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Os desafios da mundialização

José Luiz Quadros de Magalhães
01.02.98

Este final de século apresenta sérios desafios para a humanidade. As questões
mais do que nunca apresentam-se em nível global, e a solução dos graves problemas
que ameaçam a estabilidade do planeta necessitam da construção de um novo modelo
de Estado, de sociedade e de economia.
O mundo, no final do século, assistiu a queda do "socialismo real", nos seus
modelos europeus, finalizando uma cruel guerra econômica, na qual os Estados
Unidos aparecem como vencedores momentâneos, com a falsa declaração do fim das
ideologias e com a expansão do modelo neoliberal, trazendo desemprego, e
promovendo uma acumulação e movimentação de capital jamais vista.
A década de noventa assiste o início do fim do projeto neoliberal, com um
retorno esmagador da proposta socialista democrática na Europa, que diz não a uma
economia que não tenha uma finalidade social.
Fenômenos interessantes assaltam o mundo. De repente os alemães orientais,
que promoveram uma revolução pacífica em nome da liberdade, percebem que esta
também não existe do outro lado do muro. Recentes publicações na Alemanha
unificada ressaltam aspectos impensáveis na época da guerra ideológica de
informações entre leste e oeste europeus. Um livro de DANIELA DAHN [1] ( Em
Frente, em direção oeste, sem esquecer) traz para o debate algumas questões. A
autora afirma que o principal capital dos alemães do leste é "justamente o papel
secundário do dinheiro", sendo que no seu entendimento a antiga Alemanha Oriental
(socialista, ou por alguns chamada de comunista), "desapareceu quando nós
começávamos a gostar dela." O livro denuncia o tratamento desigual estabelecido pela
lei e pela própria Constituição, entre os alemães do oeste e do leste. Em relação à
aposentadoria, por exemplo, um soldado da WEHRMACHT, mesmo tendo pertencido
a SS nazista, tem o direito a uma aposentadoria normal enquanto os funcionários da
antiga RDA tem seus proventos reduzidos. As conclusões do livro são compartilhadas
por grande parte dos alemães orientais. Setenta e cinco por cento dos OSSIS
(alemães do leste), afirmam que os cidadãos na Alemanha unificada não são iguais
perante a lei, sendo que estes se acham mais humanos que os alemães do oeste.
Apenas trinta por cento dos OSSIS acham que a democracia no modelo atual, é o
melhor regime.[2] <BR>
Para comemorar o sétimo aniversário da unificação alemã, a Volksbuhne de
Berlim preparou um espetáculo intitulado "A liberdade provoca pobreza" (Freiheit
macht arm). Sobre o espetáculo explica Frank Castorf: "Eu acredito que estávamos
finalmente mais livres no sistema do totalitarismo coletivo que na sociedade atual,
onde a única coisa que se percebe é um individualismo que condena tudo que parece
de perto ou de longe ao coletivo. Hoje eu diria que nos sentimos supérfluos e não
livres".[3]
O mundo hoje reage a expansão do fenômeno neoliberal. Entretanto as opções
não são claras. O eleitorado inglês e francês recentemente disse não ao modelo de
exclusão, e compete a esquerda, no poder em julho de 1997 em 12 dos 15 países da
União européia, apresentar respostas a um Estado Social em crise, por ser construído
em uma economia capitalista, hoje globalizada, excludente e concentrada. Há uma
solução econômica regional ou local num mundo economicamente globalizado?
No terceiro mundo, no entanto, o neoliberalismo é imposto por novos
autoritarismos. Do modelo peruano comandado por Fujimori, passando por Menen na
Argentina, chegamos no modelo de autoritarismo extremamente sofisticado do
governo Fernando Henrique Cardoso, travestido de uma capa de democracia, num
regime autoritário que se sustenta na fragilidade do Congresso, e do tribunal supremo
e no monopólio dos meios de comunicação social, trazendo um perigoso regime
autoritário, pois sustenta-se em instituições que deveriam servir à democracia, fazendo
a exclusão se expandir em níveis alarmantes.
Para melhor compreensão da atual realidade torna-se necessário entendermos alguns
fenômenos contemporâneos, como a crise do Estado Social, o neoliberalismo e a
globalização.

O ESTADO CONSTITUCIONAL

O Estado Constitucional moderno compreende um processo evolutivo que pode ser
dividido em seis fases distintas e três tipos de Estado: o Estado Liberal, o Estado
Social e o Estado Socialista, representando os três grandes tipos de Estado que
entretanto apresentam, cada um, uma enorme variante, segundo o lugar e a época.
Importante observar, que, ao dividirmos as fases evolutivas dos Estados
constitucionais, procuramos demonstrar esta evolução de maneira teórica e não
histórica. Desta forma, embora cronologicamente estas fases evolutivas tenham se
sucedido na história, cada Estado vivenciará esta experiência de maneira diversa, em
épocas por vezes diferentes, com intensidade diferente, sendo que nem todos
experimentarão todas as fases, e principalmente, haverá uma grande diferença na
realização dos modelos constitucionais correspondentes a cada tipo de Estado,
segundo o grau de desenvolvimento econômico de cada país, além da sua realidade
cultural.

Isto posto, podemos iniciar nossa evolução do Estado Constitucional moderno, com a
Revolução norte-americana em 1776, a Constituição da Federação norte-americana de
1787 e o processo da Revolução francesa a partir de 1789. Neste momento, afirma-se
o Estado Liberal, primeiro tipo de Estado Constitucional. Em linhas gerais este Estado
caracteriza-se pela omissão perante os problemas sociais e econômicos, não
consagrando direitos sociais e econômicos no seu texto além da regra básica de não
intervenção no domínio econômico. Garantem ainda, as Constituições liberais, os
direitos individuais, entendidos estes como direitos que regulam condutas individuais e
protegem a esfera de interesses individuais, contra o Estado, sendo o limite destes
direitos o direito do outro, e o direitos políticos. O conteúdo destes direitos será variável
de Estado para Estado, assim como o tratamento que estes direitos receberão será
diverso no tempo e no espaço.

A primeira fase do Estado liberal caracteriza-se pela vitória da proposta econômica
liberal, aparecendo teoricamente os direitos individuais como grupo de direitos que se
fundamenta na propriedade privada, principalmente na propriedade privada dos meios
de produção. O alicerce teórico da liberdade será a propriedade, e os cidadãos serão
aqueles que participam da ordem econômica de forma produtiva. Os direitos políticos
em sentido restrito, entendidos como direitos de participar no poder do Estado votando
e sendo votado, serão apenas dos proprietários que tenham acima de renda anual,
muitas vezes constitucionalmente prevista. Assim, o cidadão será apenas o
proprietário.

Numa segunda fase, ocorre uma evolução do conceito de cidadania, resgatando-se a
idéia da igualdade jurídica, e não mais a propriedade privada, como o alicerce dos
direitos fundamentais. Fruto de lutas sociais e parlamentares, que terão em cada país
pesos diferentes, conquista-se o direito ao voto secreto, periódico e universal.
Desaparece assim a diferenciação em razão do poder econômico para se ter acesso
ao voto, permanecendo entretanto, em vários países, a diferenciação em razão de
sexo, que desaparecerá em alguns casos apenas no século vinte, e outras limitações
permanecerão, como as que ainda hoje existem, como a idade e escolaridade por
razões claras.

As regras do liberalismo, embora bem simples, não levam ao que fôra prometido pelos
seus teóricos. O descumprimento das regras pelos competidores, levava a economia
do século XIX, ao mesmo tempo a um processo de crescimento jamais visto até então
e a uma acumulação e concentração de riquezas também incomuns. A concentração
de riqueza leva a eliminação da livre concorrência e livre iniciativa, idéias basilares do
liberalismo, ao mesmo tempo que acentuava a limites alarmantes a miséria e outras
formas emergentes de exclusão social. A resposta inicial do Estado liberal será a de
combater a crescente marginalidade, criminalidade e as revoltas sociais de
trabalhadores com a força policial e com reformas urbanas, que permitissem à polícia
controlar mais facilmente as revoltas sociais. Entretanto a organização internacional de
trabalhadores e a existência na segunda metade do século XIX, de uma proposta
científica como alternativa ao Estado liberal, fazem com que, a elite que se afirmou
com o modelo econômico construído neste século, percebesse a necessidade de
gradativamente incorporar reivindicações dos trabalhadores e propostas dos
socialistas, numa tentativa de atenuar as distorções sociais e econômicas e acalmar a
tensão social.

Desta forma, o Estado Liberal passa a admitir uma sensível mudança de postura
perante as questões socio-econômicas, passando a garantir determinados direitos
sociais como a limitação da jornada de trabalho, a regulamentação do trabalho do
menor e a previdência social. O Estado Alemão, recém unificado é um dos pioneiros
na legislação social, enquanto a Austria elabora sua legislação previdênciária e nos
Estados Unidos, em 1890, temos a lei Sherman, modelo de legislação anti-truste,
visando combater a concentração econômica que provoca a eliminação da
concorrência e da livre iniciativa.

Podemos caracterizar esta terceira fase como um momento de transição entre o
Estado Liberal e o Estado Social que nasceria com a primeira guerra mundial. Embora
no final do século XIX e início do século XX as Constituições liberais mantivessem
ainda a característica de ser essencialmente um texto político, sem a previsão de
intervenção no domínio econômico e nas questões sociais, a legislação infra-
constitucional incorpora estas mudanças, demonstrando a necessidade de urgente
mudança de postura por parte do Estado

Entretanto, a mudança tardia de comportamento do Estado não é capaz de solucionar
a grave crise que resulta na primeira grande guerra ( 1914 - 1918 ), marco divisor de
águas entre o Estado abstencionista e o novo Estado Social assistencialista. Em 1917
no México o mundo assiste a primeira Constituição Social, que mantendo o núcleo
liberal de direitos individuais e políticos, amplia o catálogo de direitos fundamentais
acrescentando dois novos grupos de direitos: os direitos sociais relativos ao trabalho,
saúde, educação, previdência e os direitos econômicos que marcam a postura
intervencionista do Estado que passa a regular a economia e em alguns casos a
exercer atividades econômicas.

Embora cronologicamente a Constituição Mexicana de 1917 tenha sido a primeira, a
Constituição matriz do constitucionalismo social será a de WEIMAR, Alemanha, em
1919.

Importante notar que as mudanças sociais através de um processo de democracia
representativa, não são capazes de oferecer respostas imediatas para o caos social e
econômico em boa parte da Europa, especialmente Alemanha e Itália. Ao mesmo
tempo, a revolução bolchevique na Rússia e a imediata expansão do recém criado
socialista ao vasto império czarista formando a União Soviética, representava uma
séria ameaça aos interesses do capital no restante da Europa. O Estado socialista que
surgiu também em 1917, na Rússia, ao contrário do Estado Social-liberal no modelo
alemão e mexicano, representava uma ruptura com o modelo de econômica e de
sociedade capitalistas, e com os valores liberais.

Podemos dizer que o Estado Social-liberal, significou uma necessária mudança do
Estado Liberal clássico, para de alguma forma preservar a idéia de uma econômica
capitalista livre, onde, a custa do não intervencionismo Estatal se preservasse a
concorrência e a livre iniciativa. Em outras palavras o liberalismo muda e o capitalismo
liberal passa a ter uma preocupação social para preservar uma importante parcela do
núcleo do pensamento liberal.

Não há uma justificativa geral aplicável a todos os Estados que passaram por este
processo, mas, em geral, a mudança de comportamento do Estado perante as
questões sociais e econômicas terá em menor ou maior grau, como motivação, a
pressão dos trabalhadores e dos movimentos sociais e das internacionais socialistas; a
pressão dos liberais pela necessidade de se preservar a concorrência comprometida
pela concentração econômica; a grave crise social, e a ameaça socialista, vindo, de
certa forma, o intervencionismo estatal, evitar a continuidade do processo de
concentração, mas, ao mesmo tempo, preservar o modelo de repartição econômica de
riquezas, e portanto privilégios econômicos, construídos durante o século XIX.

Desta forma, com o Estado socialista batendo às portas de boa parte dos Estados
europeus e com a incapacidade do modelo social-liberal responder de maneira urgente
à crise social e econômica, o mundo assiste ao nascimento e crescimento dos
movimentos nacionalistas na Europa, Asia e América.

Não se pode dizer que o fascismo assim como o nazismo, surgem como uma forma de
se evitar o crescimento do socialismo na Europa, mas sem dúvida a sua ascensão
definitiva terá um fundamental empurrão do grande capital nacional na Itália,
Alemanha e outros países, evitando com isto que a revolução socialista se expandisse
e com isto comprometesse interesses deste capital. No livro de Leandro Konder,
"Introdução ao Fascismo", o autor com clareza demonstra as razões pelas quais o
grande capital alemão e italiano percebem nos movimentos ultra-nacionalistas uma
força capaz de comprometer o movimento comunista nestes países e os financiam.

Os fascismos europeus assim como o nazismo tem em comum um discurso social, a
prática de uma economia dirigida voltada para a industria bélica, a violência, sendo um
movimento anti-democrático, anti-socialista, anti-liberal, anti-comunista, anti-
operariado, ultra nacionalista e especialmente no caso alemão, anti-semita.

A capacidade do fascismo e do nazismo de reverter a penetração do movimento
socialista reside na sua forte base cultural na qual se funda o discurso social
nacionalista. Resgatando elemento por sobre o qual se constrói o sentimento de
pertinência a um estado nacional, como o passado histórico comum, valores comuns,
idioma comum e projeto político comum, o fascismo nas suas variadas formas busca
construir a unidade nacional contra o estrangeiro que oprime, que é inferior, que
impede o desenvolvimento livre da nação, possibilitando com isto oferecer uma
alternativa muito mais próxima da realidade do povo, pois uma alternativa nacional,
capaz de desmobilizar a proposta internacionalista e nova de luta de classes, presente
no socialismo. Contra o internacionalismo socialista construído a partir do objetivo
comum de todos os trabalhadores para eliminar o capital opressor, nada melhor que o
discurso social nacionalista contra o opressor estrangeiro. Note-se que a proposta
fascista terá um forte apelo na Europa, pois funda-se em valores culturais fortemente
enraizados podendo facilmente desmobilizar o internacionalismo que procura ainda
construir uma solidariedade e uma unidade com bases multinacionais.

Com força para barrar a expansão da revolução socialista o fascismo (e o nazismo)
será a alternativa para o grande capital nacional, que financiará a sua ascensão ao
poder em vários Estados europeus, e de maneira mais profunda na Alemanha e Itália.

O Estado Social fascista, produto dos interesses do grande capital nacional e da crise
social econômica que se abateu sobre alguns países europeus, será responsável pelo
maior conflito militar da história da humanidade, e após a segunda guerra mundial,
com a derrota militar da Alemanha, Itália e Japão, o mundo terá duas novas potências,
sendo construído a partir de então um mundo bipolar e a guerra fria até 1989.
Importante notar que entre tantas derrotas, principalmente a da humanidade, os
vencedores são aqueles que têm suas reivindicações atendidas. Basta para isto
lembrarmos que entre as sete grandes economias do mundo encontram-se Alemanha,
Itália e Japão. O povo e os exércitos destes países foram derrotados, mas o grande
capital que financiou a alucinação fascista foi vitorioso mais uma vez.

O período pós guerra traz o renascimento do Estado Social assim como a expansão
do Estado Socialista. Enquanto o Estado Socialista representa uma ruptura com a
economia liberal e o capitalismo, o Estado Social representa um novo paradigma, sem
entretanto existir uma ruptura com o capitalismo liberal. As Constituições socialistas
consagram uma economia socialista, garantindo a propriedade coletiva e estatal e
abolindo a propriedade privada dos meios de produção. Há uma clara ênfase aos
direitos econômicos e sociais e uma proposital limitação dos direitos individuais, pois o
exercício destes direitos no Estado socialista está condicionado a evolução do Estado
e da sociedade socialista que devem ser capazes de educar e preparar o cidadão a
viver no futuro em uma sociedade completamente livre, onde não haja Estado, poder
ou hierarquia: a sociedade comunista.

Por esta característica do Estado socialista não podemos classifica-lo simplesmente
como uma espécie de Estado social. Sua evolução se destaca da linha evolutiva que
traçamos neste trabalho, pois rompe com a economia capitalista.

Retornando a nossa linha evolutiva que parte do Estado liberal, temos no pós guerra a
retomada do que podemos chamar de uma quarta fase evolutiva e teórica do Estado
Constitucional. Esta quarta fase que tinha sido bruscamente interrompida com os anos
violentos do fascismo e do nazismo, retorna agora com muito mais força, sendo que os
Estados da Europa ocidental experimentam a implementação eficaz do Estado de bem
estar social, o que, embora os Estados de economia periférica tenham adotado
constituições sociais, não ocorre de maneira completa na América Latina, Ásia e
África.

Este Estado Social-Liberal é marcado por um assitencialismo e clientelismo típico
deste novo liberalismo social. O Estado deixa a postura abstencionista onde não tinha
nenhuma preocupação social e econômica e passa a intervir no domínio econômica
regulando e em alguns casos exercendo atividade econômica, passando a assistir a
clientela permanente do Estado, ou seja, os excluídos do sistema social e econômico
necessários à existência do sistema capitalista. O pleno emprego é neste estágio do
desenvolvimento do capitalismo uma condição inexistente. O número de
desempregados iria apontar a força dos sindicatos e possibilidade de pressão sobre os
interesses do capital. Quanto mais emprego, mais fortes os sindicatos. As políticas de
emprego além de políticas de preços (controle da inflação) mantém os sindicatos sob
controle do capital e do Estado. Cria-se o desemprego para enfraquecer os sindicatos
assim como aumenta-se a inflação para reduzir salários, mantendo as reivindicações
salariais em níveis não ameaçadores aos lucros crescentes.

As Constituições Sociais elevam os direitos sociais e econômicos ao nível de norma
fundamental, havendo uma ampliação do leque de direitos fundamentais, somando-se
estes ao núcleo liberal de direitos individuais e políticos. Entretanto, a leitura oferecida
a estes direitos é ainda numa perspectiva liberal. Os direitos individuais ainda são
vistos como direitos contra o Estado e a liberdade fundamental existe se o Estado não
intervém no livre espaço de escolha individual. Os direitos individuais e políticos são
direitos de implementação imediata e os direitos sociais e econômicos aparecem como
normas programaticas, de implementação gradual e quando necessário. Os grupos de
direitos fundamentais são vistos de forma estanque. Isto faz com que, a democracia,
por exemplo, seja vista apenas como simples exercício do direito de votar e de ser
votado do cidadão.

A Europa pós guerra encontra-se destruída, e para os interesses da economia
capitalista liberal, ameaçada pela expansão da influência soviética. Os Estados Unidos
da América, nova grande potência global manterá nos países sob sua influência, os
seus interesses mantidos por métodos diferentes. Enquanto o terceiro mundo, de
economias periféricas, recebe Constituições sociais mas governos autoritários ou
ditaduras militares, que sejam capazes de manter o ideal comunista distante, a Europa
ocidental, aliada dos EUA receberá apoio para reerguer sua economia e construir de
forma efetiva o modelo de Estado de bem estar social.

Onde podemos afirmar que este modelo de Estado existiu ou ainda existe de forma
efetiva, será a Europa. Nas economias periféricas o Estado social funcionará de forma
imperfeita ou incompleta.

A implementação efetiva dos direitos sociais e econômicos em boa parte da Europa
Ocidental traz consigo o germe da nova fase democrática do Estado Social e a
superação da visão liberal dos grupos de direitos fundamentais. O oferecimento, neste
primeiro momento, de direitos sociais como saúde pública e educação pública
oferecerá à população os mecanismos para se formar, informar e daí se organizar,
exigindo agora a sua inclusão no sistema econômico e social, pressionando o Estado a
efetivar políticas econômicas que venham gerar empregos e salários justos. Esta
combinação de fatores transformará o Estado Social, que de uma perspectiva
clientelista, de manutenção da exclusão social, transforma-se em um Estado Social
includente, pressionado pela população cada vez mais organizada e informada.

Do ponto de vista teórico isto representa a consagração da tese da indivisibilidade dos
direitos fundamentais nesta 5ª fase evolutiva do Estado. Em outras palavras, a
liberdade não existe a partir da simples omissão do Estado perante os direitos
individuais, mas existe a partir da atuação do Estado oferecendo os meios para que os
indivíduos sejam livres. Desta forma, a liberdade de expressão não existe apenas
porque o Estado não censura a palavra ou a imprensa, mas porque os indivíduos têm
acesso a educação que lhe oferece o meio para formar a sua consciência filosófica,
política e religiosa de maneira livre, e expressa-la. O direito a vida deixa de ser um
direito a manutenção do organismo biológico funcionando porque o Estado não o
extingue, mas sim o direito à saúde, educação, meio ambiente, trabalho, justa
remuneração etc. Em outras palavras, os direitos individuais para existirem, para que o
indivíduo seja livre, ele tem que ter acesso a direitos sociais como saúde, educação, e
direitos econômicos como trabalho e justa remuneração. A democracia não resume-se
no ato de votar, mas na possibilidade de participação constante nos destinos do
Estado, da sociedade e da economia de uma população que é livre porque tem acesso
aos direitos sociais e econômicos.

O cidadão não é mais o que vota, mas sim o que vota, que se informa, que se educa,
que come, que mora, que veste, que trabalha, que tem dignidade.

Este Estado Social europeu, includente, necessita de crescimento econômico que lhe
garanta também crescente arrecadação tributária para que possa arcar com os
serviços públicos de qualidade e políticas econômicas includentes, o que faz diminuir a
demonda social básica, pois diminui a exclusão, podendo então cada vez mais
sofisticar a assistência a população e ainda poupar para promover a recuperação
econômica nos períodos de crises cíclicas e passageiras do capitalismo.
AS RAÍZES DA CRISE DO ESTADO SOCIAL

Enquanto há crescimento econômica e alta arrecadação tributária o Estado
social pode sofisticar-se, com serviços públicos cada vez melhores. A educação é
inteiramente pública e gratuita assim como a assistência médica de qualidade, em
vários Estados europeus. Entretanto a capacidade do Estado de resistir a crises tem
limites de intensidade e duração, e poucos contavam com a crise profunda da década
de 70.

Com a crise econômica há uma diminuição da arrecadação tributária. Para isto
o Estado Social estava preparado, pois vinha trabalhando com a idéia de superavit e
deficit orçamentário. Poupar nos momentos de crescimento e investir para recuperar a
economia nos momentos de crise. Entretanto a crise profunda diminui a capacidade do
Estado responder a crescente demanda social, estando mais frágil justamente no
momento onde é mais requisitado.

Este é o momento de penetração da proposta neoliberal já presente como uma
crítica ao Estado Social desde o pós guerra. Os neoliberais apresentam uma solução
para a crise que o Estado Social naquele momento não era capaz de superar.
Entretanto, para supera-la, era necessário criar-se as condições para acumulação e
expansão do capital, com a posterior criação de riquezas e empregos.
Para que o capital se expandisse era necessário que o Estado criasse as
seguintes situações ideais:

1- diminuição do Estado com processos de privatização, permitindo que o setor
privado pudesse atuar naqueles setores onde o Estado era concorrente ou único ator.

2- com a diminuição do Estado, inclusive nas suas prestações sociais fundamentais, é
possível a diminuição ou eliminação dos tributos do capital, deixando que a classe
assalariada arque com o que subsiste dos serviços públicos ( os dados do período
Reagan nos EUA ilustram esta afirmativa ).

3- enfraquecimento dos sindicatos para que não haja pressão eficiente sobre o valor
do trabalho ameaçando os lucros crescentes.

4- para enfraquecer os sindicatos é necessária políticas econômicas de geração do
desemprego, com a substituição gradual do trabalho humano pela automação ( o
capital tem investimento maciço em serviços e bens sofisticados para ampliação dos
lucros aumentando o consumo sem aumentar os consumidores, permitindo assim,
também, a geração do desemprego, o que pode parecer incompatível)

5- com o enfraquecimento dos sindicatos, a diminuição dos salários em determinada
área de produção. ( os salários perdem seu valor real com uma inflação controlada,
que permita a sua diminuição sem afetar o setor produtivo - em outras palavras,
inflação existente mas sob controle).

6- com o enfraquecimento dos sindicatos, a diminuição dos direitos sociais
especialmente os direitos constitucionais do trabalhador, o que significa um retorno a
características da terceira fase evolutiva do Estado.

Nas economias periféricas, onde o Estado Social é muito mais frágil, este
processo ocorre com maior velocidade e profundidade, trazendo um novo e importante
dado neste processo: o capital globalizado começa a se deslocar com enorme
facilidade a procura de Estados que lhe ofereçam melhores condições para expansão
dos seus lucros. Ao contrário do Estado Social fascista, onde o grande capital se
tornou nacional para defender seus interesses, agora o grande capital é apátrida, não
tendo nenhum compromisso com o Estado nacional que se enfraquece cada vez mais
diante da impossibilidade de controlar a economia e o poder econômico privado.

Este fato faz com que ocorra uma migração do investimento, principalmente da
Europa, onde o Estado, por exigência de uma população informada e organizada, é
ainda grande e caro, para Estados do terceiro mundo. Talvez este seja um golpe fatal
no Estado Social. Não podendo ignorar a globalização da economia os governos
europeus conservadores e mesmo os de tendência social-democrata, procuram de
certa forma estabelecer as condições exigidas pelo capital.

Recentemente a população européia disse não ao neoliberalismo, quando
colocou no poder os socialistas e trabalhistas em grande parte dos Estados. Resta
saber sobre a possibilidade de se construir uma alternativa econômica capaz de
manter a segurança social com crescimento econômico e geração de emprego. Se isto
não ocorrer o que vem a seguir já foi anunciado: com a crise do Estado Social e
democrático de direito, a inviabilidade de uma solução socialista, o fim do liberalismo e
a farsa da solução neoliberal, os europeus anunciam o neofascismo, força parlamentar
importante hoje na Noruega e Áustria e conquistando espaço na Alemanha, França e
em quase toda Europa central e oriental.[4]

A GLOBALIZAÇÃO

O que é a globalização? Para responder esta pergunta vamos consultar os mais
recentes estudos sobre a questão.

Para Jean Luc Ferrandérry a globalização é um conceito que apareceu no meio dos
anos 1980 nas escolas de negócios norte-americanas e na imprensa anglo-saxã. Esta
expressão designa um movimento complexo de abertura de fronteiras econômicas e
de desregulamentação, que permite às atividades econômicas capitalistas estenderem
seu campo de ação ao conjunto do planeta. O aparecimento de instrumentos de
telecomunicação extremamente eficientes permitiu a viabilidade deste conceito,
reduzindo as distancias a nada. O fim do bloco soviético e o aparente triunfo planetário
do modelo neoliberal no início dos anos 1990 parecem dar a esta noção uma validade
histórica. Na França foi escolhido o nome mundialização para substituir glabalização,
que insiste, particularmente, sobre a dimensão geográfica e tentacular, sem esquecer
o sentido original. [5]
Podemos então dizer que a globalização tem sua origem na literatura destinada às
firmas multinacionais, designando inicialmente um fenômeno limitado a uma
mundialização da demanda se enriquecendo com o tempo até o ponto de ser
identificado atualmente a uma nova fase da economia mundial.

Não há entretanto uniformidade na conceituação do termo podendo-se encontrar
quatro significados distintos mas semelhantes:

1- Théodore Levitt propõe este termo para designar a convergência de mercados no
mundo inteiro. Globalização e tecnologia serão os dois principais fatores que fazem as
relações internacionais. Em consequência, a sociedade global opera com constância e
resolução, com custos relativamente baixos, como se o mundo inteiro ( ou as principais
regiões) constituíssem uma entidade única; ela vende a mesma coisa, da mesma
maneira em todos os lugares [Levitt, Theodore. "The Globalization of Markets", Harvard
Bussiness review, Harvard, Maio- Junho, 1983.]. Neste sentido, a globalização dos
mercados se opõe a visão anterior de um ciclo de produção que consistia na venda ao
países menos avançados os produtos que ficaram obsoletos nos países mais ricos. O
termo se aplica mais a gestão da multinacionais e diz respeito exclusivamente às
trocas internacionais.[6]

2- Em 1990, esta noção é estendida por Kenichi Ohmae ao conjunto da cadeia de
criação do valor ( pesquisa-desenvolvimento [P-D], engenharia, produção, mercado,
serviços e finanças). Se num primeiro momento uma firma exporta a partir de sua base
nacional, ela estabelece em seguida serviços de vendas no estrangeiro, depois
produzidos na localidade e ulteriormente ainda estabelece uma medida completa da
cadeia de valor na sua filial. Este processo converge em direção a uma quinta etapa: a
integração global, uma vez que as firmas que pertencem a um mesmo grupo
conduzem o seu P-D, financiam seus investimentos e recrutam pessoal em escala
mundial. Desta forma globalização designa ainda uma forma de gestão, totalmente
integrada em escala mundial da grande firma multinacional.[7]

3- Desde que estas multinacionais representam uma fração importante da produção
mundial, os diversos espaços nacionais se encontram obrigados a se ajustarem às
suas exigências pelo fato da extrema mobilidade que elas se beneficiam hoje
(comércio, investimento, finanças e P-D). Desta forma a globalização significa então o
processo através do qual as empresas, as mais internacionalizadas, tentam redefinir a
seu proveito as regras do jogo antes impostas pelos Estados-Nação. Nesta
conceituação deixamos o domínio da gestão interna das firmas para abordamos a
questão da arquitetura do sistema internacional. Passamos da micro para a macro
economia, das regras da boa gestão da economia privada para o estabelecimento de
políticas econômicas e a construção ou redefinição das instituições nacionais. Esta
noção evoca muito mais o processo em curso do que um estado final do regime
internacional que substituirá aquele de Bretton-Woods. Constantemente, alguns
sublinham o caráter irreversível das tendências em curso frente a impotência das
políticas tradicionais dos governos diante das estratégias das grandes firmas.

4- Finalmente, a globalização pode significar uma nova configuração que marca a
ruptura em relação às etapas precedentes da economia internacional. Antes a
economia era inter-nacional , pois sua evolução era determinada pela interação de
processos operacionais essencialmente no nível dos Estados-nação. No período
contemporâneo vemos emergir uma economia globalizada na qual as economias
nacionais serão decompostas e posteriormente rearticuladas no seio de um sistema de
transações e de processos que operam diretamente no nível internacional. Esta
definição é a mais geral e sistemática. De uma parte, os Estados-nação, e, por
consequência os governos nacionais, perdem toda a capacidade de influenciar as
evoluções econômicas nacionais, ao ponto que as instituições centralizadas herdadas
do pós-guerra devem ceder lugar a entidades regionais ou urbanas, ponto de apoio
necessário da rede tecida pelas multinacionais. De outro lado, os territórios submetidos
a este novo modelo ficam fortemente interdependentes ao ponto de manifestar
evoluções sincronizadas, por vezes idênticas, mas em todo caso em via de
homogeinização. Adeus portanto ao compromisso político nacional e a noção mesmo
de conjuntura local.
A ALTERNATIVA

Adeus ao compromisso nacional e a noção de conjuntura local?
Olivier Dolfus afirma:

"A mundialização não suprimiu as atividades locais, de proximidade: como
aquelas do cabeleireiro ou da escola maternal. Alguns processos, locais, não têm
influência e seus efeitos sobre o lugar se apagam rápido ( a fumaça de uma chaminé ).
Mais adicionados na escala global, produzem fenômenos de uma natureza diversa que
intervém em níveis espaciais e temporais sem uma medida comum com os fluxos
modestos originais. Desta forma nada será mais falso que pensar que do local ao
global, os fenômenos se repetem um dentro do outro como as bonecas russas.
Praticamente, a cada nível, eles mudam de valor, senão de natureza ou de sentido:
alguns se somam, outros se multiplicam e outros se anulam."[8] <BR>

Por tudo que estudamos até aqui percebemos que permanece uma grande
interrogação: para onde ir. O neoliberalismo não é capaz de responder às
necessidades de trabalho e bem estar social da população mundial, o socialismo real
está ameaçado de desaparecimento assim como muito o liberalismo clássico morreu
para não mais voltar, e o Estado social está em crise de difícil solução pois mergulhado
num mundo globalizado. Para onde ir?

A resposta está na construção da sexta fase de evolução do Estado, uma
alternativa de uma democracia participativa que deve ser construída em nível local, na
cidade, espaço da cidadania, encontrando um novo papel para o Estado e para a
Constituição.[9]

Todos os três tipos de Estados que estudamos aqui, nas suas variadas formas
e nas distintas fases de evolução, têm um ponto fundamental em comum: todos
estabelecem na Constituição um modelo de sociedade e de economia. Seja o modelo
liberal, cuja regra básica é a não intervenção no domínio econômico numa sociedade
que tem como valor principal o individualismo e a propriedade privada, seja no Estado
Socialista que tem Constituições que estabelecem uma economia e uma sociedade
socialista, com fundamentos e valores coletivos, até o Estado Social, modelo de
Constituição eclética na qual convivem lado a lado os princípios dos tipos de Estados
ortodoxos socialista e liberal, invariavelmente as Constituições a partir do século XVIII
estabelecem um modelo de Estado, sociedade e economia que deve ser
obrigatoriamente seguido por todos os cidadãos. Os que não seguem o modelo posto
são os excluídos, os miseráveis, os loucos e os presos, marginais do sistema.

O papel do Direito, da Constituição é o de estabelecer as margens, os limites
desta sociedade, e, embora estes limites sejam cada vez mais largos, eles continuam
a existir, como requisito e mesmo, razão de ser do Estado.

Desta forma o Estado tem como finalidade importante a função de reagir e
conservar. Conservar o modelo de sociedade e reagir com sua força a qualquer
tentativa de mudança fora das permitidas pelo modelo posto. Mesmo com o atual
enfraquecimento do Estado nacional, este ainda é importante dentro do sistema
globalizado para reagir a qualquer tentativa de mudança fora dos limites estabelecidos,
agora, pelo grande capital transnacional globalizado, conservando desta forma o
modelo existente e seus interesses e sistema de privilégios.

No lugar deste Estado reacionário, nas suas formas liberal, socialista, social-
liberal, social-fascista e neoliberal devemos propor um Estado democrático onde a
Constitucional nacional garanta os processos democráticos de constante mudança da
sociedade, com respeito aos direitos humanos universais não culturais, deixando que
cada município estabeleça na sua constituição de forma livre e democrática o seu
próprio modelo de sociedade, de economia, de repartição de riquezas, e de convívio
social, desde que respeitados os processos democráticos da Constituição nacional e
que sejam respeitados os princípios universais de direitos humanos.

O caminho em direção ao novo poder das cidades, o poder local, hoje é sentido
de maneira inequívoca em todo o mundo. Os mecanismos, princípios, modificações
estruturais na administração municipal são estudados no nosso livro "Poder Municipal:
paradigmas para o Estado Constitucional brasileiro", para o qual remetemos o leitor
para compreensão da alternativa democrática proposta.

1 DAHN, Daniela. Westwarts und nicht vergessen. Vom Unbehagen in der Einheit,
Rowohlt, Berlin, 208pp.
2 LE MONDE DIPLOMATIQUE, février 1997, page 12.
3 LE MONDE DIPLOMATIQUE, février 1997, page 12.
4 Ler "O Fascismo está voltando?" de Jacques Juliard , Ed. Vozes, 1997, Petrópolis,
que aborda a queda do comunismo e a crise do capitalismo. Sobre a realidade
econômica atual ler: FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico, Editora Unesp, São
Paulo, 1997 e GALBRAITH, John Kenneth. A Sociedade Justa - uma perspectiva
humana, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1996.
5 FERRANDÉRRY, Jean Luc. Le point sur la mondialisation. Presses Universitaires de
France PUF, Paris, 1996, p.3.
6 Mondialisation au-dela des mythes, La Découverte - Les dossiers de L'état du
Monde, Paris, 1997, p.15.
7 OHMAE, Kenichi. L'entreprise sans frontière: nouveaux imperatifs stratégiques,
InterÉditions, Paris, 1991 (trad. De: The Bordless World: Power and Strategy in teh
Interlinked Economy, Fontana, Londres, 1990. OHMAE, Kenichi. Triad Power, The free
press, New York, 1985. OHMAE, Kenichi.. De l'État Nation aux Etats Regions. Dunod,
Paris, 1996 (trad. de : The end of the Nation State, The free press, New York, 1995.
MONDIALISATION AU DELA DE MYTHES, ob.cit, p.15.
8 DOLFUS, Olivier. "La mondialisation". Presses de Sciences Po, Paris, 1997, La
Bibliotheque du Citoyen, p. 145.
9 Sobre o assunto ler: QUADROS DE MAGALHÃES, José Luiz. Poder Municipal:
paradigmas para o Estado Constitucional brasileiro, Editora Del Rei, Belo Horizonte,
1997.