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A interpretação jurídica : algumas reflexões discutíveis

Orlando Ferreira de Melo

FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO
II CONGRESSO BRASILEIRO DE FILOSOFIA JURIDICA E SOCIAL
COMUNICAÇÃO

Orlando Ferreira de Melo
PROFESSOR

Blumenau (SC), Julho de 1986
 
 

A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: ALGUMAS REFLEXÕES DISCUTÍVEIS
 
 

I
O TEMA








As afirmações de que: lº) as escolas de interpretação jurídica agrupadas sob a denominação de "escolas teleológicas", sociológicas, da "livre interpretação do direito", do "direito livre... da "livre criação do direito" e outras da mesma linha, não se referem propriamente à interpretação da lei mas sim à interpretação (valoração) do fato e, por isso, escapam à área do direito por pertencerem aos estudos sociológicos, econômicos, psicológicos e outros da área do comportamento humano e 2º) os estudos sobre interpretação jurídica deveriam, exclusivamente, voltar-se para a análise da lei, do texto escrito, o que comporta, apenas, o exame filológico, lógico e sistemático (comparativo de termos e conceitos), podem levar a respeitáveis contestações como I) parecer um retorno inaceitável à escola de exegese e 2) pretender o isolamento da ciência do direito do contexto interdisciplinar.
O objetivo desta comunicação é analisar, embora sucintamente, as duas afirmações supras e as correspondentes contestações.
 
 

                                                                                            II

                                                                              AS AFIRMAÇÕES
 

Uma visão global do desenvolvimento do pensamento jurídico e das escolas hermenêuticas dele decorrentes mostra, com relativa nitidez, dois grandes blocos, cujas linhas demarcatórias situam-se aproximada mente, na passagem do século XIX para o século XX.

Para melhor identificar referidas escolas neste marco temporal, lançaremos mão da tese que distingue as escolas hermenêuticas em dois grupos, segundo sejam de orientação dogmática ou de orientação zetética.

As primeiras consubstanciam-se na escola da exegese(França), na escola da jurisprudência conceitual (sistema Germânico) e na escola da jurisprudência analítica (sistema da "Common Law"), as de orientação zetética repudiam o dogmatismo exegético e perfilam os ideais da interpretação teleológica, voltada para o conteúdo social, realista e ideológico do direito.

A escola da exegese lembra - pois assim ficou historicamente estigmatizada - o rigoroso aprisionamento do intérprete às palavras da lei e à sua direta aplicação.  Seu lema “dura lex sed lex” tornou-se dogma de fé, uma "ratio juris" específica.

Por outro lado, as escolas zetéticas são, de certa forma, um dos produtos da eclosão liberal do século XX - cujas raízes se encontram no século XVIII - e das novas concepções econômicas, estéticas, políticas e sociais que marcaram de forma profunda o nosso século, distinguindo-o tão nitidamente dos anteriores.

O liberalismo do século XVIII, com figuras exponenciais como Montesquieu, Voltaire e Bentham, exerceu profunda influência no campo filosófico, religioso e das instituições políticas.

No início do século  XIX significou, principalmente, liberalismo econômico, individualismo, livre-competição e laissez-faire.  A classe média assume realmente o poder, com a ruptura das dificuldades e diminuição de privilégios específicos.  O nacionalismo surge como força adicional. A sociedade, de um modo geral, está impregnada do utilitarismo inglês, da nova fé no progresso e na evolução e do liberalismo nacional e internacional.

Todo o arcabouço material e psicológico, originário do século XVIII, acrescido da segunda fase da revolução industrial e das revoluções científicas gerou? no século XX, a sociedade de massa, o impacto da ciência na sociedade a imprensa popular, a mudança na situação social e jurídica das mulheres e o crescimento da economia popular.

A tudo isto soma-se a revolução artística - as novas concepções da literatura, da poesia, das artes plásticas, da arquitetura. O mundo não mais poderia ser o mesmo, pois os grandes sustentáculos da sociedade estavam abalados: a autoridade da religião, a autoridade dos pais, a autoridade dos professores, a autoridade das próprias autoridades.

Esta ânsia de liberdade, de renovação, teria que repercutir no direito, resultando na busca de novas reformulações.  Todo um processo de liberalizarão influiu no direito - e portanto, nos modos de entendê-lo e interpretá-lo.

Tentaremos, agora, esclarecer o que entendemos por direito, tarefa nada fácil, se considerarmos as inúmeras acepções do vocábulo.

Entendemos que só poderemos pensar o direito em três momentos distintos: o da construção do direito; o da elaboração da norma e o da interpretação da norma (com vistas à sua aplicação).

Construir o direito é examinar as conseqüências dos atos humanos, das ações humanas.  A partir deste enfoque, o ato ou ação nunca poderão ser bons ou maus, positivos ou negativos.  Eles são neutros.  Suas conseqüências não.  Estas são valoradas.  Se as conseqüências forem indiferentes ao recebedor (paciente) elas não interessam ao direito, isto é, escapam de qualquer preocuparão normativa quanto ao fato gerador.  Se provocarem danos e, por isso, rejeição; ou satisfação e, por isso, aceitação, devem ser valoradas dentro de padrões ou parâmetros oferecidos pela moral, pela filosofia pela religião, pelos hábitos sociais e, então, serão disciplinados os atos que lhes deram origem.

Os atos que originaram conseqüências boas, aceitadas, queridas, serão estimulados (prêmios); os que originaram conseqüências má. repudiadas, não queridas, serão desestimulados (castigos, penas, sanções).

Nas normas legais estão as disposições sobre o que deve e o que não deve ser feito e não propriamente sobre o que é bom ou mau, justo ou injusto.  Estas disposições são concretizadas em palavras, gramatical mente arrumadas, para que se tornem inteligíveis.  Toda ,escritura" encerra uma vontade fundamental: ser entendível pois, caso não o seja, deixaria de ser uma combinação sígnica.

Quando interpretamos uma norma, palmilha-se o caminho inverso, na tentativa de rearrumar o texto escrito e atingir seu verdadeiro sentido.  Que sentido?  O sentido gramatical das palavras em si e de sua combinação lógica.  A interpretação deve esclarecer o que se permite e o que se proíbe, como se permite e como se proíbe e o que ocorrerá, quando de seu descumprimento, com o descumpridor.

Que se faz do texto legal assim interpretado?  Procede se a sua aplicação a determinado ato, prevendo as conseqüências deste ato associadas as conseqüências da própria aplicação da norma.

O problema, em sua essência, é: se se aplicar esta norma - assim interpretada - a determinado ato, isto é, à coisa acontecida, à determinada ação humana isolada ou a um emaranhado de ações, que conseqüências teremos?

Se a conseqüência for justa, isto é, estiver de acordo com os parâmetros que se arbitraram desejáveis a norma será aplicada caso contrário, será rejeitada.

Feitas estas colocações genéricas poderemos desenvolver as duas afirmações e suas contestações.

A interpretação do direito é a interpretação da própria lei, da norma escrita.

Mas o que é o direito escrito, uma norma posta e homologada, sem os fatos da vida?  Mera abstração.  Em face desta inegável realidade, filósofos e jurisconsultos desenvolveram doutrinas de interpretação do direito a partir dos fatos; imaginaram, de forma mais ou menos elaborada, visões sociológicas, realistas e integrais do direito, ou seja, a concepção do direito não como abstração, proposição idealmente descrita, mas como o reflexo mesmo do conteúdo e significado da vida.

Mas, em verdade, o que se tem aqui não é mais a interpretação da lei, ou mesmo do direito contido na lei, mas a interpretação do fato.  Tanto quanto de conhecimentos léxicos e lógicos para analisar o texto escrito, o intérprete, no processo de aplicação, deve munir-se de sólidos conhecimentos de sociologia, psicologia, biologia e até das ciências naturais, com referência ao conhecimento e análise dos fatos.

Sobre os resultados da análise valorativa dos fatos, adaptará a prescrição legal.  Há que notar que, embora sejam duas categorias diversas - fatos e normas - e, mesmo que estejam intimamente associadas no processo de interpretação-aplicação, os textos doutrinários, sistematicamente, mesmo aqueles que discorrem sobre correntes hermenêuticas que grassaram no século XX, não dão o suficiente destaque ao fato como objeto da interpretação.  Ou seja todas as atenções, mesmo nos textos elucidativos das escolas de tendência axiológica, estão voltadas acentuadamente para o direito escrito.

A propósito, afirmamos que não há normas justas ou injustas; há resultados justos ou injustos decorrentes da aplicação da norma a determinados fatos.

Essa avaliação axiológica somente deve processar-se quanto aos fatos e suas conseqüências quando é posta em referência a conteúdos extra-lógicos e extra-legais.

Em sentido amplo, esses conteúdos seriam amoldados por aspirações do direito natural e harmonizar-se-iam com os princípios contidos rias declarações universais dos direito do homem.  Em porções menores, ou em círculos restritos, seria o que se tem denominado, não sem severas restrições, de direito natural de conteúdo variável.

Historicamente, a fonte desses conteúdos axiológicos seriam a religião, a moral, o senso comum, quase que um instinto, como a fuga da dor ou a busca do prazer, no modelo benthamiano.

Um dos pressupostos da eficácia da direito é que a norma deve ter sido elaborada para que, de sua aplicação, resulte a justiça, Entretanto, tal objetivo é inalcançável em larga margem de casos, pois a vida é demasiadamente rica e dinâmica para jungir-se à fria abstração de uma regra pretensamente ubíqua e unívoca.

Depreende-se que o importante, com relação à norma,  é pensá-la teleogicamente, é fazer uma prospecção dos resultados de sua aplicação, é mapear seus efeitos, enquadrá-los numa moldura axiológica.

De um ponto de vista pragmático, na instância judicial, a melhor visão do problema é a que se concentra não nos teóricos e metafísicos labirintos hermenêuticos, mas na repercussão social da decisão.  Esta deveria valer não tanto pela sua estrutura lógica, pela sua erudita elaboração, mas pelos seus efeitos, axiologicamente considerados.

Um exame detido de acórdãos dos Tribunais nos dá     uma certeza estatística do que estamos defendendo: Na prática o que ocupa granje parte do trabalho jurisprudencial é a análise dos fatos; a interpreta o ção da lei faz-se apenas pelos processos filológicos, lógicos e sistemáticos, para trabalhar com o texto como premissa maior, na cadeia silogística em que o fato representa a premissa menor e, a sentença, a conclusão.

Tal constatação esvazia a grande importância que se pretende dar aos métodos contemporâneos de interpretação jurídica como interpretação da lei, pois, na realidade, são métodos de interpretação dos fatos.

Resulta, daí a segunda afirmação de que os estudos sobre interpretação jurídica deveriam exclusivamente, voltar-se para a análise da lei, do texto escrito, o que comporta, apenas, o exame filosófico , lógico e sistemático (comparativo de termos e conceitos).
 
 

AS CONTESTAÇÕES
PRIMEIRO PONTO:

Nossas colocações não levam necessariamente à defesa do método exegético.

São múltiplos os sistemas que se denominam "exegética".  Mas, detalhes à parte, a exegese obteve predominância a partir da sistematização legislativa, conseqüência das codificações efetuadas nos séculos XIX e XX.  Eram receitas que orientavam os juristas no exame e entendimento da lei escrita.  Associava-se o direito com algo desejado pela autoridade, e o respeito, às vezes místico, devido à autoridade era repassado para o próprio texto.  O comando contido na lei era sacralizado e o disposto deveria ser cumprido, sem contradições.

Não é isto que defendemos.  Porque há que distinguir entre dois momentos: interpretar a lei e aplicá-la.  Na interpretação da lei, defendemos, por considerá-la uma expressão lingüistica, sejam utilizados os métodos gramaticais, apoiados pela sistematização e pela lógica; na aplicação da lei, parece-nos que o texto só deveria ser considerado se não levasse a uma solução injusta, iníqua, isto é, se as conseqüências da sentença não destoasse dos princípios de justiça universalmente aceitos.

É aqui que o ponto de vista que defendemos discrepa fundamentalmente da exegese tradicional, que obriga a aplicação da norma pela própria norma, pelo respeito mítico ao poder do qual emanou.

Reconhecemos que a prática de afastar o texto legal da lide, inclusive com a criação de uma norma nova, esbarra nos padrões processuais - ora vigentes, e, deste modo, os magistrados evitam tais colisões.

Mas o tema deveria ser seriamente repensado.
 

                                                                            SEGUNDO PONTO:

A tese que estamos defendendo não retira, do direito, a sua característica interdisciplinar.  Não retira porque não entendemos o “direito" como a lei: nossas ponderações são feitas com relação à lei escrita e não com referência ao direito.

A ciência do direito situa-se num contexto interdisciplinar e dele não pode ser isolado.

Novamente, o problema é de conceituação, do que se entende por direito.  Não cremos que o direito esteja contido na lei.  A lei só contém palavras, signos que comunicam algo, de certo modo estratificados.  O direito é uma força viva, instável e profunda. É a força que utilizamos para, no confronto entre fatos e aspirações, estabelecer determinada har. monia, permitindo o convívio e a paz social.  Neste contexto, a ciência do direito é interdisciplinar, pois opera com todos os conhecimentos das ciências humanas e sociais para colocar em palavras - na lei. - os comportamentos e regras básicos de convivência regidos por princípios de justiça.
 
 

                                                                              CONCLUSÕES

        Postular que a atividade de interpretar o direito deve cingir-se à análise do texto escrito, pelos processos filológicos, lógicos e sistemáticos não implica em minimizar a ciência do direito.  Todas as virtualidades do direito são exercidas na medida em que se constrói o arcabouço legiferante.  Quando a interpretação de norma e a respectiva aplicação ao caso concreto não se coaduna com os princípios de justiça, ou melhor, se as conseqüências da decisão discrepam desses princípios, a norma deve ser abandonada e substituída por outra.

No apogeu da exegese, tal não poderia ocorrer. A lei era considerada perfeita, imutável por corresponder ao desejo do detentor do poder.  Os processos e critérios valorativos servem no instante da criação do direito e de sua concreção sígnica (norma); voltam a servir quando do exame das conseqüências da aplicação da norma.  Mas, com relação às próprias normas, a interpretação será a mesma que a empregada em qualquer texto escrito.