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A arte da punição

 A norma e o direito na ótica de Michel Foucault

Adriano de León

 Os estudos de Michel Foucault sobre o sistema de poderes baseado em normas vem a elucidar a concepção hodierna sobre a punição. Como todas as normas têm estreitas ligações com uma vasta rede de poderes, estas se tornam a grande mediadora social que ora serve de vigilância, ora serve de punição para comportamentos considerados anormais. A normatização positivista torna o Direito um conjunto de técnicas muito mais baseadas em dogmas do que em um profundo saber epistemológico.

 Vastamente conhecido no meio do que denominamos Ciências Sociais, Michel Foucault, o mais notável filósofo francês deste fin de siecle, notabilizou-se pela sua capacidade exuberante de retomar conceitos e temáticas que acreditava-se estarem postas a ponto final. Sua incursão na área do Direito é o mote que pretendemos tomar neste artigo.

 Em A Vontade de Saber ( 1988 ) Michel Foucault desenvolve a idéia de que desde a época clássica as sociedades ocidentais viram desenvolver-se no seu seio novos mecanismos de poder em forma de disciplina. Estes poderes disciplinares controlavam, de início, os corpos, passando a controlar, mais adiante, as populações. Abrir-se-ia, desta forma, a era do biopoder.

O autor não se restringe a falar sobre um poder unicista, tal como apregoava Marx ao referir-se à super estrutura comandada pela ideologia. O poder, na ótica de Foucault é pluridimensional e amplo. Manifestar-se-ia em todas as esferas da política, das sociedades, nos contatos individuais. Não é um poder soberano, e sim uma rede de poderes e contra poderes num eterno embate, onde ora o poder dito dominante se revela, ora este se esmigalha. Entre os séculos XVII e XIX assiste-se a elaboração da concepção de vida como hoje a concebemos. As teorias criacionistas cedem lugar ao apriorismo existencial de Voltaire, chegando até ao evolucionismo darwiniano. Assim sendo, o corpo como locus privilegiados da manifestação de poder é passível, em primeira mão, de receber uma disciplina melhor elaborada através de regras claras de comportamento social - a etiqueta - as quais classificariam um indivíduo como sendo gentil ou bárbaro. Este poder associado à noção de vida - o biopoder - passa a controlar também as populações dentro de uma lógica da normatização enquanto uma ordem pré-estabelecida socialmente.

Este poder destinar-se-ia a produzir forças, fazê-las crescer e ordená-las. Para que ele seja cada vez mais importante para a sociedade há uma série de conceituações bem elaboradas que visam tornar a vida gerenciável, uma franca oposição à natureza, pela sua marcada posição de pensar a morte como um fenômeno natural. Este medo da morte edificado com a medicina, a religião e a ética de sociedade perfeita, tornam o homem dos séculos XVIII e XIX um indivíduo passivo diante das regulamentações sociais que então começam a se esboçar em forma de leis.

Uma outra conseqüência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente que toma o jogo das normas em detrimento do sistema jurídico da lei. (Foucault, 1988: 158).

Há que se fazer lembrar que no período clássico anteriormente abordado a presença de códigos tradicionais era o comum para a época. Os estados monárquicos viviam sob jugo da nobreza e do clero, segundo ditames orais de longa duração, guardados secretamente por famílias e hierarquia clerical. O próprio sistema jurídico da Itália principesca foi posto a nu quando Nicholau Machiavelli desvela-o em "O Príncipe", popularizando segredos que eram o próprio sistema jurídico da Itália em si, colocando a teste a lógica monárquica, puramente simbólica, e insuflando as massas a criarem normas coletivas e eficientes. Não mais orais, desde que não mais secretas, mas escritas, desde que sociais.

Longe de provocar o desaparecimento das instituições de justiça, a formação de uma sociedade normalizadora vai provocar uma espantosa proliferação legislativa. (Ewald, 1980: 80).

Tal proliferação legislativa -observe-se que legislar é ato social, não hermético - se reveste do discurso que afronta a vida e faz tremer os viventes: a morte. A lei, com efeito, é sempre armada. E é sua arma, por excelência, a morte, um poder inteiramente consagrado a qualificar, medir e apreciar. (Foucault, 1991: 125).

Em oposição ao jurídico da monarquia coloca-se o normativo na era do biopoder, em forma de constituições, códigos e toda uma estrondosa miscelânea legislativa. O domínio monárquico inglês é derrubado pela Constituição Americana de 1787. A França coloca em cheque o domínio da realeza, oferece as cabeças reais ao povo em praça pública e promulga seus idéias de igualdade, fraternidade e liberdade com a Constituição de 1793. Põe-se por terra a era da justiça natural. Emerge a era da justiça normativa.

Para Foucault (1990: 162) a norma se enquadraria entre as artes de julgar. Dentro de um contexto social, a norma tem estreitas relações com o poder, mas o que viria a caracterizá-la realmente não é o uso da força, de uma violência suplementar, e sim uma lógica que reflete as estratégias e os objetos deste poder. Nega-se, pois, a idéia da Sociologia Jurídica baseada nas teorias da coerção social de Durkheim. Uma norma, antes de representar este padrão coercitivo e geral, possui amplas estratégias que tornam cada vez mais aceita esta rede de poderes que perpassa a sociedade hodierna. Veja-se que mesmo com o recuo do Estado enquanto gerenciador das relações sociais - o neoliberalismo - permanece esta teia de poderes, também responsável pelo próprio desmonte do Estado quando este já não mais atende a seus objetivos.

É no século XIX onde norma e regra se diferenciam uma da outra. Norma deixa de ser sinonímia de regra. Antes, vai designar, ao mesmo tempo, um certo tipo de condutas, uma maneira de as produzir e, sobretudo, um princípio de valorização. (Ewald, 1980: 83).

Há um deslocamento no discurso da norma. Em sua raiz etimológica a palavra norma significa esquadro, ângulo reto. Com Cícero, a palavra toma o sentido de norma legis e, por fim, de regra. Quando a norma passa a carregar um atributo de valorização com relação a determinada conduta socialmente aceita, seu sentido passa a ser o de mediatriz. A norma passa, pois, a ser o fiel da balança entre o normal e o anormal ou patológico. Cria-se, desta feita, um arcabouço legal, em forma de códigos e resoluções normativas, baseado num tipo mediano de homem, escolhido dentre aqueles dos grupos dominantes de então. Isto pode ser uma explicação plausível para o fato de que a moral cristã atual, baseada no homem mediano, ir de encontro à "amoralidade" dos magnatas e à "imoralidade" do miseráveis.

As normas tomam domínios cada vez mais diferenciados da esfera jurídica. Elas abarcam a medicina, a psiquiatria e as Ciências Sociais. Tudo isto se mistura num conhecimento do final do século XIX: a criminologia. O próprio discurso da criminologia é o domínio da antropometria lombrosiana, absurda maneira de caracterizar e conhecer um tipo perfeito de criminoso mediante um padrão fornecido pelo domínio do conhecimento das ciências supra citadas. Desta maneira, as penalidades e mesmo a sexualidade se tornam instituições de ordem normativa que caracterizam a modernidade das relações entre saberes e poderes.

Ao escrever Vigiar e Punir, Michel Foucault analisa o poder disciplinador como uma das principais tecnologias do poder das modernas sociedades: o poder das normas. (1990: 126 e seg.).

Enquanto os estabelecimentos disciplinares se multiplicam, os mecanismos disciplinares se institucionalizam, decompondo-se em processos flexíveis de controle que se podem transferir e adaptar. Isto significa, em termos concretos, a multiplicação de prisões ao lado da proliferação de medidas que visam cada vez mais manter unificada a sociedade. Em tempos atuais isto reflete o mal estar causado pelo excesso de restrições no Brasil pós golpe militar quando da eclosão dos movimentos do "proibido proibir" de 1968.

A generalização do esquema e das técnicas disciplinares não apenas tornou possível o advento da prisão, como o discurso de que o isolacionismo deixaria a paisagem urbana mais unificada e harmônica. Este discurso disciplinador visa, antes de mais nada, a reprodução da estrutura familiar nucleada, do Estado do welfare, e da democracia representativa em forma de eleições. Somos pois disciplinados, vigiados ou punidos quando nos recusamos aos contratos sociais, à política de impostos ou ao não exercício "democrático" do voto. Foucault descreve três grandes instrumentos disciplinares, reguladores de uma rede de poderes: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. (1990: 170 e seg.). A norma passaria, assim, a ser regida por fundamentos do vigiar e do punir, escolhidos mediante um exame prévio socialmente acatado. Torna-se para o Estado moderno muito mais vantajoso economicamente vigiar do que punir. É este discurso da vigilância preventiva que desencadeia na América Latina das décadas de 60 e 70 as passeatas dos cidadãos medianos da sociedade - a chamada classe média - que clamam por um basta no iminente perigo exterior. Se o vigiar não é suficiente, lança-se mão do punir através de sanções normalizadoras, mesmo que excludentes e sumárias. Em nome da norma institucionalizada enchem-se os porões das prisões e acionam-se os eletrodos do poder das sombras.

A disciplina fabrica o indivíduo. Ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não há qualquer grau de relatividade nas práticas das normas. Criam-se mecanismos distintos que sistematizam e organizam os vários discursos da vigilância em um só discurso cristalizado em uma dada norma.

Normalizar significa instituir uma dada linguagem que permitirá aos indivíduos entenderem-se e formarem uma sociedade. (Bourdieu, 1989: 244).

Isto posto, toma a norma um discurso da ordem. Uma ordem normativa que caracteriza as sociedades modernas. As raízes sociológicas deste fato se encontram na filosofia positivista. O Positivismo foi capaz, simultaneamente, de colocar o Direito dentro de uma grade normativa e transformá-lo em um conhecimento técnico ao invés de epistemológico. O pretenso progresso que se vislumbrava no alvorecer do século XIX era conseqüência da ordem que neste período reinou. De Leibniz a Montesquieu, de Saint Simon a Rousseau, há um discurso constante que visa a melhor elaboração de um código ético mundial que possa compreender melhor a sociedade diante da nova ética capitalista. Toda a filosofia produzida neste período retrata uma produção de saberes diversos para que a sociedade possa tornar-se visível para todos com a institucionalização de um modelo de cidadão sintonizado com as normas estabelecidas.

A norma possui bipolaridade. Por um lado ela integraliza, desde que torna cada indivíduo comparável a cada outro. Fornece, pois, uma medida. Por outro lado, a norma desintegraliza quando convida cada indivíduo a reconhecer-se diferente dos outros, tornando-o particularmente redutível a si mesmo. Este efeito bipolar da norma revela a inexistência de um macro poder dominante ao passo em que clareia a idéia de uma rede de micropoderes que visam tornar o indivíduo ora vigiado ou punido por todos, ora vigilante ou punidor de outros, sem que ao menos perceba quem, como e por que tal norma foi elaborada e qual a sua gênese discursiva.

Ao referir-se aos códigos, às constituições e às leis, Foucault caracteriza-os como "ilusões", ou seja, formas que tronam aceitáveis um poder essencialmente normatizador. (1992: 73).

Como o próprio Estado, o conjunto de leis que o suporta é também pura abstração. A concretude de uma lei só existe, de fato, quando esta lei passa a ser seguida por dada sociedade. Com efeito, o poder faz do Direito o instrumento de sua apresentação por excelência, de modo a preservar o segredo que lhe é essencial. Daí que vários autores procuram o poder em um dado ponto, notadamente no Estado, mas todos eles caindo nas armadilhas da "Física Social" de Comte, quando passam a acreditar na máxima de que "cessada a causa, cessa-se o efeito". O Direito torna-se, assim, o instrumental perfeito para o exame social nas medidas do vigiar e do punir.

O Direito normativo é o direito racional na concepção de Weber. (1967: 367-83). É o Direito racional por determinar uma série de ações em relação a determinados fins. Portanto, as ações sociais determinadas pela legalidade são frutos de uma normatização social advinda de uma rede de poderes velados pelo Direito.

A partir de então, se o Direito é uma técnica, não o é no sentido de instrumento ou de utensílio. O Direito é uma técnica enquanto arte de produzir juízos dotados de objetividade. Em última análise, isto nos leva a crer que conceber o Direito como mero produtor de juízos é colocá-lo à deriva das normas criadas por grupos detentores das esferas de dominação. Como grave conseqüência disto temos a punição contra os "desvirtuados" como o nosso maior orgulho, e não como vergonha diante das torturas cotidianas do nosso sistema carcerário, das concessões supremas, das multidões fartas de deveres e vazias de direitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 BOURDIEU, Pierre. The Symbolic Power. Londres, Routledge, 1989.

EWALD, François. Foucault, La Norme et Le Droit. Paris, Gallimard, 1980.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense, 1987.

__________. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal. 1988.

__________. Vigiar e Punir. 8ed. Petrópolis, Vozes, 1990.

__________. Eu Pierre Rivière, Que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão.
5ed. Rio de Janeiro, Graal, 1991.

__________. Microfísica do Poder. 10ed. Rio de Janeiro, Graal, 1992.

WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, Fondo de Cultura, 1967.