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Direito Alternativo: em busca de sua substantividade conceitual
CLÁUDIO SOUTO - Professor Titular Emérito de Sociologia do
Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Dr. em Direito pela UFPE
e Dr. em Ciências Sociais pela Universidade de Bielefeld (Alemanha).
Prof. da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco.
No primeiro mundo, inclusive nos Estados Unidos, a alternatividade quanto
ao Direito é menos comovente e, pois, menos clara (cf. Röhl,
1987:517-518 e 523-524, Raiser, 1987:202-203 e 210-213). Em geral se trata
apenas de reação a uma "enchente" normativa e processual
("Normenflut", "Prozessflut") e à burocratização legal.
Essa reação se apresenta como modos de desregulamentação
e de alternativas dentro da Justiça e de alternativas à Justiça
-- estas últimas consistentes basicamente de procedimentos de juízos
arbitrais (nesse sentido, Nöth, 1993:77-78 e 78-82; cf. Röhl,
1987:60 e 509-519, Raiser, 1987:202-213). Vê-se o direito alternativo
como "forma de regulação jurídica destinada a preencher
as lacunas de um direito em vigor, seja à margem, seja nos interstícios
deste último" (Arnaud e Bonafé-Schmitt, 1993: 11).
A ciência social do direito do primeiro mundo não conseguiu
ainda, de fato, definir de modo substantivo (pertinente a conteúdo)
e genérico o conceito-chave que é o direito como fenômeno
social. São apresentadas definições sócio-jurídicas
do direito de caráter tão formal que podem abrigar conteúdos
nitidamente contraditórios, em uma imprecisão conceitual
significativa que afeta a possibilidade de proposições causais
rigorosas sobre direito e realidade social. A alternatividade sócio-jurídica
primeiromundista seria então tímida, prática e teoricamente.
Não parecendo razoável uma ditadura subjetivista do poder
judiciário (aliás carente ainda, em geral, de uma maior formação
científico-substantiva), não se pode pretender que o magistrado
tenha, como regra genérica, a não-aplicação
da lei - embora tenha também uma inegável e concomitante
função criativa da norma, função esta atualmente
em expansão (cf. Cappelletti, 1993: 128-129, Faria, 1993: 42).
Diante da injustiça manifesta à luz de um conhecimento objetivo
(isto é, objetivamente testável), sua missão fundamental
de servidor do direito haverá de conduzi-lo ao praeter legem e,
mesmo, em casos excepcionais, ao contra legem (sobre essa excepcionalidade,
cf. Melo, 1994: 17 e 112-113, Lima, 1992: 45, Rodrigues, 1992: 196-197,
Faria, 1993: 45-46). Porque, se o magistrado dogmático é,
antes de tudo, o servo da lei , o magistrado verdadeiramente moderno e
cientificamente pós-moderno é, antes de tudo, o servo do
direito, entendido este como algo que implique, de modo necessário,
racionalidade testável do conhecimento e sentimento de justeza.
O direito alternativo é norma desviante em face à legalidade
estatal, do mesmo modo que esta última lhe é desviante. Não
coincide (ou não coincide de todo) o direito alternativo com a legalidade
do Estado, pois, de outro modo, não lhe seria alternativa (não
seria outro conteúdo: a palavra "alternativo" vem do latim "alter",
isto é, "outro"). Ou seja, o direito alternativo só é
tal pelo desvio, pela não-identificação, pela desseme-
lhança, em relação ao conteúdo da legislação
estatal (conteúdo este que também lhe é desviante
e, portanto, lhe é também alternativo).
Não se trata, simplesmente, pois, do uso alternativo (outro uso)
das próprias leis do Estado, isto é, a interpretação
delas que se procure fazer necessariamente no sentido do benefício
geral, utilizando-se para isso de pequenas aberturas, existentes na própria
legislação, e ampliando-se hermeneuticamente essas aberturas.
Não é apenas o praeter legem para benefício dos desprotegidos
economicamente, mas é o desvio aberto do sistema normativo estatal,
é o contra legem - que se pode atuar, explícita ou implicitamente,
em nome da justiça social.
Nem todo direito é alternativo porque direito e legislação
estatal podem coincidir, isto é, a legislação pode
ter conteúdo jurídico. Ao passo que direito alternativo e
legislação estatal são sempre reciprocamente contraditórios,
são sempre reciprocamente desviantes. Se se torna estatal, o direito
alternativo deixa de ser alternativo, embora não deixe de ser direito
(cf., para uma perspectiva diversa, Carrion: 1992:70).
Ou seja: direito é gênero, direito alternativo é espécie
do direito, por assim dizer sua espécie contestante, aquela que
se opõe à legislação do Estado.
Mas o direito alternativo, tal como se tem apresentado usualmente até
agora, possui uma referência grupal. Sua justiça é
a assim considerada por um grupo social desfavorecido. Seu critério
é, desse modo, quantitativo, de natureza grupal-majoritária.
Desvia da legislação estatal em nome de uma justiça
que se define por uma maioria grupal.
Isso torna o direito alternativo usual prisioneiro de uma perspectiva tãoformal
quanto a estatista, apenas mais abrangente porque referida a qualquer grupo
social desfavorecido e não só ao Estado (excetuados apenas
os grupos de criminosos comuns). E esse formal chega também ao formalismo
porque se substitui o grupo estatal (grupo dos homens do poder oficial),
por qualquer grupo, como critério de justiça. O que é
decisivo é o que o grupo entenda como justiça e como direito,
seja o que for. O que é decisivo é a forma "aceitação
grupal", que passa a substituir a forma "aceitação estatal".
Porém as conseqüências desse formalismo grupal se tornam
insuportáveis do ponto de vista de uma racionalidade substantiva.
Há duas décadas, estudando a norma social desviante, tivemos
a oportunidade de salientar que um critério meramente quantitativo-majoritário
do desvio --critério esse comum em Sociologia -- teria como resultado
preferir-se, como padrão não-desviante, aquele da maioria
de uma comunidade ignorante e refratária a aceitar a aplicação
de medicamento, produzido pela técnica científica, que salvaria
vidas em período epidêmico (Souto, 1974:86).
Isso não quer dizer que conhecimento popular e conhecimento científico
sempre se contradigam. A medicina popular, a medicina das ervas, não
ensina, não raro, à medicina oficial? Pois não raro
a ciência médica vai apenas confirmar, com os testes sofisticados
de sua pesquisa, o poder curativo que a tradição apontara.
Mas quem preferirá, racionalmente, o conhecimento com base na observação
não-controlada, ou pouco controlada, àquele fundamentado
na observação bem controlada? Por que seria então
critério do direito alternativo, e do direito em geral, aquela observação,
e não esta última?
Direito seria então o sentimento humano normal de agradabilidade
(que tem como "infra-estrutura" o impulso de conservação
individual e da espécie) informado de conhecimento geral empiricamente
comprovável (conhecimento científico-empírico, no
caso das sociedades civilizadas). Direito alternativo seria esse direito
quando desviante de leis ou decisões estatais, ou de "leis" ou decisões
de grupos sociais não-estatais (as quais, por sua vez, lhe seriam
também desviantes).
Naturalmente, tanto o direito, como o direito alternativo, em sua aplicação
prática, implicarão a informação daquele sentimento
de agradabilidade pelo conhecimento das circunstâncias particulares
do caso concreto -- ou seja, implicarão eqüidade (cf. Lopes,
1992:75-76).
Com isso se assegura, por via científico-empírica, pela determinação
genérica de seu conteúdo (substantivamente portanto), uma
autonomia do direito alternativo em face a qualquer forma de comunicação
impositiva, seja ela estatal, ou grupal, ou classística.
Não pode, logicamente (definidos com relativa precisão o
direito e o direito alternativo), haver dois "direitos" opostos, o alternativo
e o estatal: um só deles será direito, ou nenhum o será
-- de acordo com a definição científico-empírica
de conteúdo do jurídico como fenômeno social, que se
tenha. E essa definição, como se viu, poderá ser válida
para todas as culturas.
Na verdade, em termos de racionalidade quanto ao direito, como se poderia
contestar a aplicabilidade de um princípio como o da não-contradição:
"Uma afirmação e sua negação não podem
ser todas duas verdadeiras a propósito da mesma situação
de fato"? (cf. Beyleveld e Brownsword, 1989:402 e 410)
Mas, se há, assim, uma unicidade lógico-científico-empírica
do direito alternativo em face ao padrão estatal ou popular que
lhe seja desviante (se a referência comum dos padrões reciprocamente
desviantes for o mesmo tipo de relação social), onde fica
o pluralismo quanto ao direito e ao direito alternativo? Fica, em teoria
sociológica, tanto quanto possível rigorosa, do jurídico,
nas fontes, sempre plurais, de produção do direito e do direito
alternativo.
De outra maneira, estaremos dando um primado à forma sobre o conteúdo,
na caracterização do direito e do direito alternativo. Se
o direito se definir pela forma, esse formalismo pode caracterizar igualmente,
como "direito", tanto o padrão da favela que legitima espancar a
adúltera, como o padrão estatal que o proibe. Seria igualmente
"direito" tanto a aspiração dos grupos excluídos por
moradia, quanto a negação ou omissão estatal a esse
respeito.
Se não é possível uma "neutralidade axiológica"
do cientista (pois sua mente de ser afetivo não pode deixar de avaliar,
de valorar), será porém de todo viável que, enquanto
faça ciência, procure, tanto quanto possa, restringir suas
avaliações ao valor "cientificidade" (isto é, à
objetividade testável pela observação controlada,
à concordância possível de suas descrições
e explicações com o que parece real).
Assim é que o próprio direito alternativo como fenômeno
(não obstante a sua natureza de direito sempre desviante do status
quo), na medida em que se informa de ciência empírica, tem
nisso diminuída a um nível não-significativo a sua
informação ideológica.
Trata-se, pois, de desengajar ideologicamente a ciência do direito
alternativo, e o próprio direito alternativo, no máximo que
se possa, para que essa ciência e esse direito sejam o mais possível
objetivos. Mas não se trata de desengajar o direito alternativo
da sua natureza intrínseca de direito desviante do status quo, de
sua natureza de padrão de mudança, inclusive de mudança
social profunda. Isso, aliás, seria, por definição,
impossível.
Haveria um engajamento da prática jurídica alternativa para
a realização do direito de todos; e, por outro lado, existiria
um desengajamento ideológico, tanto quanto seja possível,
da ciência do direito alternativo e do direito alternativo em si
mesmo, para fins de uma maior objetividade e eficácia (sobre o problema
de uma fundamentação substantiva para a jusalternatividade,
veja-se Souto, 1997: passim).
Artigo retirado da internet: http:www.trfi.gov.br/Enfoque Jurídico