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É preciso dar fim ao jogo de seduções no Judiciário

 

Roberto Wanderley Nogueira*

 

O viés conservador e tradicionalista do Poder Judiciário brasileiro materializa-se em grande medida nos enredos autoritários com que juízes se comportam diante das testemunhas e partes, quando prestam depoimentos pessoais. Com efeito, tem se constituído uma variável sociológica a perspectiva de descontinuidade entre os fundamentos da Instituição Judiciária e a sua realidade operacional.

 

Por isso, desde a Universidade, quando se disserta sobre que o Direito é igual a Linguagem, haja vista sua natureza cultural e normativa, o efeito é de impacto quase sempre tão intenso que o docente, cioso de sua função pedagógica integral, acaba sendo incompreendido, ou tido como insuficientemente didático.

 

A falta de compromisso com a essência das coisas, a busca das verdades mais consistentes, as quais não se confundem com aparências, dificulta o aprendizado do próprio Direito, enquanto Ciência da Cultura, cujas fórmulas, primeiramente, servem aos regimes de controle e dominação político-institucional determinados pelo Estado, mas acabam por alimentar, na prática, a cupidez humana tirada dos menores atos, estes que nada dizem com a dimensão genuína e maior do próprio Estado, e se sustentam, diante da identificação dos métodos, da ignorância que vem desde o ensino jurídico sem engajamento crítico e dos medos corporativos e/ou reverenciais.

 

O fenômeno acaba sendo ciclotímico porque a mobilização de toda uma categoria - a judicial - não encontra outra forma de fazê-lo, senão acomodando-se ante o sistema de opressões e aparências dominante.

 

Enquanto as Faculdades de Direito continuam a professar uma pedagogia escolástica, repetitiva de fórmulas e de métodos, abstraída do jogo histórico e social (conteúdo próprio do Direito), em que os alunos se tornam como que autômatos, puros técnicos decalcadores de formulários pré-fabricados e rotinas, em vez de pensadores do fenômeno jurídico, construtores desse saber, continuamos em nossa "viagem" por meio do éter da ficção científica.

 

Nesse contexto, as palavras encontram campo fecundo não exatamente a dizer o significado presente para cada uma delas e o seu articulado gramatical e/ou semântico, mas para fazer acreditar como verdadeiro aquilo que é falso e que atende diretamente a interesses inconfessáveis no mais das vezes. Justamente como ocorria, guardadas as proporções históricas e metodológicas, na Idade Média.

 

Uma tal cultura vai se espraiando verticalmente e é por isso que quanto mais hierarquia detiver o órgão judicial, menor, proporcionalmente, é a sua autoridade como representação social, e menor, portanto, resulta a sua taxa de independência. Sem dúvida, uma conclusão dramática para quem supõe que vivemos uma perfeita simetria entre valor e representação, entre sociedade e Estado.

 

É disso que decorrem expressões do cotidiano que não cabem na abordagem científica por serem absolutamente desconexas as relações do experimento com o seu resultado. Algumas dessas expressões mais recorrentes são as chamadas "ciladas dialéticas" por meio das quais o juiz se aprimora na arte de impactar testemunhas e partes em seus ditados, ora perguntando-lhes, mediante o reforço especioso dos gestos, em tom agressivo e majestático, ora insinuando-lhes, preconceituosamente, responsabilidades, ora, ainda, pregando-lhes peças argumentativas inúteis, na vã suposição de obter "verdades".

 

Outro traço característico dessa (im)postura oficial se opera verticalmente, como quando órgão judicial de segundo grau (recorrente) resolve eliminar o poder-dever de decisão do órgão judicial de primeiro, submetendo seu agente ao lancinante constrangimento de ver cassada, ex-absoluto, a própria instância decisória e violentando-lhe ao mesmo tempo o discernimento que é essência da função de julgar. O pior é que os medos, de uns como do outro, impedem o florescimento qualquer resistência legal.

 

Tais expressões, não encontrando justificação na ordem natural das coisas nem sequer nos ditados institucionais do Estado Moderno, especialmente se democrático e de Direito, estão, no entanto, bem consolidadas, tanto ativa quanto passivamente, no inconsciente coletivo das sociedades periféricas, caso brasileiro, eis que não reúnem mecanismos de controle espontâneo para esses quadros. E as agências oficiais têm se revelado insatisfatórias e mesmo não raramente contraditórias em prejuízo de toda participação democrática. Democracia participativa, neste sentido, implica o exame cuidadoso e exaustivo dessas possibilidades.

 

Pois há quem se interesse por manter tudo como sempre esteve para fazer do Estado e de suas categorias funcionais argumento de consumo, não de serviço, ainda que sobre isso se tenha de construir um edifício marcado pela inconsistência teórico-científica e pela falta de embasamento ético de que resulta o caldo de cultura que observamos em nossa quadra de vicissitudes sociais e políticas.

 

É nesse ambiente e é de acordo com a sua natureza de descontinuidades que deve ser entendida a loquaz expressão "cilada dialética", pois na verdade se trata de argumento cosmético para gerenciar a conciliação de ordens inconciliáveis: o Direito Processual e o maquiavelismo de Estado. Não há, desse modo, a menor chance de resultar idônea a coleta da prova pessoal quando premida por fatores exógenos que se lhe retiram toda espontaneidade, toda originalidade subjetiva. Ora, se já é árdua a tarefa de decodificar informação por meio de interlocutores ditos imparciais (os quais não estão autorizados, ética e juridicamente, a confundir com acepção de pessoas), imagine-se a hipótese de derivação lúdica, opressiva, fraudulenta...

 

A Teoria do Processo implica em um conjunto de normas instrumentais cujo propósito consiste em garantir, ainda que relativamente, a pesquisa da verdade, para o que um dos maiores fundamentos de toda liturgia jurídica é a lealdade de seus operadores. Afinal, o Direito é a arte do reto, do justo, do verdadeiro; não do relativamente verdadeiro, mas do essencialmente verdadeiro, ainda quando essa verdade esteja em curso permanente e resulte em uma construção utópica. Sentido inverso o desnatura, seja como arte, seja como ciência, seja como técnica disciplinadora das relações sociais, por fazê-lo remontar à sua fase primitiva. O que tornaria distinto a um objetivo de iniqüidades sejam elas teleológicas (de fim), sejam elas instrumentais (de meio)?

 

Quem, para pesquisar o Direito Processual e as condutas judiciais na coleta da prova pessoal, se louvar das recorrentes "ciladas dialéticas" para formatar seu próprio entendimento, vai obter duas aparentes vitórias intelectuais: uma corporativa, outra de conquista. Pela primeira, terá granjeado a perpetuação de uma situação por demais questionável: a introjeção desavisada no espaço anímico da testemunha para gerar "verdades jurídicas" tal o que se proporia a fazer algum torturador dos mais cruéis e empedernidos. Pela outra, o intérprete, notadamente quando operador processual, terá crescido em seu conforto psicológico ao recrudescer, para si mesmo e para a comunidade científica, uma crença atávica e, por isso, perversa que é incompatível com toda razoabilidade e justificação.

 

É preciso, finalmente, dar cobro ao jogo de seduções, vaidades, preconceitos, opressão e embotamento que habita, em maiores ou menores proporções, no espaço judiciário das sociedades periféricas, caso do Brasil, para que se evitem repercussões quase sempre injustas cujo alvo quase sempre é o mais fraco.

 

 


Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife (PE), professor-adjunto da Universidade Católica de Pernambuco e membro da Associação Juízes para a Democracia.

 

 

Retirado de: www.conjur.com.br