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Os princípios e o Direito

HÉLIO SILVIO OUREM CAMPOS

Recentemente foi realizado, no Estado de Pernambuco, um grande Congresso Internacional sobre Direito Administrativo, Constitucional, Tributário e Teoria Geral; isto com a participação de Juristas de todo o mundo, particularmente dos vários Estados do Brasil, da Alemanha, da Itália e dos Estados Unidos da América do Norte.

Nele, muito foi dito sobre os princípios orientadores da aplicação do Direito.

E é exatamente sobre este assunto que escrevo mais adiante.

Tenho comigo que, em havendo uma ciência jurídica, ela precisa ser uma ciência prática.2 Os antigos romanos tinham consciência disto, e foram os seus fundadores. Mais: com o seu Direito conseguiram construir uma das mais instigantes e poderosas civilizações.

É verdade que uma Jurisprudência verdadeiramente prática não se limita a questões desta ordem. Por isto, penso que, mesmo devendo ser prática, não se deve ater simplesmente neste ponto de vista.

A sua dinamicidade implica pois nas seguintes constatações:

a) a prática diária constrói e reconstrói raciocínios e interpretações. Quem, em seu dia a dia, ou após um longo tempo, não passou por esta experiência.

b) o homem médio sabe que o conhecimento teórico amplia os seus horizontes, as suas perspectivas, e também é capaz de modificá-lo por dentro e alterar-lhe as ações.

Dito isto, reproduzo parte de um artigo que escrevi quando ainda cursava o Mestrado na Faculdade de Direito do Recife, nos idos de 1992.3 Nesta época, ainda estavam em mim muito presentes os constantes argumentos de escape ao Texto Constitucional/88, pois se afirmava que quase tudo que nele se encontrava continuava a depender de regulamentação, e, por conseguinte, não passava de um mero discurso político.
É o teor do meu artigo:

"Sendo a Constituição, marcadamente, um Estatuto jurídico do político, dá-se a penetração no plano jurídico de valores que se transformam em princípios, e que, de certo modo, denotam uma aspiração popular exteriorizada (Estado Democrático de Direito), embora a sua concreção possa não coincidir com a vontade da maioria.

No trabalho do intérprete, a isto se pondere sem que se leve a jurisprudência a constituir mosaico de várias cores, pois é necessários um mínimo de segurança.
Assim, o arco da generalidade da norma constitucional deve servir ao atualismo, e não a um historicismo decadente, não se esquecendo, portanto, do controle razoável do que ocorre nas ruas.

Sendo a linguagem diretiva a que mais importa ao Jurista, não cabe um sono profundo quanto à realidade. Sono profundo é morte e lidamos com a mais viva de todas as ciências.

Daí, podermos afirmar que a verdadeira obediência aos princípios jurídicos depende a atesta o grau de amadurecimento social.

Com estas reflexões, afirmo existirem três fatores que, fortemente (e às vezes inconscientemente), condicionam a interpretação de uma norma, inclusive a constitucional:
1. a mensagem ideológica da norma; 2. a cultura jurídica e a crença política, filosófica e religiosa. Acrescento aqui, a inserção sócio-econômica do intérprete, mais outros elementos que integram a sua personalidade; 3. a pressão social em seu âmbito externo.

Neste contexto, são os princípios fortes fatores de agregação.4

Não apenas os princípios que vêm expostos em expresso pelo legislador, mas também aqueles que podem ser extraídos do sistema.

Disto se pode inferir que está implícito no sistema que a concepção de uma lei dá-se em função de uma necessidade e decorrente utilidade, levando-se em conta períodos que se podiam prever, havendo uma verdadeira tensão entre o caráter jurídico e as lutas políticas.

Logo, a manutenção de um ordenamento jurídico não permite pensar que o sistema seja composto exclusivamente por regras, pois são os princípios que lhes conferem um mínimo de coesão.

Uma das classificações propostas para os princípios é aquela propugnada por CANOTILHO perante a Constituição Portuguesa.5 Por ela, os princípios se classificariam em: I. princípios jurídicos fundamentais: seriam aqueles "historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica geral e que encontram recepção expressa ou implícita no Texto Constitucional"; II. Princípios políticos, constitucionalmente conformadores: seriam os que "explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte"; III. Princípios constitucionais impositivos: seriam aqueles nos quais "se subsumem todos os princípios que no âmbito da Constituição dirigente6 impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas"; IV. Princípios-garantia: aqui, seriam incluídos "outros princípios que visam instituir direta e imediatamente a uma garantia dos cidadãos", sendo-lhes "atribuída a densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante positiva e negativa". São os ditos "princípios em forma de norma jurídica".

Feitas as observações de CANOTILHO, considero que seja este o momento em que devo propor a distinção entre os princípios gerais do direito e os princípios jurídicos investidos em regras jurídicas.7

Adotando aqui o pensamento de ANTOINE JEAMMAUD,8 afirmo que aos princípios jurídicos investidos em regras jurídicas não cabe a valoração em verdadeiros e/ou falsos, mas em vigentes e/ou eficazes, ou não vigentes e/ou não eficazes. Esta é a linguagem do direito. Ou seja, no plano da linguagem diretiva, formulada visando influir em comportamento alheio, não faz sentido predicar verdade ou falsidade. Da diretiva diz-se ser justa ou não; conveniente ou não; eficaz ou não, descomportando juízo de verdade.

O mesmo não ocorre com os princípios gerais do direito, pois, contendo proposições descritivas (não prescritivas) pertencem ao mundo do que é ou não verdadeiro; ou melhor, plausível. Esta é a linguagem da Ciência do direito. Deles, no direito nacional, faz-se referência no art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec. nº 4657/42).

E não é um sem importância o comentário de um consagrado jurista brasileiro sobre a natureza desta lei: "Da natureza da Lei de Introdução, resulta que as regras contidas nesta Lei não são peculiares ao Código Civil, aplicando-se, antes a todas as leis, quaisquer que sejam, como as penais, as comerciais, as fiscais, as processuais etc. (...) Pouco importa estar ela colocada como Introdução ao Código Civil, o que encontra justificativa, como já foi explicitado pelos mestres, no fato do Código Civil constituir a parte mais importante de nossa legislação."9

Talvez, este seja um dos motivos pelos quais as Faculdades de Direito, em todo o País, dediquem tantos créditos ao Direito Civil e tão poucos ao Direito Constitucional; isto quando este último simplesmente não é confundido com Teoria Geral do Estado ou Ciência Política.
Penso ser esta uma das causas justificados da inabitualidade de se observar princípios jurídicos; e, sobretudo, os constitucionais. Vê-se a Constituição como um mero programa de observação discutível. Daí, o profundo equívoco de que a Constituição estaria "recheada" de princípios gerais, que nada prescrevem.

Enfim, aqueles que defendem a natureza meramente programática dos princípios não se encontram em posição de neutralidade, mas estão forçando uma compreensão contrária a de que a linguagem do direito é de natureza prescritiva."

Passados quatro anos, e já agora como membro do Poder Judiciário, considero que ao Supremo Tribunal Federal cabe uma parcela profundamente importante no sentido de se conferir relevância ao Direito, transformando a Constituição de um mero programa em norma de real controle do Poder. Neste contexto, e diante do Poder reformador já exercido e a se exercer, caberá ao Órgão máximo firmar os limites de inalterabilidade do Texto (art. 60, § 4º, CF/88), particularmente no que diz respeito aos direitos e garantias conquistados pelos indivíduos e pela coletividade em geral.
 
 


1 HÉLIO SILVIO OUREM CAMPOS. Professor da escola Superior da Magistratura/PE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Colaborador do "Bureau Jurídico". Juiz Federal/PE. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Delegado eleito pela Seção Judiciária do Estado de Pernambuco na AJUFE - Associação Nacional dos Juízes Federais (1996). Ex-Procurador Judicial do Município do Recife. Ex-Consultor e Procurador do Estado de Pernambuco. Ex-Assessor do Corregedor Geral da Justiça do Estado de Pernambuco (1992-1993). Ex-Assessor do Relator da Comissão de Sistematização da Constituição do Estado de Pernambuco/89. Ex-Membro da Comissão de Sistematização Legislativa - Estado de Pernambuco (1989/1990). Aprovado em Concurso Público para Procurador do INCRA.

2 Ver ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. J. Baptista Machado. 6 ed., Lisboa: Fundação Caloustc Gulbenkian, 1988, ps. 13 e 19.

3 Nesta época, ainda não era Juiz, mas Procurador do Estado de Pernambuco.

4 Aristóteles precisou vários significados para o termo princípio, a saber: ponto de partida do movimento de uma coisa; o melhor ponto de partida; o elemento primeiro e imanente da geração etc. (Ver MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Trads.: Antônio José Massano e Manuel J. Palmerim. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, ps. 322-3).

5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 3. Ed., Coimbra, Almedina, 1983, ps. 200-3.

6 Não cabe para a Constituição o isolamento no mundo lógico. É preciso que ela seja efetiva. A proclamada natureza programática das normas constitucionais termina por esconder uma reação às suas conquistas. O direito é feito para o presente e para o futuro, e não como um culto ao passado imutável ("vontade do legislador"). Não cabe aos mortos o governo dos vivos.

7 A expressão regra jurídica foi aqui utilizada em sentido diverso do empregado por Kelsen, para quem regra jurídica é proposição descritiva, própria, portanto, à Ciência do Direito. Entendo: a) se a norma é jurídica, é prescritiva. Este raciocínio se aplica, inclusive, às normas constitucionais; b) todas as normas constitucionais são jurídicas, e, portanto, prescritivas; c) a referência feita aos princípios gerais do direito, na Lei de Introdução ao Código Civil, em nada autoriza compreender que as normas constitucionais estejam inseridas nesta categoria. Afinal, a Lei de Introdução ao Código Civil é que deve ser interpretada de acordo com a Constituição, e não o inverso. Mais: conforme o art. 4, da Lei de Introdução, apenas devem ser aplicados os princípios gerais na hipótese de omissão legal. Admitir que a Constituição esteja preenchida por princípios gerais é o mesmo que afirmar que só se deve aplicá-la se não houver lei que disponha contrariamente a ela, o que constitui um absurdo.

8 JEAMMAUD, Antoine. Les principes dans le Droit français du Travail. Droit Social n. 9/10, set-out, 1982, p. 618.

9 SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado - Introdução e Parte Geral (arts. 1-42.) Metropole Editora, 1936, 1º vol., p. 12.
 
 

(Extraído de  http://www.elogica.com.br/rejufe/princip.htm)