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A escravidão legitima o comunismo

Joaquim Nabuco

A escravidão era uma violação da propriedade; é mal é uma justificação do comunismo. Uma sociedade que a aceita é uma sociedade impossível diante de um povo, ávido e coerente. Quereis saber por que uma soberania que reconhece a escravidão; proclama a máxima de Proudhon - a propriedade é um roubo, além de demonstrar a segunda - a escravidão é um assassinato? A propriedade não é um roubo senão porque é um direito absoluto. Se a ocupação não é um direito absoluto, os primeiros ocupantes não tiveram direito às suas propriedades: logo, os herdeiros não o têm também.

 Não se transmite o que se não tem. Em seguida a propriedade não é de direito natural e não pode ser mantida, como poderá ser mantido o principio da posse, que é uma criação da jurisprudência romana e que somente assenta sobre as conveniências do direito civil? Assim, não havendo a posse, não haveria a prescrição do direito de propriedade pelo fundamento da posse secular: os atuais proprietários não teriam domínio fundado, seria forçoso reivindicar a propriedade pública para a repartição pela comunhão. Se se dissesse que havia a respeitar-se a propriedade adquirida pelo trabalho, podia-se aceitar o fundamento e não se querendo saber se esse trabalho ativado e exercido sobre coisas alheias dava direito ao domínio delas, e respeitá-lo, como permanente, o título. Isso pouco prejudicaria à grande liquidação pública: bastava que através de uma devassa sem nome, como devia ser essa, se abrangesse o passado e se liquidassem os domínios que vieram da ocupação primitiva, por meio de heranças, doaçóes, substituiçóes, etc. para ter organizado a catástrofe e abalado as bases da sociedade, precipitando-a, ou, na guerra civil, ou, na dissolução. Antes que se cobrasse o enorme ativo dos miseráveis e proletários, a fome entraria pelas portas desguarnecidas pelo trabalho e devastaria os credores e devedores dessa grande massa falida: a propriedade de mais de cinqüenta séculos. Eis os efeitos de se não chamar a propriedade um direito absoluto: é o quadro da ascensão do comunismo nos dias de hoje ou em séculos próximos ao nosso, não sabendo nós a que forma de governo, e muitos menos de organização da propriedade a perfectibilidade da humanidade a encaminha. Ora, uma sociedade que tem a escravidão, como argumenta a respeito do direito de propriedade? Ou há de chamá-lo relativo ou absoluto. O que é direito absoluto? É o direito originário da alma, direito com que ela nasce, que ela pode exercitar na sociedade ou fora, direito que existe substancialmente nela, e que é a garantia moral do exercício de suas faculdades e aptidóes. Direito relativo e mais propriamente derivado é aquele que a organização da sociedade nos dá, e que em alguns casos não pode deixar de nos dar: como em outros, sua aquisição por nós faz com que devam ser respeitados como os nossos próprios direitos absolutos, porque a justiça, a equidade, o ideal do direito dão-lhes na contingência da sociedade o caráter de absolutos: esses o são pelas relaçóes necessárias da sociedade, os outros por nossa própria natureza: estes são absolutos na origem e na duração, os outros precisam de ser adquiridos para ficarem com a duração ilimitável: uns e outros são absolutos em sua extensão. Assim há de a sociedade chamar o direito de propriedade ou absoluto ou derivado. Pode chamá-lo absoluto à vista da definição do termo? Não: se fosse absoluto seria universal. Se viesse da alma, só se poderia negá-lo ao escravo por este não tê-la. Deve portanto chamá-lo relativo, ou absoluto, na hipótese de dizer que o escravo não tem alma. E não precisa esta argumentação: basta outra. A lei que tira a propriedade a um milhão de homens não a julga um direito inalienável, originário, imprescritível, logo não a julga um direito absoluto. Quanto a dizer que o escravo não tem alma, seria dado à lei dizê-lo se não desse aos libertos direitos políticos, para os quais é preciso antes de tudo a alma, a menos que eles possam ser exercitados, na comunhão brasileira, por entes irracionais. Assim, não há direitos absolutos para a sociedade: nem o da liberdade, que ela rouba nem o da igualdade, nem o da segurança, nem o da propriedade. Ora, num país, como a França, um povo coerente argumentaria assim: "se a propriedade não é um direito absoluto do homem, vós proprietários roubais; mostrai-nos a prova legal, o título do pacto entre vós e nós pelo qual renunciamos, nós, sociedade, nós comunhão aos bens da comunhão", e a sociedade lhe responderia, como responde vitoriosamente hoje: "não, não podeis liquidar a propriedade, que vem de um direito absoluto". E eles dir-lhe-iam então para que tendes escravos, como tendes escravos, se roubais a propriedade a um indivíduo como a um milhão não a considerais um direito, natural, um direito absoluto". Eis como o comunismo raciocinaria sobre a propriedade em uma sociedade de escravos. Estamos pois assim colocados: a escravidão, negação do direito de propriedade, pode não desaparecer com proveito para esse direito, porque autoriza e forma no Brasil uma opinião francesa, uma seita que talvez se apresente para vingar os escravos nos proprietários: o comunismo.
A ESCRAVIDÃO E A FILOSOFIA
Eis o paralelo apenas esboçado, mas vivo. Vejamos o que a escravidão faz do homem propriamente como ser pensante; é triste vê-la penetrar no íntimo lar do espírito, morada do deus absconditus para encadeá-lo, limitá-lo: amarrar-se, como chumbo, às suas asas. Ela viola direitos muito santos, por isso que são eternos, direitos mais valiosos por isso que não dependem das condiçóes da matéria: os direitos do espírito. Posto no mundo misto de uma parte como ele perecível e de um sopro divino - parte da divindade, o homem não vive só na terra. Se a sensação é a alma vivendo no meio externo, o pensamento é a alma vivendo no absoluto. O espírito, limitado, parece divinizar-se, pensando nessas idéias sublimes, que Deus que é sua personificação depôs em germe indistinto em todos os homens. Parece que na confusão dos espíritos com esses domínios da intuição nasce para a alma um sentimento de independência e de orgulho, que fá-la considerar como sua pátria o infinito, sua vida a eternidade, sua libertação a morte. Somente são verdadeiramente livres aqueles espíritos que se libertam pelo êxtase da contingência das imagens, e que, enquanto animalmente vive o corpo que os contém, na terra e sensivelmente vivem faculdades suas postas em relação com o mundo do não eu, por uma atribuição diviníssima de sua concepção abrange com os olhos da intuição os domínios em que as grandes idéias absolutas encontram-se no absoluto em Deus.

 Esta beleza da vida especulativa, que Hegel julga mais digna que a vida ativa, que no meio do mundo aspira à pátria das idéias e que por uma força de abstração superior demente da vida eterna tudo o que é da vida transitória, é que dá dignidade ao espírito, e faz com que o homem, rei da criação pela inteligência, seja a obra-prima de Deus pelo pensamento. Nem precisaremos de remontar à filosofia nova da Alemanha para mostrar em quatro traços o valor puríssimo de uma existência na verdade, na beleza, na liberdade absoluta. Bastava recorrer à única filosofia que se ensina no Brasil, sem dignidade alguma metafísica, serva humilíssima da teologia. Nesta mesma ainda que os misteres mais altos do pensamento passem confundidos na faculdade primordial da inteligência, não se nega valor à vida do espírito, mesmo porque nos conventos ela degenera em misticismo e sua moral em ascetismo. A missão de toda a filosofia verdadeiramente nobre é erguer o espírito: 1[[ordmasculine]] porque o reconhece superior ao mundo animado ou animado sem arbítrio livre; 2[[ordmasculine]] porque vê suas relaçóes com Deus;3[[ordmasculine]] porque apreende bem ou mal o segredo de sua atividade intelectual, A filosofia que assim conhece o espírito proclama-o livre. Diante dela, os homens são iguais pela substância de sua alma e diante dela todos os homens são livres, por essa igualdade que exclui o privilégio, pelo reconhecimento de um único ente infinito, e pelo princípio de moralidade. Se virmos que da moralidade decorrem todas as nossas crenças inabaláveis, que a existência de Deus quando se não a conceba, se a deduz pelo mérito e o demérito, como a imortalidade da alma, devemos deixar uma larga parte para o domínio da moralidade, tanto no coração, como no estado, A história, espelho vivo do progresso humano, que parece a sanção da lei hegeliana (falsa para nós) de que o que é posterior na ordem da sucessão e superior na ordem da essência, aconselha-nos que obedeçamos à lei da moralidade "que há de triunfar no futuro, da mesma sorte que triunfou no passado, porque não é já só uma lei que domina as contingências, é a lei do absoluto, E não é degradar o espírito, não é violar a lei moral, manter o espírito nas trevas, sujeitar os homens à sanção da pena brutal, instituída em favor do privilégio? A dignidade humana aconselha que as ]eis não sofram exceçóes, e parece que o estado regido pelos princípios que decorrem da dignidade humana é aquele em que as leis são feitas à maneira, como cópia, das leis superiores, cuja invariabilidade terão quando tiverem sua justiça. As leis que tendem a dominar num tempo, filhas dos preconceitos, das reaçóes dos privilégios, dos ódios e do arbítrio são iníquas: as únicas leis dignas são as que se fundam sobre o sentimento da moralidade, que também é um princípio. A escravidão, pois, condenando ao obscurantismo o espírito, rouba-lhe a vida: mata-o. Não é já só o assassinato do corpo, pelo trabalho e pelos castigos; não é só o assassinato da alma pela superstição e pela perversidade, é também o assassinato do espírito porque impede-lhe a vida do outro mundo, a vida no absoluto, a vida de pensamento. O espírito recebeu uma missão na terra, e para preenchê-la recebeu a atividade: a atividade, que era a garantia da missão do espírito, foi oprimida, obrigada a reduzir-se aos atos interiores, e pela força do silêncio da solidão, da noite que se faz nas almas, ela extinguiu-se de todo. A primeira força que ela comunicava ao espírito era a consciência de sua liberdade: eu quero, eu escolho, logo eu sou livre. A escolha da vontade era seguida do ato: a liberdade reconhecia-se na sua obra. Com os escravos deu-se o oposto: nos menores atos a atividade ficou reprimida, não podendo o ato exterior conformar-se com a escolha. Querer para eles não é poder: assim habituaram-se a não as considerarem livres na vontade porque não o eram na ação: a atividade resumida a determinações sem realização possível, abafada pelo temor, pelo despotismo, suicidou-se ou antes morreu à míngua. Um dia as contas deste crime serão pagas, e não serão somente as dos escravos, serão também as dos senhores. Se o escravo é uma exceção na humanidade, o senhor é outra. Porque ambos matam o espírito, um no outro, a religião e a filosofia cairam no país, onde somente são conhecidas por suas antipatias da meia idade - a superstição e a teologia. O espírito fica sem dignidade e por isso o coração sem virtude, eis porque senhor e escravo formam duas quantidades negativas perante a justiça. Assim, deixamos provado que, metafisicamente, por isso que ela impede a vida do espírito, a escravidão é um crime... Os homens são iguais perante a psicologia: e a escravidão ofende, tanto a ciência dos princípios por violar a liberdade, como por degradar o espírito. O espírito é o que há de mais puro, de mais nobre, de mais elevado sobre a terra; tudo que o cerca é-lhe inferior, porque pela percepção ele conhece a tudo, quando nada o conhece, pela consciência ele se conhece a si, pela idéia o mundo do absoluto existe nele em germe, e pelo pensamento dessa Idéia absoluta ele tende ao absoluto. O espírito é o que Deus fez de mais digno, porque ora pela arte ele reveste a idéia das formas sensíveis, ora, pela religião, interna-se no seio do eterno por uma comunicação íntima do finito com o infinito, o espírito é o eu afirmando-se e afirmando a tudo, o eu na eternidade, no infinito, na liberdade, no bem, na beleza, ideais: ele é o reflexo, a imagem de Deus. Assim, os senhores não têm no escravo somente um corpo, como o seu, que condenam à morte, tem uma alma, como Deus, que condenam ao opróbrio.

retirado de:http://www.di.ufpe.br/~nabuco/escravidao/parte3-4.html