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Redistribuição Social e Valor Intrínseco

Daniela Ikawa

 

Este trabalho objetiva defender o caráter universal dos direitos humanos, tanto sociais quanto políticos, adotando como argumento básico a existência de um valor intrínseco igual a todos os seres humanos. No intuito de se adequar o trabalho ao tema do seminário, o foco será voltado aos direitos sociais. Duas questões centrais serão abordadas: a da distribuição de recursos em geral e a do tratamento preferencial em particular. A discussão dividir-se-á em três partes. Na primeira seção, a existência de um conceito completo - em oposição a um conceito utilitarista "menos que completo" - de valor intrínseco será defendido. Na segunda seção, o conceito de valor intrínseco será aplicado aos casos de distribuição de recursos em geral e na terceira, aos casos de tratamento preferencial. A importância de se estabelecer uma base sólida para a existência de direitos sociais pode ser melhor percebida na medida em que qualquer medida de cunho social, da melhoria do acesso a justiça à implementação da educação, requer uma prévia política de redistribuição de recursos. Não existe um conjunto interminável de recursos a serem distribuídos. O que ha e uma realocação de recursos que certamente afetará os interesses individuais de muitos, como o do empresário que, por exemplo, terá que suportar tributos mais altos ou que não verá construída uma auto-estrada que lhe traria benefícios, por terem as verbas disponíveis sido utilizadas na construção de escolas.
 
O Conteúdo do Valor Intrínseco ao Ser Humano
 

Esta discussão pode começar por uma concepção absoluta, não comparativa de valor humano. Parte-se aqui do princípio de que guardamos a convicção, talvez na forma de uma intuição moral, da existência de um valor humano intrínseco gerado pelo simples atributo da humanidade ou pelo conjunto de características essenciais que constituem a humanidade de cada ser sem se considerar o papel deste ser como instrumento a serviço dos interesses de um outro ser. O conteúdo deste conjunto de características, todavia, é matéria mais controversa do que aquela que versa sobre a própria existência de tal conjunto.

Fosse uma pessoa destituída se todas as suas qualidades não essenciais, o que deveria restar em seu cerne, em uma perspectiva absoluta ou não comparativa, que consistiria em valor humano intrínseco? Alguns tem argüido que o valor inerente ao ser humano deriva de sua capacidade para sofrer e de sua vontade para procurar a felicidade. Outros, seguem o intento de traçar uma linha fronteiriça mais clara entre os humanos e os animais, derivando o valor humano intrínseco da razão humana e da capacidade moral. Essas teorias apresentam deficiências. Após se discutir algumas delas, todavia, defender-se-á que as deficiências das teorias baseadas na capacidade moral podem ser superadas pela aplicação do conceito de valor intrínseco não apenas como base, mas também como princípio regulador.

A teoria que estabelece a aversão a dor e a atração a felicidade como características humanas comuns traz a vantagem de ser mais facilmente aplicável a todos os seres humanos sem qualquer exceção aberta a casos marginais, isto é, a casos envolvendo crianças de tenra idade e adultos portadores de deficiência mental. Todavia, nessa tentativa de abarcar todos os seres humanos, a teoria não pode evitar uma posição demasiadamente inclusiva. Muitos animais podem ser incluídos no grupo de seres que estimam o prazer e têm aversão ao sofrimento. Não se ressaltariam aqui, portanto, características que justificariam a existência de direitos especiais comuns aos seres humanos. Atualmente, muitos defensores de direitos dos animais se baseiam, na verdade, nesse mesmo conjunto de características para justificar a existência de um valor intrínseco também aos animais - valor que pautaria uma demanda de direitos. Aqueles que concordam sobre a existência de uma intuição moral como base do valor inerente aos humanos podem não estar preparados para equalizar tal valor àquele pertencente aos animais. Separar os dois grupos - humanos e animais, entretanto, requereria, dentro dos limites da teoria relativa à dor e ao sofrimento, a adoção de uma medida complementar: a prova da superioridade da raça humana na comparação entre o sofrimento e o prazer humano e o sofrimento e o prazer dos animais em caso de conflitos de interesses, de forma que uma demanda humana portasse maior peso. Esta superioridade não poderia ser baseada em nenhuma característica humana essencial outra que a capacidade de sentir dor e prazer sob pena de se destruir o próprio substrato da teoria, que considera como únicas qualidades essenciais relevantes a capacidade de sentir dor e prazer. Uma solução poderia ser a de basear a prioridade das demandas humanas no conceito de reconhecimento. Dar-se-ia prioridade àqueles da mesma espécie, através de uma simpatia nascida das características comuns, que seriam suficientemente relevantes para fazer com que um ser visse em outro sua própria imagem, como o sugerido por Benn. Essas características não poderiam ser, contudo, a capacidade de sofrer ou de sentir prazer, pois tais capacidades são possuídas por humanos e animais em um grau provavelmente similar, não sendo possível traçar por elas uma linha divisória entre humanos e animais. Nesse sentido, a base da teoria do sofrimento seria mais uma vez comprometida.

Por sua vez, a teoria do valor humano intrínseco fundada em uma capacidade moral "mínima", há muito definida como a propriedade de se estar ciente da própria existência e da possibilidade de escolher e seguir a própria concepção de bem, evitaria mais facilmente a questão da separação entre humanos e animais, ao mesmo tempo que proporcionaria uma característica comum a todos os seres humanos. A teoria levantaria, contudo, uma questão de grau. Sendo a capacidade moral sujeita a gradações, deveriam ser então os seres humanos apercebidos como diferentes entre si no que tange ao seu valor de acordo com a sua posição na escala de capacidade moral? Ou deveria esta capacidade ser observada como uma linha de divisão categórica, não sujeita a gradações? Nesta ultima situação, poderia uma característica que é empiricamente percebida como variável, ser ainda considerada como categórica para os fins da teoria? A resposta para esta última questão, que pode responder a todas as outras, pode ser encontrada na noção de propriedade de faixa - "notion of range property," explicitada por Rawls. Segundo Rawls, a noção de propriedade de faixa imporia a qualquer ponto no interior de um determinado círculo uma condição de igualdade - relativa ao fato de estar no interior do circulo - a despeito de quaisquer variações em faixa, isto é, a despeito da localização de certo ponto em relação ao centro do circulo. A predominância de uma "propriedade de faixa" sobre variações basear-se-ia no fato de que apenas em teorias teológicas, o que não é o caso de Rawls ou da teoria exposta neste trabalho, seria necessário distribuir recursos de acordo com variações da propriedade no intuito de alcançar a maximização de propriedades que levaria ao objetivo final. A questão aqui não é alcançar um objetivo específico, mas ratificar a existência de um valor humano intrínseco. Em outras palavras, não se usa aqui a teoria de valor intrínseco para se alcançar um objetivo outro que não a própria reafirmação deste valor. Ademais, voltando à teoria de Rawls, quaisquer variações de grau relativas à qualidade humana essencial seriam simplesmente vistas como bens naturais, obtidos através de uma loteria natural, isto é, através de uma distribuição moralmente arbitrária cuja falta deveria ser compensada por um sistema de "redress and mutual benefit". Seguindo esta linha, uma capacidade moral mínima serviria propriamente como linha divisória categórica a ser considerada acima das variações em capacidade moral em geral. Quaisquer variações em grau deveriam ser levadas em consideração em contraste com aquele parâmetro mínimo, imutável quanto ao valor intrínseco do ser humano; seja na estruturação de políticas públicas e privadas, seja como um princípio regulador dos procedimentos e propósitos dessas políticas. Nesse sentido, a crítica feita por Pojman à existência de um valor intrínseco e igual a todos os humanos poderia ser respondida pela existência de um conceito de valor inerente, que é basicamente o mesmo para todos os seres humanos, a despeito de questões de grau na capacidade moral genérica.

Há, contudo, ainda outra questão que deveria ser analisada acerca da teoria de valor intrínseco: os casos marginais. Se comparada aos animais adultos de certas espécies, as crianças de tenra idade ou os adultos humanos portadores de deficiências mentais poderiam apresentar capacidade moral em grau inferior. Ou, em termos não comparativos, esta criança e esta pessoa adulta poderiam até mesmo não alcançar a linha divisória aqui determinada. No que se refere ao primeiro caso, todavia, pode-se alegar que comparações devem ser feitas entre membros equivalentes de cada grupo. Se for entendida como necessária a comparação entre seres humanos e animais, essa comparação deve envolver o humano adulto e o animal adulto e não, por exemplo, a criança humana e o animal adulto. Nesses termos, seria o adulto humano quem apresentaria uma capacidade moral mais alta - uma capacidade, além disso, que ultrapassaria a linha divisória estabelecida para a propriedade de valor humano intrínseco. (A existência de tal divisória não leva à conclusão de que animais não podem ser defendidos contra violências. De acordo com uma concepção de bem amplamente acatada, ferir ou prejudicar outros seres constitui um mal em si. Desse valor ético, tem-se como reprovável o tratamento cruel seja de seres humanos seja de animais.)

No entanto, é o segundo caso que realmente diz respeito a uma teoria não relativa, não comparativa de valor humano intrínseco. A prioridade concedida a demandas relativas a seres humanos sobre as demandas relativas aos animais em casos não comparativos não pode ser baseada na mera condição de membro da espécie humana mesmo no que se refere a casos marginais. O valor de uma criança de tenra idade se baseia na potencialidade desta em desenvolver sua capacidade moral ao menos até o ponto de estar ciente de sua própria existência e de sua própria concepção de bem. O valor de uma pessoa com deficiências mentais absolutas repousaria na sua potencialidade virtual de desenvolvimento moral. Problemas pertinentes a casos marginais seriam, portanto, sobrepujados pelo conceito de valor intrínseco aqui adotado.

A conclusão a que se pode chegar seria a da maior consistência da teoria de valor intrínseco básico e não variável, que engloba as idéias de continuidade no tempo e capacidade moral, sobre a teoria pautada no binômio dor-prazer. Este conceito, que carrega a noção de igualdade de valor entre os seres humanos, serviria de substrato para uma distribuição social preocupada com o respeito ao indivíduo e para um tratamento diferencial que poderia ser usado na redução da discriminação social nociva, formada e consolidada ao longo da historia.

 

Igualdade de Valor Intrínseco e Respeito na Distribuição Geral de Recursos

 

O conceito de valor humano intrínseco poderia ser usado genericamente na distribuição de recursos, mesmo nos casos em que não há nenhum conflito direto entre indivíduos. A distribuição de recursos, como o seguro-desemprego ou o seguro-saúde, através da elevação de tributos e da criação de oportunidades, não raramente encontram o problema da preservação do auto-respeito dos beneficiários. A implementação de um conceito de valor intrínseco que tenha continuidade no tempo e, portanto, pertinente, pois favorece uma distribuição contínua enquanto ainda se preocupa com os resultados dessa redistribuição a cada beneficiário individualmente. Nesse sentido, ao menos três pontos devem ser discutidos: se uma distribuição contínua seria uma melhor maneira de se proteger o auto-respeito individual do que as teorias de portão de entrada ("starting-gate" theories); se seria necessário separar casos derivados da escolha individual e da sorte, reforçando-se as responsabilidades de cada indivíduo; e se medidas que não firam o auto-respeito dos beneficiários existem de fato.

Uma distribuição contínua pode ser a melhor maneira de se proteger o auto-respeito individual, pois ela daria a cada beneficiário uma compensação contínua pelas diferenças em talento - que é basicamente obtido por sorte genética ("genetic luck"), isto é, através de uma distribuição arbitraria. Esta compensação exerceria a função de reconstruir o auto-respeito individual não apenas através da redistribuição em si, mas também através de uma realocação da ênfase usualmente posta sobre o talento para uma característica humana mais essencial: a capacidade moral. Nessa linha, uma redistribuição contínua prevaleceria sobre as teorias de "porta de entrada", que não respondem as necessidades contínuas de se reconstruir o respeito individual e que não possibilitam aquela realocação há pouco mencionada (que requer uma pratica contínua). Entretanto, modos diferentes de distribuição contínua protegeriam o auto-respeito em graus diferentes. Resta, assim, a questão de como a distribuição deveria ser efetivada para melhor preservar a noção de auto-respeito individual. Pode-se responder tal questão através da discussão sobre escolha e sorte.

A discussão acerca da pertinência em se averiguar as razoes pelas quais um indivíduo teve que pedir assistência, se derivadas da escolha individual ou da sorte, faz-se relevante para o debate sobre o respeito em esquemas distributivos, pois tal averiguação implicaria em procedimentos administrativos mais burocráticos, longos e embaraçosos na concessão de benefícios. Primeiramente, cabe discutir se a escolha e de fato fator relevante no processo de concessão. Tome-se, por exemplo, Z, que decidiu abandonar o curso de segundo grau para trabalhar quando tinha 19 anos de idade, pois seus pais arcavam com os custos de sua educação com dificuldade. Aos 30, Z e demitida. A economia em seu país vai particularmente bem, mas Z não tem as aptidões necessárias para encontrar uma posição permanente. Z decide demandar seguro-desemprego. Agora, compare Z com A, que terminou seus estudos universitários menos por escolha própria que por dar continuidade ao costume vigorante em sua comunidade. Aos 30, A perde o emprego devido a má situação financeira da compania onde trabalhava. A requer seguro-desemprego. Deveria a escolha medianamente livre e informada de Z de abandonar os estudos, em contraposição a A que perdera o emprego devido a má sorte, contar como uma razão para que apenas A recebesse o seguro? De fato, Z teve a oportunidade de escolha, mas não a fez em benefício de uma proteção social futura. Quanto das escolhas feitas por A e Z poderia ser atribuído a elas e quanto à sorte? Poder-se-ia desse simples exemplo chegar à conclusão que aqueles com necessidades mais urgentes de redistribuição social seriam exatamente aqueles que mais freqüentemente seguiriam as "escolhas" menos apropriadas em vista de seu bem estar social futuro. Como foi ressaltado por Dworkin, em um ambiente onde disparidades sociais prevalecem, restrições à escolha livre e informada variam de acordo com "a sorte, a ocasião e o hábito". Não sigo completamente, porém, a distinção feita por Dworkin entre sorte bruta ("brute luck") e sorte-opção ("option luck"). O elemento escolha contém invariavelmente alguma parcela de sorte, isto é, de heranças sociais e naturais não selecionadas pelos indivíduos, e não pode ser separado dela. Mesmo em casos onde é dada a oportunidade de "livremente" escolher de um amplo leque de possibilidades, fatores naturais e históricos estimularão ou prejudicarão o exercício da escolha efetivamente livre. Haveria, desse modo, uma parcela maior de "option luck" que de "brute luck" em escolhas feitas por pessoas com maior talento herdado ou construído. Da mesma forma, tentativas de identificar as parcelas de influência da escolha e da sorte na situação vivenciada por Z pode ter nenhum outro efeito que não o de exacerbar a já difícil tarefa de requerer assistência social em sociedades que valorizam fortemente o sucesso financeiro e profissional.

Em suma, o conceito de intrínseco valor humano deveria receber prioridade aqui em detrimento da classificação entre indivíduos que fizeram ou não fizeram as escolhas corretas quando tiveram a oportunidade (restringida socialmente) de o fazer. Como não se provou ser a escolha um elemento relevante para a redistribuição, o intrínseco valor humano e sua conseqüente demanda por um tratamento igualitário ("treatment as equals") prevalece, requerendo-se igual tratamento entre casos baseados na escolha e na sorte. A necessidade de não ferir o auto-respeito do beneficiário inclui, portanto, a adoção de medidas que não diferenciem entre sorte e escolha.

A terceira questão - se existem medidas que não firam o auto-respeito individual, foi parcialmente respondida pela possibilidade de se conceder benefícios sem diferenciações entre a escolha e a sorte. Outro elemento não menos importante pode ser acrescentado: a percepção por parte dos beneficiários como capazes de implementar seus próprios objetivos através de escolhas mais informadas e de mais amplas oportunidades. Nesse sentido, a "distribuição" de treinamento técnico, associado a programas de desenvolvimento da auto-estima, e de informação acerca das oportunidades existentes prevaleceria sobre a distribuição de meros benefícios pecuniários. Isso não significa que benefícios pecuniários como o seguro-desemprego não devam ser pagos. Ao contrário, eles funcionariam como remédios paliativos necessários até que o beneficiário estivesse preparado para trabalhar e para se sustentar. Ademais, mudanças estruturais que, por exemplo, elevassem consideravelmente o salário mínimo consistiriam em uma redistribuição direta que não ocasionaria problemas de auto-respeito, resultando sim na própria reafirmação da noção de valor humano intrínseco.

Concluindo, ambas as idéias de não diferenciação entre escolha e sorte e de preparação de um sistema de beneficiários ativos são essenciais para redistribuições sensíveis ao auto-respeito. Tais idéias reforçam o reconhecimento do indivíduo como agente moral, como pessoa capaz, ao menos virtualmente, de construir sua própria concepção de bem.

 

Tratamento Diferencial e Valor Intrínseco Igualitário

 

O tratamento preferencial é uma forma de distribuição de recursos que variam da educação ao emprego a participação política. Ele tem sido usado nos Estados Unidos em uma tentativa de neutralizar a historia de discriminação massiva contra determinados grupos baseada em características não relevantes como a cor de pele e o sexo. Na Índia, o tratamento preferencial foi incluído na constituição do pais principalmente para diminuir as imensas disparidades sociais entre os membros das diferentes castas. No Brasil, o tratamento diferencial tem ido de encontro ao argumento de que agravaria quaisquer discriminações existentes. Políticas de tratamento preferencial podem englobar a reserva de lugares a serem ocupados por membros de grupos longamente discriminados, o estabelecimento de quotas para essa ocupação e o estabelecimento de requisitos mais flexíveis de admissão em escolas, universidades, empresas e mesmo em partidos políticos de pessoas pertencentes aqueles grupos.

Duas questões devem ser respondidas aqui concernentes ao tratamento preferencial dentro do conceito de valor intrínseco igualitário: utilidade e respeito. O valor humano intrínseco não é um artificio para a maximização da felicidade, tão familiar ao discurso utilitarista, é um fim em si mesmo. Seguindo essa linha traçada por H.L.A. Hart, o utilitarismo percebe os indivíduos como instrumentos, como meros recipientes de uma utilidade voltada para a maximização. Seu maior escopo não é o reconhecimento do valor individual, mas a obtenção do mais alto montante de utilidade. Desse modo, indivíduos são usados, e aqui eles perdem seu caráter de fins em si mesmos, de acordo com a potencialidade de cada um em servir como uma máquina na produção de utilidade, geralmente de felicidade. Como Hart explicou, o utilitarismo verte sobre os indivíduos um "não-valor" igualitário, isto é, todos os indivíduos recebem o mesmo valor, que pode ser nenhum valor. Menos que completa igualdade de valores não se ajusta, assim, ao conceito de valor humano intrínseco adotado na primeira seção deste trabalho, pois essa igualdade incompleta não reconhece o indivíduo como um agente moral, que é capaz de perceber sua própria capacidade moral e de conceber sua própria concepção de bem. O utilitarismo pode vir a ser uma teoria antidemocrática, já que pode requerer um líder capaz de desconsiderar os objetivos e desejos de cada indivíduo para alcançar outro fim: a maximização da utilidade. Por essas razoes - referentes ao uso do indivíduo como meio, a concepção vazia de um valor humano e a negação da importância do indivíduo como agente moral - o utilitarismo não pode servir como substrato para o tratamento preferencial, que é entendido aqui como o meio de implementação do valor humano cheio, completo e cercado pela idéia de respeito.

Uma valorização humana menos que completa, isto é, uma valorização dos seres humanos como meros recipientes de utilidade, e por vezes usada pelo utilitarianismo como base para o tratamento preferencial. De fato, a diminuição das desigualdades tem sido justificada, sem sucesso como o explicitado por Regan, através do uso das teorias complementares da inveja e da utilidade marginal. A inveja, o sentimento corrosivo resultante das desigualdades sociais, destruiria a maximização da utilidade. Poder-se-ia dizer que a redistribuição de certos recursos, como a educação e o emprego, através de um tratamento preferencial diminuiria o problema da inveja e, consequentemente, aumentaria o montante líquido de felicidade. Contudo, não há uma cadeia lógica inevitável que leve à superioridade desse método de inveja decrescente sobre o método de preservação das desigualdades sociais (e dos privilégios históricos) como o agente maximizador da utilidade. De fato, o ressentimento causado pelo tratamento preferencial àqueles que não foram beneficiados pela política podem impedir a maximização em um grau mais alto que a inveja dos indivíduos discriminados. Uma vez tendo-se entendido que essa segunda posição conservadora é mais eficiente para os propósitos utilitaristas, o programa da "discriminação revertida" seria completamente destituído de sua base no interior da teoria utilitarista. Algo similar ocorreria na adoção da utilidade marginal como o agente maximizador, pois é razoavelmente provável que a capacidade de transformar certos bens, como aqueles distribuídos pelo tratamento preferencial, em bem estar é maior em indivíduos localizados em uma posição já mais alta na escala do bem relevante. Tome-se educação, por exemplo. Haveria um limite para a educação contra o qual se poderia medir o grau de utilidade? Sem tal teto, duas horas de estudos pagos pelo governo não resultariam em mais alto bem estar, em qualidade e em quantidade, nas mãos de um pesquisador de sucesso que nas mãos de um analfabeto? Seguindo essa linha, o utilitarismo poderia defender tanto o sistema puramente meritocrático quanto um sistema mais igualitário. Esse é o motivo pelo qual a noção de valor intrínseco cheio ou completo apresenta uma base mais sólida para uma política de tratamento diferencial que o utilitarismo. A noção de valor humano intrínseco não se basearia nem na inveja nem na utilidade marginal, mas na necessidade de se implementar políticas que respondessem às demandas de um valor individual básico.

O conceito utilitário de valor humano poderia também ser antidemocrático, ou, no mínimo, menos democrático que uma teoria baseada unicamente no valor humano completo, no valor humano como fim em si mesmo. Essa é, na verdade, a razão pela qual o modelo de família explicitado por Matson em seu exemplo de discriminação revertida ou de tratamento preferencial é comparado por ele a um regime totalitário. Matson adota uma perspectiva utilitarista do tratamento preferencial, onde o escopo é o preenchimento dos "recipientes" individuais com unidades de felicidade assim interpretadas pelo "pai" - equivalente ao rei-filósofo de Platão. Um regime paternalístico não é apenas desnecessário para uma sociedade baseada no valor humano intrínseco, é também seu inimigo. De fato, é o regime proposto por Matson, e não o regime baseado no valor humano intrínseco aquele que pode levar ao totalitarismo. Ao mesmo tempo que reconhece a propriedade como fonte de poder político, Matson não aceita qualquer redistribuição social, incluindo aquelas efetivadas por uma política de tratamento preferencial, que não seja conduzida pelo mercado mesmo. Como não há sequer o pressuposto de uma igualdade inicial de recursos na teoria de Matson, profundas disparidades na distribuição de recursos, e consequentemente, na distribuição de poder político são permitidas. Uma hierarquia política, que pode ser transformada em um regime totalitário em caso de grandes desigualdades pode, assim, ser defendida através da teoria de Matson. Ainda, a alternativa proposta por Matson para o tratamento preferencial no campo de trabalho consistente na oferta de trabalho por salários mais baixos por parte de indivíduos usualmente discriminados serviria para reverter a discriminação dos empregadores não poderia certamente levar à melhoria da posição deste trabalhador discriminado ao ponto de ficar na mesma posição do trabalhador nunca discriminado, e muito menos ao ponto de mover para uma camada social mais alta. A vantagem "competitiva" criada por salários mais baixos para reverter a atitude discriminatória dos empregadores poderia, no máximo, estimular esses empregadores a pagar salários igualmente baixos até mesmo aos trabalhadores inicialmente não discriminados. Tal atitude levaria a uma equalização de salários entre os previamente discriminados e os não discriminados, como o previsto por Matson, mas levaria também ao aumento das disparidades sociais, e consequentemente, das disparidades no poder político. Esse resultado não é aceitável dentro da teoria de valor intrínseco, já que uma mera equalização não responderia aos direitos originados desse valor humano básico presente em cada indivíduo. Em resumo, o utilitarismo não oferece um bom substrato para o tratamento preferencial.

Finalmente, a implementação de uma política de tratamento preferencial que é acompanhada de uma teoria de valor intrínseco igualitário de sua origem a seus propósitos estimularia o respeito por indivíduos previamente discriminados. Uma das afirmativas mais comuns contra o tratamento preferencial é que este serviria para consolidar a discriminação, reafirmando a menor capacidade dos membros de certos grupos em obter sucesso independentemente. A política focalizaria, ainda, grupos ao invés de indivíduos.

Tome-se primeiramente o argumento referente a perspectiva grupal. Seguindo Rawls, que focalizou sua teoria de justiça na comparação entre indivíduos representativos de grupos mais ou menos avantajados para fins práticos de distribuição sem perder o parâmetro individual, e possível focalizar a distribuição de certos bens considerados relevantes através de um tratamento preferencial a grupos sem sacrificar a prioridade dada ao indivíduo. As razões principais para uma perspectiva baseada no grupo são: primeiro, que a discriminação nociva foi usualmente dirigida a membros de certos grupos, como os índios, os negros, as mulheres, unicamente devido à sua associação a esses grupos; e segundo, que tal discriminação, mesmo se existente nos tempos atuais em menor grau, deixou traços ao longo da historia na estrutura das instituições sociais. Conclui-se, pois, que a adoção de uma política que leve em consideração aquela associação pode se dar sem a negação do escopo de se implementar o valor individual intrínseco do ser humano. O fato é que a relação entre o grupo e o indivíduo em casos de discriminação é extremamente forte. Ademais, a perspectiva voltada ao grupo parece ser a única atualmente viável para se alcançar os indivíduos alvo.

Também o argumento de que políticas distributivas envolvendo um tratamento preferencial reforçariam a idéia de inferioridade dos membros de grupos já objeto de discriminação pode ser superado pela noção de valor intrínseco igualitário. A implementação do valor igualitário básico como principio regulador de processos e objetivos parece estar presente nas palavras de Dworkin - "tratamento de indivíduos como iguais" - em sentido diferente do mero tratamento igualitário. Não é o caso, contudo, de tratar pessoas como iguais apesar de não o serem, como na critica de Pojman a idéia de valor humano intrínseco. A questão é uma de dar prioridade aos fatores relevantes. E verdade que as pessoas são desiguais em termos de riqueza e educação, por exemplo, o que pode afetar o nível de capacidade moral individual. Todavia, a característica primariamente relevante aqui não é outra que não a capacidade de perceber a si mesmo como um agente moral e de conceber sua própria concepção de bem, isto é, seu valor individual intrínseco. De acordo com tal fator relevante, há igualdade entre seres humanos. Será esta igualdade prioritária que gerará uma base sólida ao tratamento preferencial. Em outras palavras, o respeito por indivíduos envolvidos em políticas de tratamento preferencial seria primariamente baseada nesta igualdade prioritária do valor intrínseco. Ainda, a implementação de programas de tratamento preferencial diminuiriam, a longo prazo, diferenças naqueles fatores menos relevantes, como a riqueza e o talento construído, permitindo aos indivíduos pertencentes ou não a grupos discriminados perceber que o valor humano intrínseco existe de fato e é prioritário. Este conhecimento iria também favorecer a idéia de respeito por indivíduos tratados preferencialmente, enquanto desmantelaria o argumento de sua menor capacidade.

A questão relativa as razoes para a mencionada prioridade pode ainda não ter sido respondida, contudo. Poder-se-ia dizer aqui que características consideráveis em políticas de admissão, como a inteligência e o talento, para citar algumas, não corresponderiam a noção de merecimento, já que recebidas através da sorte, ou nas palavras de Rawls, através de uma loteria natural. Desse modo, na ausência de características relevantes mais especificas, que poderiam ser legitimamente consideradas para os propósitos da distribuição, o valor humano intrínseco prevalece. A associação a um grupo racial, por exemplo, contaria para os propósitos de uma admissão preferencial não devido a cor de pele em si, mas como uma forma de compensação por uma discriminação perversa que ocorreu no passado e que continua, no mais das vezes, no presente. Essa discriminação não apenas desfavoreceu os membros de grupos discriminados, como também favoreceu os membros de grupos não discriminados ao eliminar grande parte da competição.

De fato, ao se adotar tal perspectiva acerca do tratamento preferencial, resolve-se também outra questão, concernente ao indivíduo que não foi selecionado, por exemplo, apesar de sua pontuação mais alta que aquela dos indivíduos admitidos preferencialmente. Seguindo ambos Nagel e Dworkin, haverá no caso duas demandas opostas, por exemplo: a demanda do homem branco pautada em discriminação racial e a demanda da mulher negra baseada no valor humano intrínseco. Aquela primeira demanda será defendida pelo argumento de que uma característica não merecida, mas útil, a inteligência, não foi levada em consideração como valor ultimo na seleção de estudantes ou empregados. A segunda demanda será baseada no argumento de que a inteligência foi suficientemente considerada para uma característica não merecida mas útil, e que o valor humano básico da mulher negra foi atendido, através de uma compensação por prévias e correntes discriminações raciais. Essa segunda demanda tende a sobrepor-se a primeira por um período determinado, no intuito de possibilitar a construção de uma estrutura social que se adapte ao conceito de valor humano intrínseco, isto é, a idéia de que as discriminações passada e atual, que fortemente minaram a existência de uma igualdade real de oportunidades, foram eliminadas.

Uma palavra final deve ser dada acerca da pertinência de se centrar as mudanças sobre as fundações da distribuição social desproporcionada. Para evitar a conotação de privilegio permanente sem propósitos outros, uma política de tratamento preferencial teria que avaliar a existência de formas previas ou correntes de discriminação, que ressaltar seu caráter temporário e que reforçar o papel ativo de seus beneficiários. A emancipação e não a dependência deveria ser estimulada por tal política. Como resultado, uma concentração de admissões preferenciais na educação básica favoreceria a constituição de uma igualdade de oportunidades. Já o tratamento preferencial em instituições educacionais de terceiro grau e no campo de trabalho, as conseqüências da discriminação histórica eliminadas pelo programa preferencial básico, teria como único escopo a compensação pela discriminação corrente.

 

Conclusão

 

Em síntese, a aplicação de um conceito completo de valor humano intrínseco como um principio regulador ao tratamento preferencial em particular e à distribuição social em geral basear-se-ia na seleção da característica mais relevante a ser considerada em casos de tratamento preferencial e distribuição social. Na discussão sobre tratamento preferencial, o valor intrínseco sobrepuja as diferenças em níveis de inteligência e talento construído, já que a inteligência e o talento construído têm sua propriedade como diferenciadores legítimos diminuída da seguinte maneira. Como a inteligência não é obtida por mérito, mas por sorte, ela deve ser considerada em uma seleção de candidatos apenas como um fator secundário, localizado logo abaixo do valor intrínseco, isto é, da consideração de que indivíduos são capazes de criar e de aplicar, se dada a chance, sua própria concepção de bem. Por sua vez, o talento construído usualmente depende de facilidades oferecidas por uma estrutura social que não foi adaptada ao conceito de valor intrínseco, isto é, por uma estrutura social que foi construída por décadas, ou séculos, de discriminação contra membros de grupos específicos. Tal talento não poderia ser considerado que numa posição secundária, juntamente com a inteligência. Na discussão da distribuição de recursos em geral, a idéia de valor intrínseco prevalece sobre qualquer outra distinção feita com base na "escolha", na medida em que a escolha - um elemento restringido por implicações sociais - e feita em um ambiente de profundas disparidades sociais.

A prevalência do valor intrínseco sobre outras características humanas em questões de distribuição levarão, além do mais, à consolidação do ideal mesmo, pois ela vai abrir barreiras à percepção da existência do valor intrínseco atrás da inteligência, do talento construído e da escolha restringida socialmente. A prevalência do valor humano intrínseco como princípio regulador estimulará também uma atitude de respeito por todos os seres humanos, já que esta característica de suma relevância presente em cada indivíduo clama por respeito. A adoção do valor intrínseco terá como resultado, ademais, a difusão de uma atitude de respeito por um número mais amplo de indivíduos do que o que seria resultante da adoção de outras características menos relevantes, como o talento construído. Ao mesmo tempo que promovera uma distribuição de recurso, incluindo aqui a distribuição do tratamento preferencial, a idéia do valor humano intrínseco como valor prevalecente permitira que um maior numero de indivíduos tenham acesso aos meios de construir e de desenvolver, por exemplo, seus talentos individuais.

 

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Texto retirado de http://www.pge.sp.gov.br/tesesdh/tese21.htm