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Trabalho, informalidade, política e espaço público

Francisco José Ramires

 

Afirma-se que a sociedade baseada no trabalho está com seus dias contados. O grande número de pessoas que não conseguem se integrar no mercado formal, segundo alguns, coloca em xeque tudo o que foi dito, até então, a respeito das relações e contradições sociais. Não desfrutando do vigor de outrora, o trabalho não mais seria fonte de dignidade, muito menos a promessa emancipadora de tempos atrás. Afinal de contas, será isso verdade, justamente no momento em que tantos fatos parecem dizer justamente o contrário (conflitos entre camelôs, comerciantes e policiais; enormes filas nos centros de apoio aos trabalhadores; carteiras de trabalho sendo levadas em cerimônias religiosas para receberem as bençãos do Céu; pesquisas que mostram índices de desemprego nunca antes vistos)? Isso para ficar em alguns exemplos.

O trabalho exercido nas ruas coloca os camelôs não somente em uma situação distinta em relação aos trabalhadores formais, mas também aos próprios informais, escondidos nas estatísticas sobre desemprego e sob os "bicos" que garantem a sobrevivência. A visibilidade proporcionada pelas ruas sugere aspectos importantes a respeito do trabalho e dos trabalhadores informais. Paradoxalmente, estar nas ruas é existir e ter a possibilidade de lutar por reconhecimento e por um lugar na vida social. Nas ruas e praças, os camelôs oferecem um mote para se pensar a relação entre espaço público e trabalho, no momento em que vários intelectuais proclamam, em alto e bom tom, a perda da importância deste. Como se tentará mostrar aqui, o trabalho resiste e revela seu poder nas discussões acadêmicas, na vida das pessoas e nos questionamentos sobre a sociedade.

A reflexão que aqui se inicia está fundamentalmente ligada à necessidade de se desenvolver a noção de espaço público em um sentido muito específico.

O espaço público está diretamente ligado tanto à ação como ao discurso, ambos dotados de sentido na constituição de um "mundo comum", sendo que este remete a um sentimento de partilha de um destino igualmente comum (TELLES, 1990:28). No que concerne aos camelôs, a constituição de sindicatos e a ocorrência de movimentos reivindicatórios anunciam uma novidade, tendo em vista que, até então, todas as experiências associativas entre trabalhadores urbanos centravam-se nas reivindicações nascidas no seio das indústrias de ponta (sobretudo as metalúrgicas) e seus personagens partilhavam a mesma situação de formalidade no que diz respeito à relações trabalhistas, mesmo que marcadas por altos índices de exploração. De um modo geral, os informais não se mobilizavam. Estavam tão somente unidos pela solidão de quem luta hoje para obter um trabalho que talvez não esteja disponível na manhã seguinte.

Contudo, os acontecimentos decorrentes dos conflitos entre camelôs, comerciantes e Estado parecem sugerir um novo estatuto para os informais, ainda mais se for levado em conta o crescente número de desempregados e o aumento da precarização das relações de trabalho. Citando Sabóia, Ermínia Maricato afirma que, em São Paulo, entre 1982 e 1992, o número de trabalhadores com carteira assinada caiu de 64% para 58%. No mesmo período, os trabalhadores por conta própria (5% em 1982) representavam 20% da população ocupada em 1992 (MARICATO, 1996:50). Os últimos dados fornecidos pela Fundação Seade, em conjunto com o DIEESE, só vêm reiterar a situação aludida. Mas o que significa esse novo estatuto?

No livro Trabalhador por Conta Própria sob o Capital, Reginaldo Prandi, ao traçar um quadro a partir do dispêndio de força de trabalho em atividades com nula ou quase nula capitalização, do auxílio de membros da família e da ausência de vínculo empregatício (PRANDI, 1978:25-6), afirma que as pessoas nessa situação não estabelecem relações de cooperação necessárias à existência (PRANDI, 1978:40). Constituem o que o autor chamou de classe intermediária, cujos interesses escapam à oposição entre capital e assalariamento. Conseqüentemente, não possuem um projeto político próprio capaz de dar sentido à sociedade como um todo (PRANDI, 1978:69), pois o capital pode, a qualquer momento, recrutar essa força de trabalho (PRANDI, 1978:40).

Ora, talvez seja possível afirmar que os camelôs, por escolha própria e/ou por um aumento dos obstáculos à integração nas relações formais de trabalho, ao se envolverem na venda de mercadorias nas ruas (ao contrário dos informais que vivem de "bicos" e estão isolados uns dos outros), estabelecem relações de cooperação a partir da percepção de uma situação comum por eles compartilhada. Como sugere Telles, dessa situação emerge um mundo que vai além da vida pessoal, não sendo, portanto, encarado de uma forma meramente privada (TELLES, 1990:31). É assim que, nas ruas, a presença dos camelôs suscita inúmeros questionamentos a respeito da apropriação do espaço e da própria situação do trabalho em nossa sociedade. Logo, faz sentido indagar: é justo se apropriar das ruas para prover a própria sobrevivência? Há trabalho fora dos limites definidos pelo emprego formal, ainda mais em um período em que esses mesmos limites estão sendo redefinidos? Há legitimidade nessa situação?

Permanecendo no âmbito estritamente privado ou, quando muito, nas estatísticas (pouco relacionadas à constituição de um espaço público), os trabalhadores informais se tornam supérfluos para a sociedade. Restritos à dimensão privada, são impedidos de serem vistos e ouvidos, fato que é de fundamental importância para o assunto aqui abordado, pois não se dar a conhecer é não existir (TELLES, 1990:33-4), tal como sugere o trecho de Hannah Arendt.

 

"A privação da privatividade reside na ausência dos outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer e, portanto, é como se ele não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou conseqüência para os outros e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros" (ARENDT, 1983:67-8).

 

Vale dizer o seguinte: os informais não se tornam supérfluos no sentido de estarem totalmente alheios em relação ao processo de produção social da riqueza. Muito pelo contrário. A própria literatura acerca da informalidade revela um ponto de inflexão no que concerne aos mercados formal e informal. Se, antes, o informal era visto com base na noção de marginalidade e de autonomia em face das relações tipicamente capitalistas, posteriormente houve uma guinada no sentido de se começar a analisá-lo como sendo determinado pelo sistema de relações de mercado. Nesse sentido, entre o formal e o informal há todo um vínculo dinâmico e intersticial (PIRES, 1995:152). Há uma relação baseada em subcontratação, prestação de serviços, venda de mercadorias e poupanças acumuladas em períodos de submissão às relações trabalhistas formais. Se assim é, a análise sobre a informalidade não se esgotaria na noção de estratégia de sobrevivência, muito menos na idéia de resistência que os mais pobres impõem ao capitalismo. Seria necessário ver a informalidade como uma "condição estrutural" desses trabalhadores em uma economia perversa (PIRES, 1995:160).

A fim de esclarecer melhor a relação acima apontada, vale a pena expor algumas idéias desenvolvidas por Prandi. Segundo ele, o trabalhador por conta própria, como já mencionado, está "fora" da oposição entre assalariados e capital, mas sua situação é profundamente determinada pelo desenvolvimento dessa relação (PRANDI, 1978:30). Nesse sentido, as atividades desenvolvidas por esses trabalhadores existem pelo fato de não terem sido assumidas de maneira intensiva pelo capitalismo. Contudo, há uma ressalva a ser feita aqui, tendo em vista que os camelôs vendem mercadorias que reconhecidamente fazem parte do processo produtivo engendrado pelo capitalismo e não, por exemplo, produtos de fundo de quintal.

Prandi também afirma que o fato de tais atividades serem oferecidas a um preço menor, se comparadas a uma situação em que fossem empreendidas pelo sistema, contribui para o barateamento da reprodução da força de trabalho (PRANDI, 1978:40), o que significa salários mais baixos. Além do mais, essa alternativa de sobrevivência faz com que o número de desempregados não se converta em uma situação que comprometa de forma muito acentuada o sistema capitalista, mostrando incisivamente suas contradições e gerando conflitos que visem a anulá-las ou, ao menos, minimizá-las..

Além do mais, para poder existir, o trabalhador por conta própria requer duas condições básicas: o indivíduo deve ter a posse de seus próprios meios de produção e também deve haver um mercado disposto a consumir os produtos/serviços por eles comercializados (PRANDI, 1978:49). A segunda condição parece evidente quando se pensa na situação dos camelôs. Entretanto, a questão da posse dos meios de produção parece fornecer uma pista interessante no sentido de se buscar uma diferenciação em relação aos demais trabalhadores aqui aludidos, tendo em vista a conhecida existência de camelôs que não gozam nem mesmo da posse de sua própria barraca (pagam aluguel), o que parece sugerir o poder das relações tipicamente capitalistas que, mesmo na informalidade, produzem uma separação entre detentores dos meios de produção e trabalhadores, cuja única possibilidade de existência se dá pela venda de sua força de trabalho.

Esse foi apenas um pequeno apanhado das muitas idéias tecidas em torno das relações de trabalho. Importante mesmo é frisar que os informais são supérfluos no estrito sentido de que a eles não é dado o direito, legitimamente reconhecido, de questionar sua posição na sociedade. Cabe a eles o papel de amenizar conflitos que possam ser engendrados com o acirramento das contradições sociais, oferecendo mercadorias e serviços àqueles que não os podem adquirir no mercado formal e constituindo alternativas de trabalho que possibilitem a (re)produção da vida. Sem falar nos fiscais que aproveitam o ensejo e perpetuam nossa já histórica "confusão" entre patrimônio público e privado. Quanto à possibilidade de protestarem, a sociedade "pede" que se calem, pois não têm nada a dizer. Mas voltemos ao espaço público.

Há aqui uma pista ímpar para pensarmos os motivos que fizeram com que os informais ficassem relegados a um segundo plano nas teorias sociológicas, nas discussões sindicais e nas indagações que a sociedade constantemente faz a si mesma.

A incapacidade do sistema capitalista de incluir uma parcela significativa da população, gerando, assim, elevados índices de desemprego, que parecem não recuar tão cedo (aliás, um dos muitos argumentos usados pelos que "esperam", de camarote, a chegada da tão falada sociedade sem trabalho), em conjunto com os laços estabelecidos pelos camelôs, seja pela percepção de uma situação comum baseada na permanência na rua, seja por relações de parentesco e vizinhança, lançam as bases para a constituição de um espaço público.

Isso permite por em dúvida um tipo de pensamento que julga necessário o desenvolvimento econômico para que os excluídos do mercado de trabalho estabeleçam/retomem uma situação de formalidade. O tão almejado crescimento não vêm e os grandes investimentos, quando se dão, geram um pífio número de postos de trabalho, não restando outra alternativa a esses trabalhadores a não ser vir a público, buscar uma importância e desnudar a singularidade de cada um por meio de ação e palavras. No espaço público, toda ação significa "dar início a um novo começo" (TELLES, 1990:34-5) e este pode ser visto como uma nova apropriação do espaço ou mesmo algo que revela o trabalho enquanto centro para se pensar não apenas nessa apropriação, mas na desigualdade que marca a vida de muitas pessoas. Mas e quanto ao discurso?

A palavra preserva a ação do esquecimento. Por meio dela, é possível dar significado aos acontecimentos (TELLES, 1990:35). Assim, a perda do espaço público, no qual ação e discurso podem proporcionar um acordo frágil e temporário de intenções (o que Arendt chama de poder), tem como conseqüência a produção de uma sensação de impotência ante aos acontecimentos da vida, de modo que a existência passa a ser vivida como destino e fatalidade (TELLES, 1990:37). É no espaço púbico que se pode reconhecer o outro como semelhante e sua ação e seu discurso podem adquirir legitimidade. Vindo a público, a luta por moradia, trabalho e pela própria vida é capaz de se contrapor às alternativas que se limitam à caridade, à solidariedade e à condescendência das pessoas ou das instituições, o que significa não depender de fatos sobre os quais não se tem controle (TELLES, 1990:39). Mais uma vez, a reflexão de Arendt se faz importante.

 

"... a aparência – aquilo que pode ser visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie de vida incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornarem-se adequadas à aparição pública" (ARENDT, 1983:59-60).

 

Outro ponto que deve ser salientado diz respeito ao entrelaçamento entre espaço público e ter direitos, ou seja, trata-se de uma ligação que faz com que ações e opiniões tenham um lugar na condução dos negócios humanos (TELLES, 1990:40) e isso é fundamental. Como lembra Telles, ficar reduzido ao ser humano em geral, desprovido de profissão, nacionalidade, opinião ou qualquer fato ao qual se identificar, significa não ter expressão no mundo comum e, portanto, não ter significado algum (TELLES, 1990:41). Se vir a público é existir, todos os outros informais, buscando a sobrevivência de maneira velada, carregavam nas costas o peso da inexistência política. Assim, tornava-se praticamente impossível um debate em torno das relações que unem os setores formal e informal, até porque esta questão não vinha à tona por meio do sindicalismo tradicional, pois os dilemas que afligiam os trabalhadores sindicalizados eram outros.

Isso nos coloca diante de algo que reforça uma crítica, feita por Telles, à condição do trabalho no pensamento de Hannah Arendt. Para esta, quando o trabalho passa a ser assumido como algo que confere excelência às pessoas, em detrimento das idéias de dor, esforço e pobreza, isso revela que o reino da necessidade invadiu o espaço público, comprometendo as possibilidades de liberdade humana, na medida em que não resta outra alternativa senão trabalhar, e o espaço público é justamente marcado pela liberdade de se discutir novas formas de organização social, o que faz com que esta não seja vista como algo natural e imutável. Para Arendt,

 

"O fato de uma atividade ocorrer em particular ou em público não é, de modo algum, indiferente. Obviamente, o caráter da esfera pública muda segundo as atividades que nela são admitidas, mas, em grande parte, a natureza da própria atividade também muda".

"(...) No instante em que o labor foi liberado das restrições que lhe eram impostas pelo banimento à esfera privada – e essa emancipação do labor não foi conseqüência da emancipação da classe operária, mas a precedeu -, foi como se o elemento de crescimento inerente a toda vida orgânica houvesse completamente superado e se sobreposto aos processos de perecimento através dos quais a vida orgânica é controlada e equilibrada na esfera doméstica da natureza. A esfera social, na qual o processo da vida estabeleceu o seu próprio domínio público, desencadeou um crescimento artificial, por assim dizer, do natural; e é contra esse crescimento – não meramente contra a sociedade, mas contra uma esfera social em constante crescimento – que o privado e o íntimo, de um lado, e de outro, o político, ( no sentido mais restrito da palavra) mostram-se incapazes de oferecer resistência" (ARENDT, 1983:56-7).

 

Não só os acontecimentos engendrados pela permanência de camelôs nas ruas, mas todos os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores, que ajudam a fazer e contar a história da luta travada entre capital e trabalho, vão de encontro à recusa de Arendt de reconhecer o trabalho em seu potencial de gerar um espaço público (TELLES, 1990:43). Jacques Rancière, em seu texto chamado "O Dissenso", sugere uma idéia interessante para o debate em questão. De acordo com ele, a lógica do privado, do ambiente doméstico, não permite que os indivíduos sejam reconhecidos como pessoas que têm algo a dizer, o que significa, em termos do pensamento de Hannah Arendt, como já foi frisado, não possuir lugar no tratamento dos acontecimentos sociais.

 

"Para recusar a uma categoria de seres, por exemplo os trabalhadores ou as mulheres, o estatuto de seres políticos, basta constatar que eles pertencem a essa ordem doméstica que é o contrário da política. E, para que essas coisas mudem, não é suficiente que se passe da casa à fábrica e do escravo ao trabalhador juridicamente livre. Na lógica policial da repartição dos espaços e das funções, o trabalhador livre permanece membro apenas do espaço doméstico. O espaço do trabalho é um espaço privado em que um indivíduo nomeado empregador propõe condições a um número ‘n’ de indivíduos que – cada um por sua conta – as aceitam ou as recusam. Conseqüentemente, se esses indivíduos interrompem juntos o trabalho, se pedem para negociar com o empregador e, mais ainda, com o conjunto dos empregadores suas condições de trabalho, se levam essa questão ao Estado e à opinião pública, eles pedem algo impossível, que não tem sentido. Seu movimento portanto só é audível como um ruído de corpos sofredores irritados, ruído que a intervenção da autoridade pública deve fazer cessar" (RANCIÈRE, 1996:375-6).

 

O pensamento de Rancière merece que nos detenhamos um pouco em suas palavras, a fim de esclarecer melhor o já referido potencial político do trabalho. Antes, porém, é necessário tecer uma elucidação a respeito do significado do termo política, apesar deste ser um dos objetivos do trabalho como um todo.

A política está diretamente vinculada à criação de um espaço que permita uma reflexão a respeito dos acontecimentos e constrangimentos sociais, o que remete à constituição de princípios de diferenciação entre o certo e o errado, o possível e o impossível, o permitido e o proibido, a razão e a desrazão (TELLES, 1990:44-5). A política reivindica um permanente questionamento da sociedade, principalmente no que concerne às suas representações e imagens relacionadas à condição de classe, sexo, idade, cor, trabalho, moradia.

Ora, esse questionamento se explicita, segundo Rancière, como um escândalo. Para esse autor, o surgimento da democracia, por exemplo, indica a ruptura de uma lógica de dominação, vista como natural, ao sugerir o governo do povo, sendo este nada mais nada menos que a parcela dos que não possuem títulos que lhes permitam governar. Tal proposta, do ponto de vista das classes dominantes, era um sonoro absurdo.

Diz Rancière:

 

"A democracia é o poder do povo, do demos. Mas o que se entende exatamente sob esse nome? O demos, em Atenas, é constituído primeiramente pelos pobres. Mas pobres não é simplesmente uma categoria econômica, relacionada a um nível de recursos; é bem mais uma categoria simbólica, uma posição no mundo daquilo que se vê e se considera: pobres são as pessoas reles, as que não possuem nada, nenhum título para governar, nenhum título de valor a não ser o fato de terem nascido ali e não alhures. Esse nome para nós banal significa portanto originalmente uma ruptura inédita, a instituição de um mundo às avessas para todos os que pretendem fazer valer um título para governar. Significa que governam especificamente os que não têm nenhum título para governar" (RANCIÈRE, 1996:370).

 

A política não vem naturalmente. Trata-se de um desvio extraordinário, fruto de acaso ou violência (RANCIÈRE, 1996:371), enfim, de focos não dominados plenamente pelo poder (LEFORT, 1983:56).

Aqui, a política é uma afronta à polícia, ou seja, àquilo que leva à vigilância, à repressão e à ordem (RANCIÈRE, 1996:372). Quando a polícia afirma o princípio do cada um em seu lugar e em sua função, a política a desafia e propõe um conflito sobre a configuração do mundo em termos dos assuntos a serem tratados, dos atores vistos e ouvidos (RANCIÈRE, 1996:373). Indo de encontro à concepção que define a rua como local de circulação e ao restabelecimento da ordem por meio dos camelódromos, os camelôs desafiam a lógica policial, fixam-se nas ruas e procuram o trabalho no local em que se resume o drama do desempregado, ou seja, de quem está no olho da rua.

A reflexão de Jacques Rancière parece, em alguns aspectos, muito próxima da discussão sobre o espaço público, que faz parte das preocupações de Hannah Arendt. Além da já referida reconfiguração do mundo, a política é a busca por uma voz capaz de manifestar o justo e o injusto, o que demonstra a tentativa que alguns setores fazem no sentido de obter o reconhecimento de tudo o que é digno de ser visto e ouvido (RANCIÈRE, 1996:373). O que está em jogo é uma disputa para ter a voz integrada em uma percepção de mundo (RANCIÈRE, 1996:374). A política apresenta vozes que tiram a mordaça e pedem o impossível. Para muitos, é isso que os camelôs pedem quando se apropriam de praças e ruas para prover a subsistência, sem o recolhimento dos impostos referentes às suas atividades. Aliás, a legalidade merece uma discussão um pouco mais detalhada, sobretudo quando se trata de Brasil. Nesse sentido, a obra "Metrópole na Periferia do Capitalismo", de Ermínia Maricato, prima pela forma como aborda o assunto e suas peculiaridades.

A discussão a respeito do processo de ocupação do solo urbano, que estabelece um abismo entre a cidade legal e a real, sendo esta caracterizada pela ocupação clandestina por parte dos mais pobres e pelas tragédias decorrentes dessa situação (incêndios em cortiços e favelas, desmoronamentos de encostas habitadas de maneira precária, enchentes, despejos, epidemias) (MARICATO, 1996:13), faz transparecer uma situação ambígua no interior do aparato estatal.

 

"De um lado, improviso, carência de recursos diante da gigantesca demanda de problemas acumulados na cidade clandestina; de outro, vigor normativo e ação cartorial.. Tudo de baixo do mesmo teto, no edifício de uma instituição pública, mas separadas por uma distância infinita: o desconhecimento mútuo" (MARICATO, 1996:14).

 

Tal situação está diretamente vinculada ao valor imobiliário das localidades. Assim, quando o mercado diz "isso tem alto valor", a legislação é aplicada. Quando se cala, são lançadas as bases das ocupações sem infra-estrutura adequada. Buscando as raízes desse tipo de acontecimento, Maricato revolve a história e chega ao período colonial, marcado por profundas ambigüidades.

A constituição da mão-de-obra livre destaca uma das ambigüidades mencionadas. Não houve assalariamento. Predominou, sim, as relações baseadas no mando, na dominação pessoal e no favor (MARICATO, 1996:32). As relações trabalhistas estavam marcadas pela ordem escravocrata. Citando as obras "Trabalho e Vadiagem", de Lúcio Kowarick e "Homens livres na ordem escravocrata", de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Maricato afirma que o imaginário dos proprietários e dos homens livres herdara duas visões distintas: estes consideram o trabalho regular e disciplinado como degradante, ao passo que aqueles consideravam os homens livres como vadios, indolentes e imprestáveis (MARICATO, 1996:34).

Assim sendo, a modernização se deu com a manutenção de princípios arcaicos. O discurso liberal escondia relações de poder antigas, que persistiam quando estava em jogo a eliminação de privilégios (MARICATO, 1996:37). Além do mais, a Lei de Terras de 1850 já anunciava um processo concentrador que produziria excluídos. A própria formação de grandes latifúndios, por meio da expulsão de pequenos posseiros, muito contribuiu para reforçar tal processo. Tudo isso continuou ocorrendo, a despeito do declínio do mundo agrário. Segundo Maricato, as cidades foram assumindo grande importância como local de crescente produção industrial e também como mercadoria, dada a consolidação dos empreendimentos imobiliários. Paralelamente, as reformas urbanísticas geraram um processo de expulsão da "massa sobrante" (negros, pedintes, pessoas sem documento, desempregados) dos pontos mais valorizados (MARICATO, 1996:38). Onde o dinheiro enxerga possibilidades de lucro, é preciso manter a aparência de ordem e limpeza, o que, no fundo, significa esconder as contradições de um sistema social e econômico que mantém um discurso a respeito de tendências de integração. Este, porém, é constantemente desmentido pelas desigualdades sociais que se interpõem entre as classes.

Levando-se em conta o que foi anteriormente dito, a presença dos informais nas ruas reivindica a constituição de um espaço público para que sua situação (tanto no que diz respeito à relação entre os mercados formal e informal como à ambigüidade na formulação e aplicação das leis) seja alvo de discussões. Assim, os camelôs constituem sujeitos políticos no sentido atribuído por Rancière, ou seja, são aqueles não contados e que estão em situação precária (RANCIÈRE, 1996:377-8), muitas vezes tendo suas demandas desqualificadas por serem vistos como simples parcelas que desejam tão somente satisfazer seus próprios interesses (questiúnculas diante das "grandes" questões sociais). Por falar nisso, a quem cabe a definição destas?

Estão à margem nas obras acadêmicas e fora dos setores industrializados (berço do sindicalismo nacional). Talvez por isso, possam ajudar a perceber que o trabalho não se resume a emprego e ainda mantém um alto potencial enquanto elemento estruturador da vida das pessoas. Ao que tudo indica, cabe ainda ao trabalho a difícil tarefa de revelar as contradições sociais em suas mais variadas formas e de abrir trilhas para sua superação.

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

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LEFORT, Claude. A Invenção Democrática. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1983.

MARICATO, Ermínia Terezinha Menon. Metrópole na Periferia do Capitalismo.

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PIRES, Elson Luciano Silva. Metamorfoses e Regulação: o mercado de trabalho no Brasil dos anos 80. Tese de Doutorado apresentada no Depto. de Sociologia da USP. São Paulo, 1995.

PRANDI, José Reginaldo. Trabalhador por Conta Própria sob o Capital. São Paulo, Ed. Símbolo, 1978.

RANCIÈRE, Jacques. "O Dissenso". In: NOVAES, Adauto (org.). A Crise da Razão. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1996.

TELLES, Vera da Silva. Espaço Público e Espaço Privado na Constituição do Social: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociologia USP, S. Paulo, 2 (1): 23-48, 1º sem. 1990.

 

texto retirado de http://www.pge.sp.gov.br/tesesdh/Tese 8.htm