTITUCIONAL

Os três domínios ora encimados recebem, hoje, forte impacto das mais diversas correntes da filosofia da linguagem, da hermenêutica filosófica, da lógica e da teoria da argumentação. Por falta de espaço, vamos tratar de algumas dessas contribuições para o jurídico.

No campo da argumentação, os trabalhos de autores como Manuel Atienza, Perelman, Viehweg, Alexy, Toulmin e MacCormick são significativos. Podemos, nessa área temática, afirmar existirem três contextos de argumentação :

o da produção de normas jurídicas ( argumentação "de lege ferenda") ;

o da aplicação de normas jurídicas na resolução de casos ( argumentação "de lege lata" ) e

a denominada dogmática jurídica. As baterias teóricas, desses autores, são mais voltadas para o segundo desses contextos.

Tais estudos, para a Ciência do Direito, são extremamente úteis, permitindo- nos sumariar alguns aspectos pertinentes à argumentação jurídica, a saber : argumentar vai significar, aqui, produzir razões em favor do que dizemos – mostrar que razões são pertinentes e por quê - ; rebater outras conclusões que justificariam uma conclusão distinta. Diante dessa constatação, perguntou-se a doutrina : será, então, a lógica dedutiva, o método a ser seguido pelo jurista, ao arrazoar suas conclusões ? Os estudiosos que negam o dedutivismo, que rejeitam a dedução como método jusargumentativo, provavelmente lembrariam a famosa frase do juiz norte-americano Holmes, de que "a vida do direito não tem sido lógica, senão que experiência", ou recordariam os trabalhos do Prof.Viehweg, ao afirmar não ser o método sistemático o natural ao jurista, senão o tópico, voltado ao estabelecimento das premissas, sendo uma verdadeira "ars inveniendi", e não uma "ars judicandi".

A resposta a essa questão foi formulada da seguinte maneira : devido ao conteúdo axiológico dos temas jurídicos, é insuficiente, de fato, o método dedutivo na resolução de conflitos fundados em nossa realidade humana assaz ebuliente e proteiforme. Contudo, seria radicalmente errôneo, ou ingênuo, dissociar ou contrapor a lógica dedutiva à argumentação jurídica. E o erro estaria em confundir explicar com justificar, e, dentro desta, justificação interna com justificação externa. Vejamos o primeiro binômio.

No distinguir-se a explicação da justificação, ser-nos-ia útil apreender os conceitos de Contexto de Descoberta e Contexto de Justificação, hauridos na Filosofia da Ciência.. Na descoberta, apenas descrevemos como se deu a geração e o conhecimento da teoria ( ex.: Newton, quando observou uma maçã caindo de uma árvore e deduziu a gravitação ) ; já, na justificação, precisa o cientista validar e confirmar sua teoria, justificando-a, requerendo a aplicação do método lógico. O mesmo se dá no processo de decisão jurídica. Dizer que um juiz tomou uma certa decisão, porque é adepto desta ou daquela convicção filosófica ou religiosa, é explicar-lhe a conduta ; mas se esse mesmo juiz toma a decisão fundado na interpretação de um dispositivo constitucional legitimador daquela conclusão, diz-se que justificou sua decisão. Ora, a um juiz, ou a um funcionário ou colegiado de um órgão público administrativo decidente ( v.g., Bacen ou CVM ), interessa que se justifique, e não que se explique. Donde chegar-se a estoutra ilação : ao justificar-se, precisa da lógica, do ferramental lógico. Precisa da dedução para articular sua justificação.

Na filosofia da linguagem, temos os reflexos de seus estudos aplicados ao discurso jurídico, à hermenêutica jurídica e ao direito constitucional. Comecemos a demonstrar sua relevância – a da filosofia da linguagem – reproduzindo a seguinte afirmação da Prof.Sylvain Auroux, em seu livro "A Filosofia da Linguagem" : "Em todas as sociedades sedentarizadas e urbanizadas, que dispõem de uma relativa densidade demográfica e de uma certa extensão territorial, vemos nascer, por pouco que elas possuam a escrita, os embriões de quatro disciplinas cardinais. Trata-se da matemática, da astronomia, do DIREITO e da gramática". Ou seja, o conceito de civilização está profundamente arraigado de arquétipos jurídicos, como relação jurídica, direitos, pretensões, deveres, etc., a ponto de já termos dissertações jurídicas com enfoque em questões da seguinte natureza : teríamos universais jurídicos, à guisa de universais lingüísticos? Em outras palavras, até hoje estão os lingüistas debruçados no problema de saber se categorias como sujeito, objeto, verbo, são universais a todas as línguas, ou haveria a falta de um desses elementos em alguma delas ? Pois bem, esse tipo de indagação foi transplantada para o reino do jurídico, com formulação quejanda : haveria universais jurídicos no mundo, ao modo dos universais lingüísticos?

O uso da filosofia da linguagem e da lingüística no direito é cada vez mais comum. Teorias, como as de Searle e Austin, dedicadas ao estudo dos efeitos das frases, quando pronunciadas ( teoria dos atos comunicativos : locucionários, ilocucionários e perlocucionários ), já foram exploradas por autores nacionais, como o Prof.Tércio Sampaio, em seu "Teoria da Norma Jurídica"; o uso do instrumental semiótico é crescente, como no-lo mostram as obras dos Profs.Marcelo Neves e Maria Helena Diniz ( com extensão para todos os ramos jurídicos, como o tributário, na voz do Prof.Paulo de Barros ).

No direito constitucional, os reflexos da hermenêutica filosófica são impactantes. Com efeito, teorias como as formuladas por Heidegger, Gadamer e Betti apresentam-se até hoje contribuintes de uma maior reflexão a respeito do conturbado e complexo fenômeno da interpretação. As idéias de pré-compreensão, círculo hermenêutico, contexto, sistema, provocaram reações as mais diversas nos meios jurídicos, a ponto de ter-se dito que foi um filósofo, da estatura de Gadamer, a mostrar pela primeira vez aos juristas que seu método interpretativo – o dos juristas – tem conotações próprias, necessariamente ligadas ao social, que o fazem diferente dos métodos interpretativos de um filólogo ou de um padre. Somando esses aspectos ao da interpretação de uma Constituição, cujos resultados são heterodeterminantes para todo o sistema, percebe-se o grau de "impactância" dessas reflexões nos sistemas jurídicos nacionais.

d) DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E

DO MERCADO FINANCEIRO

A opção por esses dois ramos do direito, como adiantado logo no início deste artigo, decorre de nossas atuais funções no Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, onde somos responsáveis pela emissão de pareceres na condição de "custos legis" em processos administrativos punitivos envolvendo instituições financeiras. E aqui, como, perfrise-se, em qualquer ramo do direito, também é possível invocar os estudos de filosofia, ou de jusfilosofia, em nosso auxílio. No campo do direito do mercado financeiro, vamos exemplificar com os estudos de Ética, feitos, normalmente, em campo filosófico ; já no direito administrativo sancionador, ou punitivo, vamos trabalhar, à luz da filosofia, com os conceitos indeterminados. Relembre-se serem apenas noções perfunctórias, de arte a corroborar nossas afirmações iniciais ( estudos mais aprofundados serão objeto de livro próprio, tratando destes tópicos ).

Não há objetar-se. Que as implicações dessa espécie de estudo são determinantes para o presente e o futuro de nossa ciência, é ponto indiscutível, a cuja negação só a um néscio seria cabível atribuir. Se o Prof.Prigogine, um dos maiores filósofos da ciência da atualidade, por cuja citação encetamos o artigo, entende só possível a análise deste mundo através de um pluralismo intelectual, somente a filosofia, por seu turno, é capaz dessa façanha.

DA ÉTICA NO MEIO FINANCEIRO

A consciência moral é apanágio exclusivo do ser humano. Com efeito, distinguir o bem do mal, sentir remorso ou arrependimento, perceber que valores morais vigem em determinada época, são experiências intrínsecas ao existenciário humano, às faculdades humanas. Partindo-se dessa premissa, pode-se concluir que um homem é – ou pode ser – um ente moral.

O campo da moralidade circunscreve-se ao agir humano, concreto e quotidiano. Ao campo da ética, no entanto, está ligado o estudo crítico dessa moralidade, ou, por outra, o estudo teórico dos valores morais. À moral pertence a prática do agir humano ; à ética, o teorizar dessa prática ( v.g. : o que é uma boa conduta? Quando praticamos o bem? Quando tomamos uma decisão justa? O que distingue o bem do mal? Quando um ato é tido por moral?).

Segundo a Ética, um ato é tido por moral quando se reveste das chamadas "condições transcendentais", isto é, quando preenche os pressupostos de moralização. Que condições são essas? Vejamos : a) liberdade : o homem precisa ser livre para praticar o ato ; b) consciência : o homem precisa saber o que está fazendo ; c) norma : o mesmo ato, além de ser livre e consciente, precisa ser regido por normas ( de fato, uma liberdade absoluta daria azo a verdadeiras arbitrariedades. A contenção das pulsões humanas é um imperativo de sobrevivência ). Ora, do exposto até aqui infere-se, no que tange à nossa proposta, a seguinte ilação : será a ética o estudo mater das normas que deverão nos orientar em nossas escolhas.

E aqui retomamos nosso tema no seguinte ponto : onde a ética ingressa no meio financeiro? É ela causa de preocupação, hoje, no meio financeiro, ou, por outra, interessa ela ao meio financeiro?

Ser motivo de preocupação, no meio financeiro, se demonstra pelo número de publicações interagindo os dois universos, das quais citam-se as seguintes : Ethics in the Financial Marketplace, de John L.Casey, recentemente traduzido para a língua portuguesa pela IMF Editora Ltda. ; L’Éthique Financière, PUF, "Que sais-je"?, 1991 ; La Déontologie des Activités Financières, de Clérmont Ferrand, 1997, e muitos, muitos outros títulos, abordando a sempiterna questão : que deveres existem ou são respeitados no mercado financeiro? O número de obras de ética financeira, pois, prolifera no mercado, respondendo a uma das perguntas acima.

Agora, por que é ela, a Ética, importante? Por uma simples razão : o mercado financeiro vive da e pela fidúcia. Este o seu combustível e sua razão de viver. Inúmeras pessoas confiam em bancos, corretoras, distribuidoras, consórcios, empresas de arrendamento e factoring, e aí depositam seus valores, esperando que sejam bem administrados, como se pertencessem ao próprio depositário. Se não há confiança, não há mercado financeiro ; e se não há mercado financeiro, inexiste circulação de dinheiro, inexiste empréstimo, inexiste financiamento, inexiste, em síntese, o crédito. E sem crédito, não se oxigena uma nação, não se faz uma civilização...

Cônscia deste problema, a Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários ( IOSCO) adotou, em 1990, os chamados Princípios de Negócios de Conduta Internacional, que se resumem nos seguintes enunciados : honestidade e imparcialidade ; diligência ; capacidades ; informações sobre os clientes ; informações para o cliente ; conflitos de interesses; e cumprimento de normas ( tais princípios são reproduzidos e comentados no livro de John Casey, acima citado ). Ora, o que são esses princípios senão ensinamentos extraídos dos estudos de ética? E, por igual, são esses mesmos princípios que alimentam o direito do mercado financeiro, o qual reveste de cogência os mesmos deveres referidos, regulamentando-os e revestindo-os de forma jurídica. É, repita-se, a influência da ética, e, pois, da filosofia e da jusfilosofia no direito do mercado financeiro.

DO CONCEITO OU TERMO INDETERMINADO

E A (JUS)FILOSOFIA

Eis aí um tópico tormensoso, um dos Cabos Hornos da Ciência Jurídica e, hoje, principalmente do direito administrativo. E, no nosso caso, tem substanciosa importância, já que um dos desafios de quem lida com o direito administrativo sancionador é fazer o controle das infrações administrativas, normalmente referenciadas por meio de conceitos indeterminados ( vide o emblemático caso do conceito de infração grave na Lei no.4595/64 ).

Mas, o que é um conceito indeterminado? Se já é um conceito, ainda é indeterminado? Os estudos acerca da ambigüidade e vagueza das palavras lhe são pertinentes ? Qual a relação entre Hermenêutica e Conceitos Indeterminados? Discricionariedade e Indeterminação Conceitual são fatores que se co-pertinem ou pode haver um sem o outro ( essa é uma pergunta típica de filosofia do direito administrativo )?

Obviamente não vamos aqui tratar de todas essas questões, mas, sim, apontar caminhos. E um deles começa da seguinte constatação : é impossível deixar de filosofar sobre a linguagem, se se entender por linguagem o meio pelo qual pensamos, detendo e criticando o conhecimento, meio, por seu turno, pelo qual nos aproximamos da realidade. O conceito indeterminado, assim, é linguagem, e por ele detemos um conhecimento. Agora, como devemos conhecê-lo, ou como queremos conhecê-lo, e uma questão filosófica.

Adotar a linguagem como uma mediação reflexiva com a realidade significa, desde já, abandonar a concepção essencialista da mesma, ou seja, deixar de acreditar que os conceitos são nomes revelativos do ser das coisas. É compreender que os nomes, os conceitos, devem ser interpretados dentro de um contexto social, ou, como diria o Prof.Manfredo Araújo, em sua magistral obra "Reviravolta Lingüístico-Pragmática", SP, Loyola, em seu contexto socioprático. O isolamento do conceito, tentando-se, embalde, devassar-lhe o significado, ou referente, é, ao revés, esvaziar-lhe de sentido, ou diminuir-lhe a potencialidade sígnica.

Com pertinência aos conceitos indeterminados, é de mister buscar-lhes o sentido no mais amplo horizonte possível de significações, devendo-se, para isso, verificar o texto do qual emana ; o oceano histórico em que imerso ; à derradeira, o fim que persegue. É preciso, em resumo, bombardear o texto com indagações do seguinte quilate : em que época foi editado ? A que servia, e a que serve agora ? Pode-se-lhe mudar sentido, sem alterar-lhe a forma ? Em que contexto socioprático está mergulhado? E caminhando assim poderemos iluminar melhor as potencialidades sígnicas de um conceito indeterminado ( a bibliografia, neste campo, é imensa. Em vernáculo, leia-se o livro do Prof.Leonel Ohlweiler, "Direito Administrativo em Perspectiva – Os Termos Indeterminados à Luz da Hermenêutica", ed.Livraria do Advogado, onde o autor relaciona a filosofia com os conceitos indeterminados ; para a literatura acerca do tema em outros idiomas, e referindo-se a outros sistemas, leia-se a obra do Prof.Antônio Francisco de Souza, "Conceitos Indeterminados no Direito Administrativo", ed.Almedina. Vale ressaltar, na lista ali registrada, as obras austríacas, país-berço da discussão sobre conceitos indeterminados ; na parte lingüístico-filosófica, leia-se a inexcedível obra do Prof.Manfredo Araújo, "Reviravolta Lingüístico-Pragmática", da ed.Loyola ).

Cada um dos temas atrás referidos daria ensanchas a um livro autônomo. E, relacionados com a Filosofia, a verdadeiras enciclopédias. Aliás, Filosofia e Direito são saberes enciclopédicos, no sentido que Edgar Morin atribui a esta palavra, a saber : uma "paidéia" ciclíca, onde o retorno ao que já foi estudado, revendo-se ou modificando-se o conceito, é um imperativo de sobrevivência. Portanto, filosofar é preciso...

4.

CONCLUSÃO

O pluralismo intelectual é, hoje – repita-se -, um imperativo de sobrevivência. Reflexo dessa constatação é o predomínio da interdisciplinaridade nos principais centros de reflexão filosófica e jurídica do mundo, a obrigar o operador jurídico "lato sensu" ( juízes, procuradores, advogados, servidores públicos, etc.) a ter conhecimentos cada vez mais diversificados, em um mundo cada vez mais globalizado. Uma das formas de lidar com esse novo tipo de multiconhecimento é por meio da filosofia, já que proporciona ela uma visão da totalidade. Obras, aliás, não faltam, a comprovar dita assertiva ( leia-se, v.g., o recente livro da Profa.Valéria Álvares Cruz, intitulado "O Direito e a Nova Visão da Ciência", onde já faz ela uma abordagem multidisciplinar em derredor do jurídico, entendendo pela necessidade de aliar o conhecimento jurídico aos resultados da moderna epistemologia ). Não entender assim o mundo em que vivemos, ou preterir a filosofia, como hodiernamente se faz, é suicídio intelectual puro!

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