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DIREITO RACIONAL E DIREITO POSITIVO*

Um estudo sobre a ciência kantiana e kelseniana do direito

José N. Heck

UFG-CNPq/UCG**

RESUMO: A doutrina kantiana do direito e a teoria pura do direito de Kelsen se destacam pela intensidade racional com que a respectiva posição normativa é concebida, elaborada e exposta. A presente contribuição examina o peso teórico que a coercibilidade jurídica adquire em ambas as ciências do direito. O artigo objetiva estabelecer as fronteiras concepcionais entre o formalismo jurídico dos dois filósofos do direito.

PALAVRAS-CHAVE: direito racional, direito positivo, coercibilidade, Kant, Kelsen.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

O item "Peculiaridades da faculdade de direito", na primeira seção de O Conflito das faculdades (1798), apresenta o perfil do letrado em direito. Kant (1724-1804) escreve: "O jurista instruído não busca as leis que garantem o meu e o teu na sua razão (se proceder, como deve, enquanto funcionário do governo), mas no código oficialmente promulgado e sancionado por autoridade suprema". Fixado no complexo meio-fim, o bom entendedor jurídico toma, de acordo com Kant, o conjunto das leis codificadas como critério definidor de direito. Sua competência engloba indistintamente todas as áreas do direito, do privado ao público, sem excluir a história do direito e o direito de outros países. Universalizante em extensão, o saber do profissional versado em direito abarca, segundo Kant, uma latitude jurídica na qual o instruído em direito (iurisconsultus) aprende também a aplicar as leis do direito (iurisperitus). Tal atividade culmina na prudência jurídica (iurisprudentia), ou seja, na habilidade de escolher o melhor meio para o bem-estar próprio e alheio.

Confinado à esfera auto-reguladora das leis, Kant exime o entendido em direito de provar a verdade e a legitimidade das leis, bem como de posicionar-se em face das objeções antagônicas da razão, "pois são os decretos (Verordnungen) que primeiramente fazem que algo seja justo, e indagar se também os próprios decretos possam ser justos é algo que deve ser rejeitado como descabido por parte dos juristas". Kant converte em ridícula a exigência de querer subtrair-se a uma vontade externa e superior sob o pretexto de que ela aparentemente não coaduna com os ditames da razão. O filósofo arremata: "Com efeito, a reputação do governo consiste precisamente no fato de que não permite aos súditos a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo os seus conceitos próprios, mas de acordo com a prescrição do poder legislativo".

A distância entre direito racional e positivo

A argumentação é enigmática sob um visor constitucional. Primeiro pela terminologia, depois pela concepção. Governos não proíbem julgar sobre o que é e não é justo. Eles limitam-se a aplicar as leis vigentes ou, subsidiariamente, promulgam decretos de acordo com critérios previstos em lei maior. Não se prova a verdade de uma lei ou se demonstra a sua legitimidade. O que pode ser feito é constatar ou não a sua validade e eficácia. Soa estranho também que um funcionário público possa obedecer a uma vontade externa e suprema, quando tal vontade já deixou de existir, seja porque quem a teve morreu ou mudou de idéia. Uma vontade se tem ou não se tem, uma norma vige ou não vige. Também do ponto de vista de um erudito do direito, o arrazoado kantiano não se afigura contundente. Se nem as leis morais, que Kant vê com o Vigário Saboiano inscritas em nossos corações, nos forçam a reconhecer a existência de um Grande Legislador, não é plausível supor a existência de pequenas vontades por cima, por baixo ou ao lado da lei positiva, só porque ela se encontra preto no branco à disposição nos respectivos códigos.

Avaliada mais de perto, a figura kantiana do servidor público letrado é caudatária das pretensões sistemáticas do direito racional. O ordenamento jurídico do direito racional não coincide com o das ciências jurídicas atuais. O ponto de contato situa-se ao nível do objeto do direito, na medida em que esse é considerado idêntico com o conhecimento do direito. Respeitadas as diversas ordens de abordagem, bem como o respectivo enquadramento e a diferente classificação do direito positivo e do direito racional, o conhecimento do direito constitui uma referência comum indeclinável para ambos. Enquanto as ciências jurídicas tendem a satisfazer-se com a constatação de que o termo direito não é unívoco nem equívoco, Kant assume a indeterminação conceitual como programática para a doutrina do direito, na medida em que não reconhece um direito de exclusividade nem para a posição dogmática juspositivista nem para o dogmatismo teórico jusnaturalista. A indefinição epistemológica do objeto do direito adquire em Kant uma dimensão normativa, norteada por um conhecimento sistemático provindo de princípios. "Se compreendem os princípios em um sentido amplo e ao mesmo tempo comparativo", escreve O. Höffe (1943–), "e se têm em mente ‘todas as proposições gerais’(KrV B 358), então uma ciência positiva do direito pode também preencher o ideal de ciência em Kant".

O leal e erudito servidor público prussiano é apresentado por Kant como um instruído em direito. O filósofo diz que dele não pode ser exigida uma atuação racional convincente. Tal caracterização distingue o direito racional do positivismo jurídico. Enquanto o normativismo descritivista kelseniano reivindica evidência imediata, os princípios kantianos do direito perfazem constituições a priori da razão prática, providenciadas para o direito pela esfera crítica da moral. Ao passo que Kelsen (1881-1973) mantém o direito separado do imperativo categórico da moral, Kant não apenas não isola um do outro, mas submete a efetividade do direito a padrões morais suprapositivos. Longe de ver o direito livre da moral, Kant assegura à última uma inequívoca primazia normativa, tendo em vista o Faktum da razão. À semelhança da norma fundamental kelseniana (Grundnorm), a âncora ontológica da doutrina moral kantiana não é descritiva mas auto-referencial, contrariamente ao modo kantiano de lidar com princípios e ao tratamento kelseniano dado às normas de direito. Mas, em oposição ao fato da razão, a pressuposta norma fundamental não tem estatuto ontológico ou semântico na Teoria pura do Direito (1934/1960). De resto, a exposição apresentada por Kant dos princípios práticos a priori não pode ser equiparada à descrição feita por Kelsen da qualidade normativa das ordens positivadas em direito.

A Doutrina do direito de Kant remete a uma auto-aplicação sensível da razão (fato da razão), tendo a liberdade como ratio essendi da lei moral e essa como ratio cognoscendi daquela, e a teoria pura do direito de Kelsen possui na norma fundamental sua auto-referencialidade lógica, estabelecendo a norma positiva como fato e a obrigação jurídica como constituinte da ordem racional composta de sanções jurídicas. Comparada com o juspositivismo kelseniano, a ciência kantiana do direito articula uma filosofia do direito, e não se limita a estilizar, para a pirâmide fenomênica dos atos legais da vontade, a posição cognitiva de um ato de pensar (Denkakt) na forma numênica da norma fundamental. Kelsen acaba reservando somente aos princípios da ciência do direito (Rechtswissenschaft), denominados Rechtssätze, o privilégio de expressarem o conteúdo de um dever-ser. Normas do direito (Rechtsnormen), não sendo princípios do direito, não contêm expressões do direito e sim mandamentos, permissões e autorizações, baseadas não num ato cognitivo de direito, mas em atos de vontade (Willensakte) conectados com a respectiva norma superior, que legitima o ato volitivo em sua conseqüência imperativa. Como as normas do direito prescrevem habitualmente – excetuada a norma fundamental – a aplicação de uma pena, tão logo o indivíduo se comporte de determinada maneira, a objetividade normativa do direito é substituída pela realidade da sanção como medida coercitiva. Com isso, Kelsen realoca semanticamente o sentido corrente do contraditório do que é denominado justo.

Para Kelsen, um comportamento é injusto não porque contradiga o que é considerado justo, mas exclusivamente porque o direito positivo estabelece a transgressão como condição de aplicabilidade de uma reação, denominada sanção. O injusto não perfaz a contradição do que é definido por justo, e por isso é penalizado, mas é designado injusto porque vinculado pela ordem jurídica positiva a uma sanção como conseqüência a ser aplicada. "A norma que fixa o ato coercitivo" escreve K. Larenz (1912–), "é primária, a caracterização do ‘injusto’ como comportamento condicional da sanção é secundária, e em termos de linguagem, assim teria que se acrescentar, errônea".

Kant separa nitidamente o que é de direito (quid sit iuris) daquilo que diz respeito ao justo e ao injusto (iustum et iniustum). O primeiro bloco aborda a quaestio facti, a saber "o que as leis em um certo lugar e em certa época dizem ou disseram" e o segundo trata do "critério universal, pelo qual se pode conhecer a rigor tanto o justo quanto o injusto". A doutrina kantiana do direito natural é a ciência desse critério. Segundo Kant, ela tem por tarefa "fornecer a toda legislação positiva os princípios imutáveis (die unwandelbaren Prinzipien)", ou, "estabelecer o fundamento de uma legislação positiva possível". Por mais pura que a teoria kelseniana do direito seja, os princípios do positivismo jurídico não são imutáveis, e Kelsen também não reivindica para sua posição científica do dever-ser o status de um conhecimento sintético prático a priori.

A doutrina do direito não está, porém, para o jusnaturalismo como a teoria pura do direito está para o positivismo jurídico. A ciência do direito de Kant não é independente de sua filosofia crítica. Precisamente quando e onde ela se constitui em metafísica do direito, a doutrina kantiana do direito afirma-se crítica na esteira da concepção moral do filósofo alemão.

Kant tem um conceito moral de direito e um princípio jusnaturalista de direito. Um tem por objeto a vontade livre e o outro o livre-arbítrio. No âmbito do primeiro, a definição do segundo só é possível via negationis, isto é, em sentido negativo a vontade é concebida livre por poder atuar independente de causas que lhe são estranhas, denominadas heterônimas. A liberdade volitiva é concebida simultaneamente positiva quando atua de acordo com uma lei que a vontade confere a si própria. Para Kant, somente no segundo caso a vontade é autônoma, quer dizer, tem a propriedade "de ser lei para si mesma". Depois de haver resolvido objetivamente o problema da moral pelo sentimento do respeito à lei moral, posto criticamente pela razão prática, a definição conceitual de liberdade negativa subsiste solitariamente positiva no princípio subjetivo inato do direito, como independência do arbítrio perante qualquer outro. O conceito moral de direito contém uma obrigatoriedade (Verbindlichkeit) comum à doutrina do direito e à doutrina da virtude, formulada por Kant para ambas as doutrinas como "necessidade de uma ação livre sob o imperativo categórico da razão". Tal conceito moral tem caráter jurídico porque, à diferença do que vale para a doutrina da virtude, concerne (betrifft) "somente à relação exterior, e na verdade prática, de uma pessoa para com outra, de modo que suas ações, como fatos, possam (imediata ou mediatamente) influenciar-se reciprocamente.

Na ciência kantiana do direito, o conceito moral de direito equivale ao critério de saber o que é justo e injusto, de modo que não apenas o direito positivo, mas também o princípio jusnaturalista encontra-se sob o domínio da moral. As relações entre moral e direito não são, para Kant, de molde a estabelecer uma ordem comum de filiação da primeira ao segundo, mas compõem um índice remissivo recíproco entre o a priori sintético moral e o a priori sintético de direito. Por ser genuinamente prático, o primeiro exerce um papel crítico-normativo sobre o segundo, essencialmente metafísico-teórico.

Em suma, a possibilidade de haver obrigações jurídicas se deve, em Kant, ao fato de haver para o homem uma efetiva obrigatoriedade moral.

Moral e coerção em Kant e Kelsen

Vistas a partir da faculdade de coagir, a ciência kantiana do direito e a concepção kelseniana de uma teoria pura do direito ostentam similaridades irretorquíveis. Para Kant, as leis morais originam-se ou bem da razão prática ou do arbítrio de um legislador autorizado pela razão prática. Segundo Kelsen, a unidade de um complexo jurídico positivo é pensada a partir de uma norma fundamental, à qual todas as normas de um direito positivo remetem sua validade e eficácia normativa. Tal norma não fornece nenhum conteúdo específico para as normas posteriormente fundadas sobre ela, mas sim "a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de um poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser feitas as normas gerais e individuais da ordem ancorada sobre esta norma fundamental".

Kelsen concede, com um senso crítico kantiano, que a Grundnorm, por constituir a última referência para a validade objetiva do estatuto normativo de um ordenamento positivo em direito, não pode ser posta por uma autoridade cuja competência deveria repousar sobre uma norma localizada ainda mais acima da norma fundamental, razão por que essa última não é posta, mas necessariamente pressuposta pela ciência do direito, para poder interpretar determinado complexo de normas como constituinte do ordenamento jurídico. Kelsen explicita o viés kantiano de sua legitimação da norma fundamental, ao asseverar que per analogiam à teoria do conhecimento de Kant a norma fundamental da teoria pura do direito pode ser designada pela ciência do direito como "a condição lógico-transcendental dessa interpretação".

O teórico do direito nega terminantemente que a relação entre norma fundamental pressuposta e o conteúdo posto pela Constituição de determinada ordem jurídico-estatal, no tempo e no espaço, seja de caráter material. Kelsen insiste que somente excluindo-se tal inferência conteudística é possível evitar que a ciência jurídica se veja obrigada a recorrer à metafísica, reconduzindo o princípio da coerção jurídica a autoridades metajurídicas como Deus ou a natureza. A função de validade da Grundnorm kelseniana é fundamentar, como norma pensada, o processo silogístico cuja premissa maior é a postulação de uma norma considerada objetivamente válida, em virtude da qual deve-se obedecer aos atos subjetivos emitidos pela vontade de alguém, e cuja premissa menor é a afirmação do fato de que esse alguém ordenou que a conduta deve ser levada a cabo dessa ou daquela maneira, sendo conclusiva a afirmação de que a norma emitida é válida, isto é, o comportamento tem de ser de determinada maneira.

Kelsen acentua que a norma asserida como objetivamente válida na premissa maior não é de maneira alguma imediatamente evidente. A norma fundamental opera o processo de fundamentação silogística, se sua validade objetiva já não pode ser posta em questão por um silogismo, de acordo com o qual as ordens postas por um ato de vontade perfazem não a premissa menor, mas sim ordens emanadas de uma autoridade ou instância suprema, supra-ordenadas aos atos prescritivos de uma vontade histórica constituinte. Como a norma fundamental, na teoria pura do direito, não pode constituir o sentido subjetivo de um ato de vontade, ela apenas pode ser o conteúdo de um ato de pensamento (Denkakt), e, como tal, estar pressuposta e não ser posta pela respectiva Constituição.

Um ordenamento normativo, por não ser evidente, tem de ser interpretado como um "sistema de normas jurídicas válidas" e deve admitir uma norma fundamental correspondente válida, caso se trate de uma "ordem coercitiva globalmente eficaz", isto é, que funcione como tal. Se esse não for o caso, a inferência teórica da validade jurídica não tem referência normativa prática, com a conseqüência de que o dever da teoria pura do direito "resulta de fato, por um desvio acerca do postulado cognitivo-teórico da ‘norma fundamental’, (...) da (simples) faticidade!

Limitada à comparação do parágrafo E da introdução à Doutrina do direito, onde Kant elucida a faculdade de coagir do direito reportado a um dado empírico elementar sem alternativa, vale dizer, como "facto correspondente à construção de um espaço preenchido por forças", a maneira juspositivista de honrar o postulado teórico do dever-ser não parece, à primeira vista, estar na contramão da doutrina kantiana do direito. O fato de Kelsen conceber o direito como uma ordem coercitiva não oferece um quadro estranho à prova kantiana da faculdade de coagir. Desconsideradas as diferenças terminológicas entre os dois filósofos do direito, Kant concordaria com Kelsen quando esse entende que, para ser interpretada objetivamente como jurídica, "uma norma tem de estatuir um ato de coerção ou estar com ela em essencial conexão".

Na verdade, o que separa a ciência kantiana do direito da teoria pura do direito de Kelsen é a qualificação moral do dever (sollen) jurídico. O Sollen kelseniano não equivale a uma obrigação que, igual ao dever moral, possa ser cumprido em consideração ao que exige, por ser correto para quem o experimenta, enquanto a conduta inversa lhe afigura incorreta. De acordo com a teoria pura do direito, o conteúdo "certo" ou "errado" de uma norma é irrelevante. Basta que sua procedência normativa esteja legitimada pela respectiva norma fundamental. Normas de direito são, para Kelsen, menos mandamentos ou proibições do que autorizações, ou seja, "facultam a um determinado indivíduo aplicar contra um outro indivíduo um ato coativo como sanção". Diferentemente de Kant, para quem o fato de a "faculdade da razão pura ser para si mesma prática" significa a expressão de um dever (Sollen), equivalente ao conceito positivo da liberdade, sobre o qual se fundamentam leis práticas incondicionadas, denominadas morais. Obrigatoriedade é, para Kant, um conceito moral definido como "necessidade de uma ação livre sob um imperativo categórico da razão".

Mesmo se o dever-ser positivista de Kelsen fosse limitado à esfera da legislação do direito, onde a razão prática precisamente não fornece, pela idéia do dever, o motivo para a observância da lei, desfigurar-se-ia a concepção moral de Kant segundo a qual a cada obrigação jurídica corresponde um dever da legislação ética, a saber: agir movido pelo dever sempre que não há uma motivação externa eficaz. Também onde a noção kelseniana da norma ficasse restrita àquelas leis positivas que, de acordo com Kant, não provêm da simples razão prática, mas são estabelecidas pelo arbítrio de um terceiro, a equiparação entre teoria pura do direito e ciência kantiana do direito permaneceria aparente, pois, nesse caso a autoridade do legislador está assegurada em Kant por lei natural, quer dizer, deve ser providenciada por autorização a priori pela razão prática.

Resta a tentativa de coadunar o juspositivismo de Kelsen com o direito racional de Kant no âmbito das soluções que ambos os filósofos do direito dão à faculdade de coagir. Kant toma por óbvio que ninguém, ao ser indevidamente impedido em seu livre-arbítrio, venha romper os limites impostos por uma lei universal compatível com a liberdade de todos e possa, assim, cercear arbitrariamente a independência alheia, em vez de ater-se a neutralizar apenas o impedimento por meio de uma reação adequada à arbitrariedade sofrida (parágrafo D/introdução à Doutrina do direito). A posição de Kelsen tem aparentemente a vantagem de estar em condição de precisar, por norma positiva, a regra lógica da dupla negação de Kant no sentido de especificar explicitamente, quando a resistência contraposta ao obstáculo da liberdade não constitui, ela mesma, um impedimento à liberdade de outrem, evitando conseqüências catastróficas na coexistência dos arbítrios uns com os outros.

A hipótese de uma convergência programática entre Kelsen e Kant pode tomar por objeto de exame o parágrafo E da introdução à Doutrina do direito, onde Kant assevera que o direito subjetivo em acepção restrita não precisa ser pensado como composto de "duas peças (aus zwei Stücken)" – a saber: de obrigatoriedade segundo uma lei em conjunto com a faculdade de coagir – mas pode ser vertido de imediato (unmittelbar) na possibilidade de se articular a "coerção recíproca exaustiva com a liberdade de qualquer um (jedermann)" e, como tal, está isento de qualquer aditivo ético, "pois então é puro e não se encontra misturado com nenhuma prescrição da virtude". Em suma, escreve Kant, "um direito estrito (restrito) pode-se, portanto, designar somente o totalmente externo".

A proposta de complementar o direito racional de índole kantiana com a teoria pura do direito de Kelsen prospera se o conceito do direito, isto é, a faculdade de vincular outros com deveres, não se origina do imperativo categórico. Nesse caso, a posição de Kelsen de manter separados moral e direito seria fidedignamente kantiana. Caberia às normas do direito propor positiva e negativamente um ordenamento à conduta humana, vinculado a sanções previstas para os casos de transgressão das normas. Validado logicamente pela norma fundamental, qualquer conteúdo assumido como norma numa comunidade jurídica poderia tornar-se direito ou, como Kelsen apostrofa o princípio juspositivista, constatar-se que "não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica", e, por conseguinte, o direito não poderia reivindicar, enquanto ordem coercitiva, ser tratado distintamente a outros sistemas de coerção – por ser um ordenamento justo – ao contrário da ordem coercitiva de um bando de salteadores que, por ser injusta, não teria validade normativa interna para a conduta dos membros desse grupo.

O conceito do direito pode não ser oriundo do imperativo categórico, ou bem porque o imperativo categórico é idêntico à lei maior do direito racional ou porque não perfaz um imperativo. Na primeira alternativa, a comunidade jurídica seria também uma comunidade moral e, na segunda, moral e direito se auto-excluiriam por princípio. Se, ao contrário, Kant formula a partir do imperativo categórico moral o imperativo categórico do direito, adquirido isento de determinação material e sem alternativa racional (tertium non datur), a contraposição frontal entre direito e ética, no parágrafo E da Doutrina do direito, apenas ratifica que o direito estrito não pode ir além da faculdade de coagir, razão por que direito e coerção se autocondicionam reciprocamente, semelhantemente ao movimento livre dos corpos "sob a lei da igualdade da ação e reação", – direito racional – e à semelhança da dinâmica de um complexo de normas positivas sob a égide da respectiva norma fundamental pressuposta – positivismo jurídico –.

Kant manifesta estranheza sobre o fato de a moral não identificar-se com o direito, e oferece as condições sob as quais moral e direito deixam de ser universos paralelos sem, contudo, ficarem indistintos entre si.

Kant se pergunta: "Mas por que a doutrina dos costumes (moral) comumente (notoriamente a partir de Cícero) intitula a doutrina dos deveres e não também dos direitos? já que uns remetem aos outros". Enquanto Kant sugere que a ausência de um dever-ser uniforme carece de justificação, Kelsen confirma a subsistência paralela entre moral e direito, ao considerar a moral livre de coerção e definir o direito como sistema coercitivo integralmente eficaz. Kant não se situa diametralmente oposto a essa posição e não advoga, portanto, indistintamente a favor de um dever-ser uniforme. A justificativa que Kant oferece para a falta inexplicável de uma conceituação unitária e compacta de dever-ser é de ordem concepcional e resulta de sua doutrina da razão prática. "A razão", diz Kant, "é a seguinte: nós conhecemos nossa própria liberdade (da qual se originam todas as leis morais e com isso também todos os direitos e deveres) apenas pelo imperativo moral, o qual é uma fórmula imperativa de dever".

A idéia da indistinção normativa implica, para Kant, uma noção seletiva de racionalidade, contida na fórmula do imperativo categórico da moral. Como o dever kelseniano não perfaz um dever-ser moral, a posição de Kant é aqui contraposta àquela defendida na teoria pura do direito. O moralista não se satisfaz, porém, em marcar passo, reduzindo o Sollen (dever imperativoi) à moral. Kant não defende simplesmente o ponto de vista invertido de Kelsen. A noção moral do imperativo kantiano não ocupa o lugar do dever jurídico kelseniano, de maneira que as duas posições não são excludentes. Do imperativo moral, continua Kant, "pode, depois, ser desenvolvida a faculdade de vincular outros, isto é, o conceito do direito". Tal conceito, por ser adquirido do imperativo moral e não conter nenhuma determinidade natural, é a lei geral do direito (allgemeines Rechtsgesetz). Esta tem, como lei da razão, a liberdade positiva do homem por conteúdo e é do mesmo modo que o imperativo moral, incondicionalmente imperativa, porque pela simples representação da ação em sua forma "a pensa (...) de imediato como objetivamente necessária e a faz necessária".

Ao ratificar o lado a lado de complexos normativos incongruentes, Kelsen sustenta uma noção não apenas indecidível, mas desclassificatória de moral, já que a última não faz parte do universo do Sein (ser) e tampouco integra o Sollen (dever). A posição kelseniana em relação à moral é indecidível porque a disparidade categorial entre Sein/Sollen não afeta a moral e é desclassificatória, porque as razões aduzidas por Kelsen para explicar o normativismo moral são alheias às razões que ele próprio oferece para justificar a incompatibilidade programática entre Sein e Sollen. Em contrapartida, Kant mantém a noção seletiva da indistinção normativa sem, porém, fazer pouco caso das diferenças entre moral e direito ou sugerir que ambas ou uma delas possa ser deduzida da razão. A formulação do imperativo categórico da moral e do imperativo categórico do direito não é apenas diferenciada senão que formalmente distinta uma da outra. Enquanto a fórmula do imperativo moral reza que a máxima da tua vontade ("age de acordo com uma máxima que possa simultaneamente valer como lei geral") deve ser submetida a uma condição limitadora, o imperativo categórico do direito condiciona não a vontade, mas o uso do teu arbítrio e não prescreve, ademais, que algo possa constituir-se em lei geral, mas exige que algo possa, conforme uma lei geral, subsistir lado a lado com a liberdade dos outros ("age externamente de tal modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir juntamente com a liberdade de qualquer um segundo uma lei geral)". Por não partir da desconjunção categorial kelseniana, Kant não precisa, por um lado, pressupor algo parecido à norma fundamental para assegurar imperatividade à moral e, por outro, pode distinguir claramente entre moral e direito sem revidar a tese da indistinção normativa como um tipo seletivo de racionalidade.

Descartada a hipótese de uma convergência corretiva abrangente entre direito racional e teoria pura do direito, fica por avaliar as duas concepções de coerção jurídica à luz de um possível critério comum a ambas as ciências do direito.

Kelsen aparta moral e direito por meio do conceito de coerção. Embora a moral e o direito sejam constituídos por normas positivas, na teoria pura do direito a moral perfaz uma ordem positiva sem caráter coercitivo. Kant separa, na Doutrina do direito, legislação ética e jurídica por meio do conceito de motivação. Embora ambas as legislações sejam regidas por leis, somente na primeira a lei constitui a motivação do agir moral. À luz das duas posições, não há critérios congruentes à vista para a esfera da moral. Diferentemente do teórico do direito contemporâneo, Kant desconhece leis morais positivadas e também não concebe a moral imune à coerção. Mesmo que o poder autocoativo da lei moral pudesse ser admitido no âmbito da teoria pura do direito, as digressões kelsenianas sobre moral se comprazem com argumentos pré-críticos, francamente ideológicos e puritanos, na direta contramão daquilo que Kant entende por moral. Kelsen não apenas descreve as normas da moral como constituintes de um reino à parte do Sein/Sollen, "criadas pelo costume e por meio de uma elaboração consciente (por exemplo, por parte de um profeta ou do fundador de uma religião, como Jesus)", mas também as caracteriza à custa de um kantianismo estático equivocado. Kelsen discorre sobre a moral como ordenamento harmônico compreensivo do universo, cujo conteúdo e validade podem ser deduzidos da norma moral superior, imediatamente evidente, via operação lógica mediante uma conclusão do geral para o particular. Tal procedimento pressupõe, segundo Kelsen, o conceito de uma razão prática que é, porém, "insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer (...)". Essas e outras afirmações congêneres não só expressam uma versão corriqueira de moral, mas se movem ainda dentro do neokantianismo fisicalista dominante na virada do século.

O mesmo não pode ser dito em relação à esfera jurídica. Numa e noutra ciência do direito, a coerção constitui elemento indeclinável das respectivas concepções normativas. De acordo com Kelsen, apenas no direito a norma positiva é inconcebível sem coerção e, para Kant, é próprio da legislação jurídica a coerção externa (Fremdzwang), distinta da autocoação (Selbstzwang), própria à legislação ética, ambas conectando a lei moral com um motivo diverso. Como as duas posições tratam não de uma coerção qualquer, mas da coercibilidade inerente à norma (Kelsen) ou à lei (Kant), o traço comum entre direito racional e teoria pura do direito, caso haja um, resulta da similaridade relativa à noção jurídica daquilo que em Kelsen designa-se norma e em Kant chama-se lei, respectivamente constituinte para a ciência do direito de um e de outro.

Quanto a Kelsen, a concepção de norma jurídica é univocamente semântica, isto é, a norma interpreta ocorrências empíricas de forma piramidal como atos de direito, à luz da norma fundamental. No que se refere a Kant, sua definição de lei na Metafísica dos costumes é declaradamente ambígua. Kant garante que a toda legislação pertencem duas peças: "(...) primeiro, uma lei que representa a ação, que deve ocorrer, objetivamente como necessária, isto é, a qual toma a ação por dever", bem como "um motivo que conecta subjetivamente a razão determinante do arbítrio em relação a essa ação com a representação da lei". Tal uso do termo lei não bate com a definição do conceito de lei que inclui a diferenciação jurídica/ética, quando Kant escreve: "(...) leis da liberdade chamam-se, à diferença das leis naturais, morais. Na medida em que se dirigem a simples ações externas e à sua conformidade, chamam-se jurídicas; na medida, porém, em que exigem que também elas (as leis) mesmas devam ser a razão determinante das ações, então elas são éticas". No primeiro caso, o conceito de lei abstrai da diferenciação, no segundo caso a diferenciação entre jurídico/ético está contida na definição do conceito de lei. Uma concepção de lei que inclua necessariamente a segunda peça – o motivo – das duas que compõem toda legislação, torna incompreensível a definição dada por Kant de motivo, como fator distintivo de ético e de jurídico presente em qualquer legislação. Esse é o caso, quando Kant afirma que "toda legislação, portanto, (...) pode ser diferenciada em vista dos motivos. Aquela que toma a ação por dever e faz simultaneamente desse dever motivo, é ética. Mas aquele que não assume o último (o dever: J.H.) na lei, e permite também um outro motivo que não seja a idéia do dever, é jurídica".

A solução mais razoável para sanar o hibridismo definitório do conceito de lei na introdução à metafísica dos costumes é ler a expressão lei jurídica como "lei em uma legislação jurídica", e a expressão lei ética como "lei em uma legislação ética". Com isso, também o par conceitual legalidade/moralidade adquire contornos bem definidos. Acatar as leis da legislação jurídica é ater-se à legalidade, isto é, obedecer leis com motivos alheios à idéia do dever, e seguir as leis da legislação ética constitui moralidade, isto é, obedecer leis movido pela idéia do dever. Pela solução dada, o conceito kantiano de lei é de unívoco caráter moral, isento de qualquer conotação jurídica, e se refere a dois tipos de ações, as legais e as éticas, de modo que as últimas constituem uma subclasse das primeiras, pois é legal qualquer observância de leis morais e é ética a observância das mesmas leis se, além disso, o cumprimento ocorre por dever. Com isso, porém, a ambigüidade do termo lei na Metafísica dos costumes é deslocada para o conceito de moralidade e onera o designativo ético, vale dizer, o termo lei tem invariavelmente um significado moral, mas ações do tipo da moralidade não são "morais", e sim apenas éticas, já que o qualificativo moral é atribuído exclusivamente à lei (moral).

Como inexiste um equivalente jurídico kantiano à norma kelseniana, é forçoso reconhecer que, no mais tardar, no exame daquilo que os designativos norma e lei, respectivamente, significam em Kelsen e Kant, a hipótese de um denominador comum entre teoria pura do direito e direito racional perde o ponto de orientação analítico.

A pirâmide semântica kelseniana está presa a um suporte teórico, denominada norma fundamental, e a cadeia semântica kantiana repousa sobre um dado prático, denominado fato da razão. Kelsen justifica a referência lógico-transcendental pela indecidibilidade prática de converter leis empíricas, sejam elas de caráter biológico, psíquico ou social, em normas positivas da ordem jurídica, e Kant justifica a referência prático-racional pela impossibilidade cognitiva, seja ela de teor físico, matemático ou filosófico, de fazer da liberdade uma espontaneidade natural regida por lei moral.

O que pode ser objetado a um e a outro, em nome da respectiva semântica normativa, não passa de argumentum ad hominem do estilo "o que um não tem o outro ostenta". Assim, a norma fundamental tem, em Kelsen, a propriedade racional de providenciar a validade jurídica de um sistema coercitivo eficaz. Do um ponto de vista kantiano, os agentes jurídicos da teoria pura do direito só deveriam ser levados a sério, como seres racionais, quando agissem unicamente motivados pela norma fundamental, de modo que não mais houvesse necessidade para remeter os atos reais desses agentes a um paralelograma de leis físicas, psíquicas ou sociais, e assim por diante. Apesar do fato da razão, a lei moral, como ratio cognoscendi da liberdade, não dá a conhecer ao agente moral o fato de ele ser livre. Do ponto de vista kelseniano, uma liberdade positiva, como ratio essendi da lei moral, só deveria ser levada a sério se concedesse ao intérprete da lei moral o poder de decidir sobre suas inclinações – inerentes por definição metafísica a um ente sensível com vontade não santa – de modo que não ficasse em aberto que ações o homem não deveria estar seguindo, quando estivesse agindo livremente por respeito à lei moral.

Tal tipo de objeções recíprocas servem, no máximo, para quebrar o gelo que intermedeia o contato entre a concepção do direito racional, de índole kantiana, e a concepção do direito positivo, de proveniência kelseniana. As respectivas posições teóricas somente podem ser subvertidas pela análise das peculiaridades da linguagem jurídica, da constituição do Estado democrático e da natureza ímpar da decisão judicial.

Conclusão

Tanto o jurista Kelsen quanto o moralista Kant postulam uma explícita redução empírica, a qual no primeiro fica praticamente e, no segundo, está teoricamente em descoberto.

De acordo com a teoria pura do direito, a norma fundamental constitui, como fonte comum, a unidade na pluralidade de todas as normas que compõem uma ordem positivada em direito. Como existem muitos complexos jurídicos positivados, mas uma única definição de norma fundamental, a relação da última com os primeiros opera com uma redução empírica de validade, abrangendo indistintamente os Estados piratas antigos ao norte da África e as diversidades constitucionais no moderno direito comparado. Em contraposição a tal rigorismo teórico, a mais tosca teoria de Estado tem a razão prática a seu favor.

De acordo com a segunda Crítica, "todos os princípios práticos materiais são como tais, no seu conjunto, de uma só e mesma espécie e pertencem ao princípio geral do amor-próprio ou da felicidade pessoal". Tal postulação empírico-reducionista de sensibilidade carece desde Hume (1711-1776) de cobertura teórica – razão por que não chega a ter valor heurístico nas ciências sociais aplicadas – mas dá razão ao juspositivismo em privilegiar cidadãos egoístas, uma vez que esses são os únicos destinatários da legislação jurídica.

Reconstruir com base no respectivo handicap filosófico, as discrepâncias sistêmicas de um e de outro não mais constitui objeto da presente exposição.

 

Texto retirado de http: www.ufg.br/mestrado/artigos.htm