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Magistrado, (des) ordem jurídica e construção democrática*

Edmundo Lima de Arruda Junior


« Suponhamos que existem duas espécies de ordem e que essas duas ordens representam dois termos contrários no seio de uma mesma dimensão.Suponhamos também que a idéia de desordem surja em nosso espírito todas as vezes em que, enquanto buscamos uma dessas ordens, encontramos a outra. A idéia de desordem (...) objetivaria por comodidade de linguagem, a desilusão de um espírito que se encontra diante de uma ordem diversa daquela de que carece » BERGSON(1)

Sumário:
1. Ordem e (des)ordem jurídica.
2. Estado e Direito Modernos. O sonho de Hegel. O pragmatismo de Weber. Derivações irracionalistas e sentidos superativos.
3. Magistrados e nova ordem social: alguns pressupostos básicos.
3.1.Magistrados e coragem.
3.2. Magistrados e Sociedade de classes.
3.3. magistrados e teorias antimodernas.
3.4. Magistrados e democracia.
3.5. Magistrados e racionalidade jurídica processual; Magistrado e Sociedade.
4. Magistrado e Sociedade.
4.1. O magistrado visto pela sociedade.
4.2. A sociedade vista pelo magistrado.
4.2.a. A sociedade vista pelo magistrado tradicional
4.2.b. A sociedade vista pelo magistrado orgânico da democracia.
5. Algumas conclusões.

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* Palestra proferida no VIII Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho. Fortaleza, 15 de maio de 1997.

1. Ordem e (des) ordem jurídica.

Os juristas tradicionais costumam defender a ordem jurídica estatal. Prendem-se às concepções teóricas liberais que informam a sua cultura jurídica. Na prática, tais operadores jurídicos tendem a reproduzir a ordem da (des) ordem jurídica vigente, impedindo a realização do conceito de estado e de direito legados da modernidade. Tal aparente paradoxo talvez possa ser formulado a partir de dois fatos constrastantes bastante enraizados no quotidiano dos juristas: a) O primeiro diz respeito à concepção geral de Estado (e de direito, como provedores de Justiça), ainda bem viva entre os profissionais do direito, e que constitui um núcleo bom do senso comum a ser resgatado na reconstrução da racionalidade jurídica; b) O segundo refere-se à crescente percepção do enorme desgaste do modelo liberal-legal, situação constrangedora para parte significativa dos práticos do direito, mas que também coloca a possibilidade da crítica promissora com o radical questionamento cultural e institucional, básico para a desconstrução/construção de alternativas para o direito positivo brasileiro.

Em outras palavras, os juristas encontram-se numa encruzilhada. Herdeiros da cultura liberal mantêm uma compreensão teórica do Estado Moderno e do seu Direito como instituições positivas e legítimas, mas no plano empírico (das práticas judiciais) assistem à erosão de instituições ligadas à produção e reprodução do direito, como é o Poder Legislativo e do Judiciário. Essa confusão perpassa os juízes, qual seja, a anacronia estabelecida entre uma crença (no ideal de Estado e de Direito) e realidade (a do estado e do direito periféricos), abrindo dessa maneira espaços importantes para indagações e compreensões críticas sobre o que subjaz à esta ordem jurídica (da (des)ordem), abrindo caminho para ações políticas superativas de suas contradições, visando resolver a (des) ordem instaurando uma outra ordem jurídica, mais aproximada dos ideais da racionalidade normativa apregoada pela Ilustração.

2. Estado Moderno: O sonho de Hegel. O pragmatismo de Weber. Derivações irracionalistas e sentidos superativos.

O sonho de Hegel era a aposta na modernidade e na humanidade reconciliada com o homem histórico, através da realização do conceito de Estado(2). Podemos denominar esse sonho como fundador do paradigma do encantamento com o mundo moderno. Um autor de tradições radicalmente opostas à do continente hegeliano(3), Weber, também está consciente sobre a positividade irrecorrível dessa instituição moderna e sistema político burocrático superador dos outros que o anteceram, qual seja, o Estado. Essa visão realista da dominação racional-legal faz parte do paradigma do desencamento do mundo moderno.

Hegel e Weber estão absolutamente juntos em ao menos dois pontos definidores do Estado Moderno: « a lei, primeiramente, e a existência de um corpo de funcionários, em segundo lugar »(4) .

O encantamento de Hegel não nos permite inaceitar de forma acrítica a idéia de « dialética do progresso », presente no marxismo ordinário(5). Weber nos ensina que a história, não sendo evolutiva no sentido de aperfeiçoamento necessário, implica em várias possibilidades históricas, entre as quais a da imprevisibilidade, produzida no bojo da tensa articulação entre « causalidades e teleologia »(6). Tal tese aproveita aos operadores do direito, perplexos na encruzilhada entre uma promessa de modernidade, em boa parte incumprida, e aos traços de uma barbárie crescente, que marca o alvorecer do século XXI.

O Estado, e por consequência, o corpo de seus funcionários foram e ainda são considerados sob um prisma instrumental, tanto na teoria como na esfera das ações políticas. Tal redução é operada por sistemas teóricos de eficácia nada negligenciável, limitando a tarefa de reconstrução da modernidade jurídica, o que é preocupante, quando constado certo senso comum sobre o conceito de estado deformado presente nas propostas socialistas anarquista romântica e marxista ortodoxa, e em funcionalismos de toda sorte.

De uma maneira ou de outra a direita acadêmica, e com peso o a teoria sistêmica, acaba por atribuir ao « sistema jurídico » o estatuto da autoreferencialidade (autopoiesis). Efeito dessa compreensão é a presumida « legitimação pelo procedimento » da máquina burocrática de despachos. Trata-se do abandono definitivo do que é considerado pelos sistêmicos como jusnaturalismos perniciosos já conhecidos (7) , ou « obsessão » dos críticos: a introdução de ponderações de cunho ético na reconstrução da racionalidade jurídica moderna.

O anarquismo, nos dias atuais vem a calhar aos postulados teóricos e projetos políticos pós-modernos, indo ao encontro das teses irracionalistas da radical crítica das instituições modernas, não merecendo uma reflexão neste ensaio. Entretanto, reside no socialismo marxista-leninista a força maior a obstar a reconstrução da racionalidade jurídica, pois é portador de altos graus de eficácia social, mesmo após a queda do muro de Berlím. O horizonte de Marx ainda está presente nas lutas das esquerdas, malgrado a onda de refluxo nas lutas populares. Pois bem, mesmo que não possamos vincular de forma imediata teoria e prática, desconsiderando-se um conjunto de mediações que as permeiam, o certo é que as militâncias progressistas ainda reivindicam a herança marxista, infelizmente limitada ao senso comum da terceira internacional. Ora, essa tradição segue o itinerário inverso da direita sistêmica. Se esta hipercomplexifica o sistema jurídico, absolutizando a sua autonomia, a esquerda tradicional hipersimplifica a estrutura jurídica, reduzindo a sua especificidade à esfera dos interesses do Capital nos planos ideológico e econômico( o direito-epifenômeno). No primeiro caso chega-se ao ponto de tornar o direito como estrutura imutável no seu núcleo básico herdado da racionalização jurídica moderna. No segundo caso a consequência maior é a desclassificação do potencial regenerativo do direito positivo.

Os magistrados comprometidos com os processos de mudanças radicais em nossa sociedade vêm afirmando cada vez mais corajosamente uma identidade com os projetos indicativos da possibilidade histórica de superação da ordem da (des) ordem de uma modernidade periférica, apontando para a emergência de uma nova ordem, moderna e democrática. A tese da constitucionalização do direito positivo brasileiro, com a postulação de efetividade das normas constitucionais reconhecedora de princípios normativos universais, bandeira próxima do garantismo, atesta esse processo construtivo de um novo direito por dentro do direito, e não por fora dele. A tese da constitucionalização do direito civil, por exemplo, é uma tese revolucionária, explicitada na questão agrária(8).

3. Magistrados e nova ordem social: alguns pressupostos básicos.

3.1. Magistrado e coragem.

O magistrado moderno, do nosso ponto de vista parece ser aquele que atende ao conceito de magistrado-cidadão. No caso brasileiro este tipo-ideal é deveras complexo, mas guarda uma primeira característica, basilar e essencial que é a coragem, retratada de forma irretocável:

« Coragem, é claro, definida aristotelicamente como o meio termo entre a covardia e a temeridade ou imprudência. Se ainda é constrangedor descobrir que a justiça -embora dotada de homens que despacham processos - tem na realidade poucos juízes, por outro lado é uma honra e felicidade saudar este movimento surgido namagistratura do Rio Grande do Cul, que é, ele mesmo, uma prova de coragem, e, por isso, de virtude, e mais, da possibilidade de existir um juiz-cidadão cujo primeiro compromisso e imperativo categórico seja a eliminação do sofrimento(9).

Tal coragem se identifica com um certo « voluntarismo ético(10) , e atende a alguns pressupostos e exigências políticas por parte dos intelectuais que são os magistrados.

3.2. Magistrados e sociedade de classes.

Ao pensarmos o tema proposto do juiz visto pela sociedade e a sociedade vista pelo juiz somos obrigados a refletir preliminarmente sobre o lugar do Poder Judiciário na sociedade moderna, tanto a partir da idealidade conceitual como das concretudes históricas conhecidas. N’outro trabalho afirmávamos de forma um tanto unilateral que « numa sociedade de classes o Poder Judiciário é de classes »(11) .Tal ilação lógica, todavia, se por um lado coloca os limites estruturais daquela Instituição estatal, não permite uma leitura tendente à instrumentalização mecânica do Poder Judiciário como Poder de uma classe social. Assim como sabemos que a democracia não deve ser adjetivada(12) , o Poder Judiciário, tomado como parte co-constitutiva e essencial do Estado Moderno, deve ser considerado nos planos ideal e empírico, evitando-se o risco, muito presente nas esquerdas tradicionais, que é o da dissolução conceitual do estado nas experiências históricas vivenciadas em todo o hemisfério. Tal subsunção às avessas comporta muitas armadilhas obstacularizadoras do exercício da cidadania.

3.3. Magistrados: afastando-se das teorias anti-modernas.

As reflexões que se seguem afastam-se das seguintes interpretações sociais gerais presentes nas academias: a) niilistas pós-modernas, cujas premisssas críticas à modernidade acabam por conduzir à uma razão cínica, impotente ou despolitizante face à urgência de ação política transformadora; b) sistêmicas, pois suas consequências práticas são conhecidas: a reprodução, em última instância, do statu quo acadêmico e da intelligentsia conservadora em vários domínios do conhecimento, como anunciamos na primeira parte deste artigo; e, finalmente, da tese do fim da história, cunhada diretamente do Pentágono para as elites enamoradas pela « vitória do mercado », mercado capitalista cuja expansão pressupõe uma intolerância crônica e ações continuadas tendentes à negação de qualquer oposição teórica, política e filosófica à modernidade capita, e neoliberal.

3.4. Magistrados e democracia.

Parece que o magistrado orgânico da democracia a considera em termos não adjetivados. A democracia é de fato um valor universal, não se reduzindo à um valor de classe, seja ela a burguesa ou a trabalhadora.

Tal concepção alarga os horizontes da luta política e sedimenta o terreno institucional para o desenvolvimento da cidadania, superando as instrumentalizações da democracia que a história dos totalitarismos (nazismo e stalinismo) e autoritarismos (que perpassam toda a história dos países do Sul neste século) experimentou, como barbárie.

3.5. Magistrados e racionalidade jurídica processual.

Como consequência da concepção de democracia como valor universal os magistrados orgânicos distanciam-se das concepções dualistas de estado e de direito, superando o binômio pluralismo/monismo jurídicos na definição de uma nova ordem jurídica. Afasta-se, portando, do romantismo da « ordem pura », já problematizadas por Bergson, na interpretação de Tarso GENRO :(13)

« Ora, o que Bergson aborda é a possibilidade de que não exista uma ordem pura, ou seja, que uma ordem dominante não está isenta nem descontaminada de uma outra ordem, potencialmente existente, que concorre com ela e ao mesmo tempo a integra » .

Neste sentido é que falamos de uma racionalidade jurídica processual(14).
 

4. Magistrado e Sociedade.

4.1. O magistrado visto pela sociedade.

Se é verdade que o statu quo tem empreendido um ataque desmoralizador do Poder Judiciário, via mídia, também é certo que a população não tem aquele Poder de Estado em alta conta.

É quase um senso comum: a sociedade vê o magistrado como corpo e alma de um Poder Judiciário arcaico e impotente face às novas demandas sociais(15). Mas esse diagnóstico correto, construído por um senso comum mediano, tem levado a uma consequência indesejável para a democracia. Ancorados nessa avaliação muitos movimentos sociais , partindo do estado caótico do Poder Judiciário no mundo real face às suas carências frustradas, acabam por construir e reforçar, ainda que inconscientemente, imagens e ações pós-modernas e neoliberais do Estado e do Poder encarregado da prestação jurisdicional. Por exemplo, quando o consideram um poder burguês inoperante...(?), e portanto, descartável das pautas das lutas populares. Nas hostes das esquerdas há quem defenda as teses da justiça privada na área trabalhista (16), pseudônimo para a sedutora e conservadora idéia das arbitragens fora da tutela do Estado, uma instituição falida... a ser « substituída » pelo espaço público não estatal, dentro das leis do mercado, capitalista... É muita ovelha (exército de reserva) para poucos e poderosos lobos (os grandes conglomerados industriais). A confusão teórica e política deve-se ao fato da não distinção entre racionalidade normativa e racionalidade instrumental. A primeira gera a riqueza das instituições modernas, como o estado e o direito, e diz respeito à rica promessa da modernidade. A segunda reporta-se às modernizações capitalistas e dos socialismos reais, as quais atestam a dominância de uma razão instrumental (técnica para a opressão)(17) . Será que as esquerdas vão continuar jogando o bebê junto com a água nas suas críticas ao direito e ao estado vigentes?

Devemos registrar o momento contrário ao da descrença no Poder Judiciário. Por decorrência da artesania de espaços jurídico-políticos contra-culturais face à hegemonia do bloco histórico dominante, emerge no cenário nacional o jurista-cidadão. Este já existia no trânsito da história mas na medida em que deixa de ser uma afirmação de eticidade individual e pouco organizada, passando a ser uma afirmação de eticidade coletiva organizada (ver por exemplo o caso da AMATRA/RS). Trata-se do magistrado-histórico.

4.2. A sociedade vista pelo magistrado.

4.2.a. A sociedade vista pelo magistrado tradicional.

« Há homens sóbrios e aprumados a quem a desgraça quebra por dentro. Não sabem se queixar, são cerimoniosos e gentis, pensam que os outros irão agir com a mesma magnanimidade que eles usam na vida. O ponto de máxima ruptura acontece quando começa o desengano » PIGLIA (18)

O magistrado tradicional pouco a pouco vai deixando de visualizar a sociedade de uma maneira estática. Pesquisa recente sobre « O perfil do magistrado brasileiro » (19)indica uma sensibilidade para com a crise que assola o Poder Judiciário brasileiro e a sociedade como um todo. Todavia, essa percepção ainda é fragmentada, estando ausente uma compreensão mais articulada entre o que é estrutural e institucional na crise de identidade daquele poder do estado.

A sociedade civil, por sua vez, parece-nos ser observada, por parte do juiz tradicional, como uma coletividade aonde, no máximo, os males sociais derivam dos efeitos perversos de uma sociedade de mercado que não regula de forma satisfatória a « igualdade de chances ». O juiz tomado como intelectual tradicional encontra-se como um cidadão-contemplativo e acrítico. O posicionamento da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) alinhando-se, por interesses corporativos, ao projeto de Reforma do Poder Judiciário do goberno neoliberal de Fernando Henrique Cardoso é a prova da dominância do que Gramsci denominou de momento egoístico-passional, um momento anti-catártico, ou, em outras palavras, um sinal de ausência de elementos objetivos de luta política organizada dos magistrados brasileiros, ainda distanciados de um projeto mais amplo das lutas dos trabalhadores. Em resumo, alienação.

Observe-se que os magistrados tradicionais constituem a base do senso comum a ser reapropriada na construção de novo senso comum. Desta forma, o trabalho de diálogo com os setores sensíveis dentre os magistrados tradicionais configura a tarefa principal dos intelectuais orgânicos para a democracia, pois estes farão ver aqueles que eles são dígnos porque é possível através deles « resgatar a dignidade da técnica jurídica »(20) .

4.2.b. A sociedade vista pelo magistrado orgânico da democracia.

Dentre os operadores jurídicos parece caber ao magistrado organicamente vinculado às lutas populares o principal fator de racionalização do direito num sentido de progresso da dignidade humana. Bem da verdade a racionalização do direito obedece à movimentos estruturais que escapam ao direito (economia, políticas para o Poder Judiciário, etc) e à movimentos institucionais de variadas ordens, por parte da OAB, das academias, das pressões associativas, entre outras.

Entretanto, a precarização das institituições jurídico-políticas brasileiras programadas pelas políticas neoliberalizantes têm levado os operadores do direito a uma situação de cidadãos-acuados. Por um lado, expressam em seus discursos a permanência, ainda, de uma crença no Estado comprometido com o « bem comum », por outro, reconhecem a crise da dogmática jurídica, desvelada na anacronia entre um direito constitucional compromissório e de transição, e uma legislação infra-constitucional de cunho preponderantemente arcaico. Acresça-se a essa desproporção institucional a covardia corporativa reinante nas mais variadas organizações das profissões jurídicas. Observe-se o apoio direto ou indireto, aberto ou velado aos absurdos perpetrados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso contra o patrimônio público e contra a ordem constitucional.

A sociedade vista pelos magistrados orgânicos da democracia é uma sociedade ao mesmo tempo dividida em classes e cindida intra-classes sociais. Essa sociedade traz a marca de uma esquisofrenia social: euforia para a acumulação ampliada do Capital e depressão para a a esmagadora maioria dos excluídos do modelo nacional-associado. Latifúndios de mais de um milhão de hectares de multinacionais como o da Parmalat convivendo com a exploração do trabalho infantil; prostituição e assassinatos de crianças. A rigor não se trata de sociedade, mas de sociedades. Há uma sociedade das elites promovendo uma anti-sociedade para amplas e crescentes camadas da população de miseráveis, sem acesso à escola, à saúde, ao teto e ao saneamento básicos.

Os magistrados orgânicos da democracia não são indiferentes, « neutrais » ou equidistantes dessa conflituosidade estrutural. Pelo contrário, tomam partido dessa conflituosidade, considerando-se parte da mesma, e tomando-se como agentes da história, para transformá-la, pois compreendem que somente existe uma comunidade democrática se houver respeito pelos direitos fundamentais do cidadão, aproveitando o ensinamento de DWORKIN(21), quando este admite que « em casos difíceis, nos quais a interpretação a ser dada a um instituto não está clara ou écontrovertida, os juízes não têm outra opção a não ser inovar, usando próprio julgamento político ».

Se Gramsci falava em Estado-Ético esse desiderato talvez somente possa ser alcançado no processo social da democracia radicalizada, e dentro desse processo a figura do magistrado orgânico para a democracia desponta como um protagonista importante na reconstrução do tecido institucional do Estado. Esse magistrado, relativamente autonomizado nas suas prerrogativas constitucionais constitui um vetor de eticidade dentro do sistema político.

Num « estado » privatizado e sob tutela dos grandes interesses financeiros e industriais emerge um gérmem negador daquele, um gérmem de publicização do espaço estatal. Do « estado » de particulares, sob a égide das leis do mercado capitalista não se pode cobrar eticidade alguma.

Também a eticidade não decorre, por exclusividade, do movimento unilateral da sociedade civil para o Estado, ou contra o Estado. Admite-se o movimento contrário, de reconstrução do estado por dentro dele mesmo, numa continuada luta por alargamento de espaços consensuais na instância jurídica (guerra de posições nas esferas estatais), e dentro dela com muita força a magistratura.

O magistrado orgânico para a democracia não é ingênuo no que se refere às instituições liberais. Da mesma maneira em que não segue uma certa leitura das esquerdas tradicionais que desprezavam as liberdades formais, da mesma forma estão conscientes dos limites de pensadores liberais que acreditavam na absoluta inviolabilidade das regras do jogo (LOSURDO:l996, 50) (22). Não é despropositada a vontade política do governo em priorizar a batalha em todos os fronts pela reforma administrativa e do judiciário. Trata-se do projeto de desmonte das melhores arestas de modernidade num estado precário, o estado periférico tendente ainda mais a um estado-mínimo, um estado máximo da barbárie neoliberal.

5. Algumas conclusões

Hegel inaugurou a modernidade e nela visualizou o conceito ideal de Estado e o seu corpo materializador, os funcionários estatatais. Da mesma maneira Weber compreendeu o papel da burocracia como co-constitutiva do processo de racionalização da modernidade industrial.

Os magistrados são parte do Estado Moderno, e não mais uma extensão do corpo do Rei. Dotados de autonomia institucional sofrem os impactos da (des)ordem jurídica reinante. Sensíveis aos descaminhos de uma ordem social perversa, tomam partido das pautas mais amplas das lutas progressistas que objetivam a instauração de uma ordem jurídica verdadeiramente moderna, processual, porque aberta, plural e democrática, comprometidas como a radicalização dos mais caros princípios legados da racionalidade nornativa da Ilustração.

Num momento no qual a barbárie neoliberal progride no seu desiderato de dilapidação das instituições modernas, e dentre elas o Estado, o Estado de Direito Social conquistado na nossa Carta Magna torna-se um óbice à reprodução alargada do Capital financeiro e industrial. Asssim, a Constituição torna-se a grande inimiga dos partidários do Consenso de Washington. De outra parte, o Poder Judiciário passa a ser visto pelo stablishement como a pedra angular da “reforma do Estado”, devendo ser submetido à racionalidade econômica pelas mãos de um Poder Executivo impaciente pela morosidade no cumprimento dosditames do FMI e agências financeiras transnacionai, que caracterizam os régimes globalitários, aproveitando o sugestivo termo cunhado por RAMONET(23). Necessário, portanto, « controlar os magistrados alternativos », colocando-os nos seus “devidos lugares”, qual seja, o de meros despachantes burocráticos. Eis o objetivo maior da Reforma do Poder Judiciário em curso, objetivando a vertical sumulação para uma distribuição jurisdicional controlada.

Aos magistrados orgânicos da democracia parece reservada a tarefa de resistência contra a barbárie anti-moderna nos espaços institucionais jurídico-políticos. As atuações dos juízes explicitam a presença de um elo de eticidade dentro do estado, em flagrante contradição com a dominância dos interesses particulares em nossa precária legalidade estatal, o que indica a presença de um não-estado, como o quer Hegel, ou de um quase-estado, na expressão de Arendt.

Referências de Rodapé:

1. Cf. BERGON

2. Uma leitura introdutória encontra-se em ROSENFIELD, Denis.Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, l993. p. 29-33.

3. Leandro Konder retrata o diálogo que teve com um professor alemão sobre Kant e Hegel, no qual se distinguia os dois clássicos como continente distintos. Sobre KONDER, Leandro. Hegel. A razão quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, l99 p.

4. A tese é de COLLIOT-THÉLÈNE. Le déchantement de l’État. De Hegel à Marx. Paris: Seuil, l992.p. 7.

5. Cf. LOWY, Michael. De Karl Marx a Emiliano Zapata.

6. Cf. GENRO, Tarso. Vinte teses para um socialismo democrático. Folha de São Paulo: l997. p.7.

7. Cf. DE GIORGI, Rafaelle.

8. Ver a sentença do Juiz Federal da 8a. Vara da Justiça Federal?MG, Antônio Francisco pereira, Processo 95.0003154-0, Ação de Reintegração de posse, tendo como réus Itamar Pereira da Costa e outros. A sentença desqualifica a pretensão do DNER (a reintegração de posse de área federal ocupada por trezentas famílias) como moral e juridicamente impossível, a partir da afirmação do procurador da autarquia de que ös réus são indigentes », o magistrado constrói a tese de que toda a lei tem em mira o homem comum, o cidadão médio, o que não seria o caso desses párias, excluídos, descamisados, os sem-terra. Ademais, rechaça a aplicação rigorosa da lei enquanto o Estado não se desincumbir, pelo menos razoavelmente, da tarefa que lhe reservou a lei Maor. « Ou seja, enquanto não construir - ou pelo menos esboçar - « uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3

9. Cf. AYDOS, Marco Aurélio Dutra. O juiz-Cidadão. In: ARRUDA, Edmundo Lima de Arruda Jr. Lições de Direito Alternativo I. São Paulo: l99l, p. 130.

10. Cf. ARRUDA, Edmundo Lima Jr. Direito Moderno e Mudança Social. Belo Horizonte: Del Rey, l997.

11. Cf. ARRUDA, Edmundo Lima Jr. Perfil Sociológico do Judiciário no Brasil: ou dos limites e alcances da justiça de classe sob o liberalismo-legalismo numa sociedade perifética. São Paulo: Acadêmica, l993. p. 46-69.

12. Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. Rio de Janeiro: Salamandra, l9

13. Cf. GENRO, Tarso. in: ARRUDA, Edmundo Lima Jr. Lições de Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica, l99l. p.l6.

14. Cf. ARRUDA, Edmundo Lima Jr. Direito Moderno e racionalidade jurídico-processual. In: Direito Moderno e Mudança Social. Belo Horizonte: Del Rey, l997. Ensaio IV.

15. Cf. PINTO, João Batista. Direito e Movimentos Sociais. São Paulo: Acadêmica, l99 .

16. Cf. RAMOS, Wilson Filho.

17. Cf. ARRUDA, Edmundo Lima J. Direito Moderno e Mudança Social. Belo Horizonte: Del Rey, l997. Ensanio IV.

18. Cf. PIGLIA, l086. p. ll

19. Perfil so Judiciário Brasileiro. Rio de Janeiro: IUPERJ, l996.

20. Cf. CARVALHO, Amilton Bueno. Direito Alternativo em Movimento. Rio de Janeiro: Luam, l997, p.98.

21. Cf.DWORKIM, Juiz político...

22. Cf.LOSURDO, l996: p. 50 revista da Magda

23. Cf. RAMONET, Ignacio. Régimes glotabiltaires. Le Monde Diplomatique, março l997.
 

(Extraído de  http://www.portoweb.com.br/amatra/textos/a_op_03.htm)