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O sentido da lei na teoria política moderna : enfoques em More, Hobbes e Marx

Por: Rafael Thomaz Favetti - Acadêmico de Direito

O presente trabalho visa abordar o sentido da lei no pensamento político moderno, tendo como objeto a teoria de três autores :Thomas More, Thomas Hobbes e Karl Marx. Esses autores foram propositalmente escolhidos, pois cada um representa períodos distintos do pensamento político moderno.

Thomas More está no período inicial da teoria moderna, Hobbes encontra-se no meio e Marx no fim, já incorporando o surgimento da sociologia e representando o início do pensamento político contemporâneo. Por esta alocação temporal, fica claro o porque da escolha destes três autores. Mas não é só por isso; cada um deles também representa um direcionamento novo em relação a natureza da norma jurídica.

Creio que para ler este trabalho não necessita de ter conhecimentos jurídicos, pois o aspecto abordado é a natureza política da lei, mesmo sendo esta regulada pelo ordenamento jurídico.

A lei que falo é aquela provida do Estado. Não me aterei no chamado pluralismo jurídico, isto é, normas elencadas por outros agentes ou outras instituições que não o Estado, como Igreja ou uma parte da sociedade; detenho-me no monismo jurídico, pois é o Estado o pano de fundo do presente trabalho, que se "mostra " através de suas leis.

Os textos são específicos. Quanto a Thomas More é a famosa brochura " UTOPIA "; quanto a Thomas Hobbes é o seu célebre " LEVIATÃ " e em relação a Marx, " O MANIFESTO COMUNISTA ", " 18 BRUMÁRIO DE LUIS BONAPARTE " e " A IDEOLOGIA ALEMÃ (FEURBACH) ". São três os textos em relação a Marx devido fato de seu pensamento político sobre a lei não estar condensada em apenas uma obra.

A LEI EM THOMAS MORE

Aspectos Pessoais e Literários

Em sete de Fevereiro de 1478 nasce Thomas More. Em 1794 inicia seus estudos de Direito no Inns of Court, que é uma espécie de escola para a atuação jurídica em tribunais superiores ( existe até os dias atuais ). More é nomeado sub-xerife de Londres em 1510 e em 1515 começa a escrever Utopia, que é publicada em 1516. Em 1517 pasa a integrar o conselho de Henrique VIII, e é decapitado por ordens deste mesmo rei em 1535. São Thomas More é canonizado pela Igreja Católica em 1935.

More se atém muito a descrever as leis ( conjuntamente com os costumes ) de Utopia devido, com certeza, a sua formação jurídica. Utopia ( u + topos ) significa " nenhures ", " nenhum lugar ". A grande importância da obra é que se teoriza, pela primeira vez depois de longos anos de teoria medieval/católica, sobre a estruturação de uma sociedade perfeita fora dos parâmetros do paraíso celeste, pois esse paraíso era a única estrutura perfeita de sociedade que se concebia até então. More relata uma sociedade perfeita na Terra, feita pelos homens sem a interferência divina.

A Lei em More

Essa sociedade perfeita de More se mantém devido a dois fatores sociais distintos : um metafísico, que são os costumes e um positivo, que é a Lei. Emanada do poder estatal, que é a república de Utopia, o sistema legal de Utopia mostra-se extremamente eficiente, entendendo eficiência como aquela norma que é respeitada e obedecida por todos os cidadãos, diferentemente de Hobbes, aonde o Soberano está acima das leis.

O princípio jurídico mais latente da ilha é o da isonomia, isto é, normas iguais para todos. Este princípio é tão forte que , aqueles que são isentos do trabalho por lei ( sifogantes ) trabalham voluntariamente. Isto demonstra que os princípios jurídicos estão presentes no consciente dos utopianos momentaneamente antes da própria lei positivada. Talvez seja exatamente esta a razão das leis serem absolutamente respeitadas e acatadas por todos. É claro que existem transgressões, mas a punição para um utopiano que transgride as normas são significantemente maiores do que para, por exemplo, os estrangeiros. Isto reforça o caráter de respeitabilidade contido na lei.

Em Marx, como demonstrarei, a política regula as leis. Em More é exatamente o contrário : a política é regulada pelas leis. O ápice deste monitoramento jurídico da política é quando, no texto, Rafael Hitlodeu relata que "uma lei que proíbe as questões de interesse público sejam discutidas durante menos de três dias, sendo crime de morte deliberar sobre esses assuntos fora do congresso ".

A sociologia jurídica é o ramo do direito que trata dos novos movimentos sociais, surgidos na década de setenta, e que tem o nome técnico de " novos sujeitos coletivos de direito ". Versa a sociologia jurídica sobre o surgimento desses movimentos, que seria nos sopões organizados pela Igreja para os operários das fábricas e, neste espaço, os operários discutiam sobre seus direitos. Em Utopia acontece algo muito semelhante : as trinta famílias de cada parcela da sociedade (que é por lei dividida igualmente) "tomam em comum as suas refeições ".

O direito de ir e vir, consagrado no ordenamento jurídico ocidental contemporâneo, é dilacerado pelo sistema legal utopiano. As viagens só podem ser feitas em grupo e necessita-se de uma autoruzação do príncipe. Todos recebem uma carta, uma espécie de passaporte que determina o dia do retorno. " Quando um cidadão é apanhado sem a carta do príncipe além dos limites de sua província, cai em desgraça e volta para casa, onde é severamente castigado como fugitivo. Em caso de reincidência, o castigo é a escravidão ".

Sobre a estruturação do sistema legal utopiano, pode-se falar que ele é aquele sistema desejado por todos os juristas ao redor do mundo, pois é estruturado com poucas leis. Rafael Hitlodeu ralata, com ares de desabafo de More, essa questão : "Utopia tem poucas leis, pois o seu sistema social prescinde de uma legislação complexa. Uma das coisas que mais criticam nos outros países é o fato de que, apesar da enorme quantidade de volumes sobre leis e interpretações de leis que possuem, não parecem ter nunca o suficiente. Acham injusto que as pessoas devam submeter-se a um código legal extenso demais para que se possa lê-lo, ou tão difícil que ninguém o consiga compreender. Além disso, não há advogados no país, pois esses espertalhões que manipulam os processos e distorcem as leis não teriam como ocupar-se em Utopia "

Pelo pouco número de leis existentes em Utopia, " cada um é um profundo conhecedor do direito ". A finalidade da lei para os utopianos é lembrar as pessoas quais são os seus deveres.

A LEI EM THOMAS HOBBES

Aspectos Pessoais e Literários

Nascido em Malmesbury no dia 5 de abril de 1588, Hobbes foi teve seus estudos na Universidade de Oxford. Seu texto Leviatã trata sobre duas realidades : a natureza do homem e a natureza do Estado.

O homem hobbesiano tem uma natureza biologicamente conflitiva que gera, na inércia do tempo, uma eterna guerra de todos contra todos. É claro que esta guerra tem vários incovenientes, e Hobbes sustenta que não há sociedade neste estado conflitivo. Ser hobbista na época de Hobbes era o mesmo que ser subversivo.

Hobbes é um autor abolutista. O Estado se confunde com o soberano e vice-versa. O absolutismo caracteriza-se pela concentração de poder nas mãos do soberano e a limitação do poder de outras esferas da sociedade através de leis.

A Lei em Hobbes

Enquanto More trazia o princípio da isonomia como vetor do ordenamento jurídico, Hobbes preconiza exatamente o contrário. As leis civis regulam todos os que não se incorporam no soberano, e este tem uma discricionariedade jurídica absoluta.

Hobbes é contratualista, isto é, defende a idéia de um grande pacto contratual ( Hobbes diferencia contrato, que se funda na transferência mútua de direitos e pacto, que se funda na confiança ) como gênese do Estado. Esses conceitos de pacto e contrato são atualmente estudados pelo direito civil ( privado ). O contrato, fonte do Estado, é possível pela utilização da linguagem, seja ela explícita ou implícita. Do contrato entre os homens, em estado de natureza, surge o Estado, e o limite contratual de cada indivíduo é o auto-aniquilamento, como preceitua Hobbes : " Um pacto em que eu me comprometa a não me defender da força pela força é sempre nulo ". O chamado Estado de Direito, que é aquele em que o próprio estado se submete as regras que ele mesmo traça, existente em More, é inexistente em Hobbes. " O soberano de um Estado, quer seja uma assembléia ou um homem, não se encontra sujeito às leis civis ".

Do contrato que cria o Estado surge o soberano. Aí há uma contradição em Hobbes, pois ora teoriza o poder do soberano como algo proveniente de Deus e ora como algo proveniente do contrato entre os homens. Os direitos dos cidadãos emanam todos deste soberano, como o direito à propriedade.

O esquema de Hobbes do todos contra todos deriva do fato de os bens da vida serem escassos em relação aos interesses dos homens. Há uma enorme coincidência com a teoria processualista de Carnelutti, que edificou sua teoria por volta de 1940, séculos depois de Hobbes. Carnelutti dizia, em programas de rádio, que se existe apenas um bem da vida e dois sujeitos interessados, haverá um conflito intersubjetivo de interesses. Se este conflito for qualificado por uma pretensão, isto é, pelo desejo de subjugar o interesse do outro, haverá uma lide. Este conceito de lide é dogmatizado em todos os sistemas jurídicos derivados da família românica, como Brasil, Argentina, Espanha, Itália, etc.

Hobbes diferencia direito e lei : " direito consiste na liberdade de fazer ou omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem a mesma matéria.

Com certeza, dentre São More, Hobbes e Marx, Hobbes é o autor que mais se remete as leis. O Estado /soberano rege ( os outros ) através de leis civis. Estas leis civis devem ser escritas, publicadas e devem coagir os que possuem capacidade civil, " e não basta que a lei seja escrita e publicada, é preciso também que haja sinais manifestos de que ela deriva da vontade do soberano ". A interpretação dessas leis deve ser feita por juízes constituídos pela autoridade soberana, e devem, os juízes, ter atributos especiais, consoantes com o soberano. Hobbes assim define leis civis : " entendo por leis civis aquelas leis que os homens são obrigados a respeitar, não por serem membros deste ou daquele Estado em particular, mas por serem membros de um Estado (...)a lei civil é para todo súdito constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente da sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal, isto é, do que é contráio à regra ". A lei é de competência para instití-la pura e simplesmente do soberano, não devendo ter controle algum por parte do parlamento ou coisa que o valha.

Enquanto More coloca as leis como um desejo, Hobbes coloca as leis como uma necessidade para a manutenção da sociedade, pois teoriza que no estado natural do homem não há sociedade, não há estado e muito menos leis civis; como essas leis servem para conduzir os súditos, é ela a responsável para que os súditos não retornem aquele estágio de todos contra todos. O marxismo reconhece esse discurso de a lei como "peace maker ", mas teoriza que o escopo da lei é exatamente o oposto, é manter a opressão ( violência lactu sensu ) entre classes antagônicas. Enquanto Hobbes atomiza o conflito na sociedade, Marx aloca em conjunto de indivíduos economicamente semelhantes, ao qual chama de classes. Em More essas classes não tem tanta discrepância, portanto seria um pouco defeituosa a teoria marxista sobre lei na ilha de Utopia.

A LEI EM KARL MARX

" A função máxima do direito é a de pressupor que

todos os cidadãos devem aceitar livremente o conformismo

assinalado pelo direito, segundo o qual todos podem-se

tornar elementos da classe dirigente - no direito

moderno, portanto, está implícita a utopia democrática do sec. XVIII "

Gramsci

Aspectos Pessoais e Literários

Marx nasceu em Trier em 5 de maio de 1818. Era formado em direito mas exercia a profissão de jornalista.

É o autor que representa a última grande mudança no pensamento político moderno. A primeira coisa que se deve levar em conta ao examinar o ordenamento jurídico em Marx ( que apenas fez referências não sistemáticas ao Direito ), é o caráter de cientificidade, que preconizava ser de fundamental importância em qualquer estudo nas ciências sociais ( " os pressupostos que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na imaginação " ). Quem mais escreveu sobre norma jurídica especificamente foram alguns seguidores de Marx.

A Lei em Marx

O objeto dos estudos especializados de Marx era a jurisprudência. Desses estudos, chegou a conclusão que " as relações jurídicas - assim como as formas de Estado - não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do sec. XVIII, compreende o conjunto pela designação de sociedade civil; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política ". Surge a importância de entender o Direito como algo relacionado, determinado por outros fatores que são alheios ao próprio Direito, além de ter a necessidade de se estabelecer uma interdisciplinariedade no estudo do Direito como pressuposto de cientificidade.

O Direito, as instituições e a mentalidade se encontram numa superestrutura, condicionados por uma estrutura que compreende as relações de produção ( economia ). Essas relações de produção burguesas, que formam a estrutura, " são a última forma contraditória do processo de produção social ( no caso como fonte do Direito ) , contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos ". Neste contraditório, nesta ebulição nos meios de produção é que nascem as normas jurídicas. É daí que o Direito nasce como norma geral e não individual, condicionado (como todo o Direito) à dialética proveniente das relações econômicas sociais. A lei é a visualização do direito. O Estado, provedor da Lei, surge junto com a propriedade privada. Quando surge a propriedade privada surge também a instituição Estado para garanti-lá, e o faz através das leis.

O Estado ( berço do ordenamento jurídico ) que surgiu da necessidade de proteção da propriedade privada, encontra esta propriedade privada em outro grau de apresentação, e se reorganiza, se reforma para atender os novos anseios da propriedade privada, decorrentes dos novos meios de produção, determinando as instituições e o Direito; a lei para Marx tem um sentido claro : é um instrumento de opressão da burguesia.

ANALOGIAS

Dos aspectos explícitos e implícitos elencados, pode-se fazer uma analogia, sob vários aspectos, entre os três autores.

More parte de uma abstração, Hobbes de uma explicação e Marx de uma constatação.

A Lei em More traz igualdade, em Hobbes estabilidade e em Marx desigualdade.

A Lei em More provém de todos, em Hobbes de um contrato primeiramente e depois do soberano e em Marx a Lei provém de poucos.

A lei de More é abrangente, a de Hobbes é só não abrange o soberano e em Marx é restritiva.

O cidadão, sujeito da lei, em More é consciente, e, Hobbes é parte de um contrato e em Marx é oprimido e inconsciente. Os três autores são conexos em preconizar que a lei é um instrumento importante, se não for o mais importante, para a manutenção de estruturas de sociedade. Essas estruturas, por mais diferentes que sejam, sendo democráticas, absolutistas ou opressoras tem em comum o fato de se manterem através de leis, que proveem do Estado, que por sua vez é mantido pela noção de Estado ( consciente em More, contratualista em Hobes e inconsciente em Marx ).