Reforma do Judiciário
Celso de Mello
(Ministro Presidente do Supremo
Tribunal Federal)
(Trechos da conferência pronunciada
na abertura do Fórum Nacional de Debates do Poder Judiciário, promovido pelo Superior
Tribunal de Justiça. Brasília, Junho de 1997)
(...) A independência dos juízes e
do Poder Judiciário, mais do que simples expressão de ordem técnica, representa um tema
revestido de inegável densidade política.
Isso significa que a Magistratura
não pode anular-se como poder político e nem deixar-se subjugar pelos que pretendem
impor-lhe o vínculo da dominação institucional, convertendo e degradando o Poder
Judiciário à condição de instância desqualificada de submissão, reduzida, de maneira
inaceitável, em seu indisponível grau de independência e liberdade.
(...) Impõe-se, portanto, discutir
a questão da fiscalização externa. Ainda que para rejeitá-la, com fundamento em
suposta transgressão às cláusulas pétreas. Ou, então, para aperfeiçoá-la. O que
não tem sentido é excluir, por antecipação, o exame dessa proposta, como se a
Magistratura fosse uma instância de poder imune a críticas, infensa a erros ou
insuscetível de desvios ou abusos.
(...) Dentro desse contexto,
torna-se necessário discutir a questão da súmula vinculante. Trata-se de proposta
formulada como justo objetivo de superar a crise de funcionalidade que afeta,a de maneira
irracional, o aparelho judiciário, congestionado pela multiplicidade de ações e de
decisões judiciais divergentes.
Entendo, no entanto e sempre
com o máximo respeito à posição dignamente sustentada por aqueles que pensam em
sentido oposto que a reforma do Poder Judiciário, embora essencial e
indispensável, não pode conduzir à criação de mecanismos que busquem, a partir de
formulações interpretativas subordinantes, fixadas por órgãos que se situam na cúpula
da estrutura judiciária, imobilizar o poder inovador da jurisprudência, gerando, a
partir de verdadeira hermenêutica de submissão, uma grave interdição ao direito de o
magistrado refletir de maneira crítica e de decidir em regime de liberdade segundo
convicções fundadas em exegese criteriosa do sistema normativo e com observância
responsável dos limites fixados pelo ordenamento positivo.
(...) Essa preocupação se torna
ainda maior, quando se tem presente a partir do que se contém no substitutivo
oferecido pelo ilustre deputado Jairo Carneiro que a proposta ora em apreciação
na Comissão Especial formada na Câmara dos Deputados instiui a punição do Juiz que se
insurgir contra a fórmula subordinante e impositiva constante do enunciado sumular,
prescrevendo, para os casos de ''rebeldia da consciência'' do Magistrado, a pena
correspondente ao crime de responsabilidade (!?)
Essa proposta revela-se
inaceitável, porque, além de impor ao juiz a interdição de pensar e de refletir
de maneira crítica sobre as questões submetidas à sua apreciação jurisdicional
busca incriminá-lo e puni-lo pelo fato de haver agido com liberdade e independência.
Entendo que a súmula
enquanto método de trabalho e instrumento veiculador de mera proposição jurídica,
destituída de caráter prescritivo e normativo deve ser valorizada
processualmente, para que, dela, possam ser extraídas diversas conseqüências de ordem
formal, sem, contudo, jamais inibir a livre atividade jurisdicional dos demais juízes e
tribunais.
(...) Insisto, portanto, em que,
mantida a Súmula como seu atual perfil jurídico, dela sejam extraídas todas as suas
potencialidades no plano processual, a fim de que, preservadas as funções inerentes ao
modelo sumular (funções que conferem estabilidade às relações de direito e que
outorgam previsibilidade às decisões judiciais e sempre respeitada a essencial
independência do Magistrado , venha este, por efeito de persuasão racional (e não
de imposição estatal com ameaça de punição por crime de responsabilidade), a aplicar,
facultativamente, na solução da controvérsia, o critério jurisprudencial
consubstanciado no enunciado sumular.
(...) Devo observar, ainda, sem
prejuízo da adoção de outras soluções processuais, que, se a causa real do
congestionamento do aparelho judiciário reside como efetivamente ocorre na
atuação processual compulsiva do Poder Público, muitas vezes agindo como ''improbus
litigator'', opondo resistência estatal injustificada e arbitrária a pretensões
legítimas deduzidas por cidadãos de boa-fé, cumpre aplicar as disposições da Lei
Complementar nº 73/93, inteiramente aplicáveis à União Federal e às suas autarquias
(inclusive ao INSS), responsáveis, em grande parte, pelo excesso de litigiosidade
recursal, que, hoje, virtualmente inviabiliza o Supremo Tribunal Federal e o Superior
Tribunal de Justiça.
(...) Ora, a aplicação desse
instrumento legal certamente refletir-se-á, de maneira positiva, na solução dos
problemas gerados pelo congestionamento do aparelho judiciário, pois, nas questões
objeto de jurisprudência iterativa dos tribunais uma vez editada a súmula
administrativa vinculante a União Federal e as suas autarquias não mais
insistirão em teses jurídicas rejeitadas pelo STF ou pelo STJ, permitindo, desse modo,
em matéria de caráter administrativo, tributário ou previdenciário, que pretensões
legitimamente manifestadas pela parte privada sejam atendidas, desde logo, até mesmo na
própria instância administrativa.
(...) Não se pode perder de
perspectiva o fato de que a cidadania impõe ao Estado o dever de atribuir aos
''desprivilegiados'' verdadeiros marginais do sistema jurídico nacional a
condição essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas
de dignidade e merecedoras do respeito social.
(...) A exclusão de ordem jurídica
que representa um subproduto perverso derivado da exclusão social , gerada e
impulsionada pela injusta condição social que tão gravemente afeta os que nada têm,
acaba por frustrar a possibilidade de defesa jurisdicional das prerrogativas jurídicas
que competem, de maneira indisponível, a ada ser humano.
(...) É preciso sem
prejuízo de outras medidas igualmente necessárias instituir, consolidar e
aparelhar, em todo o país, as Defensorias Públicas, cuja importância, nesse processo de
construção da cidadania, reveste-se de relevo indiscutível.
(...) Parece-me importante refletir,
ainda, sobre a real necessidade da subsistência, em tempo de paz, da anômala
competência penal outorgada à Justiça Militar da União em relação a acusados civis.
Não existem razões políticas ou
históricas que possam justificar, em tempo de paz, que civis ainda estejam sujeitos à
jurisdição de cortes marciais, de tribunais militares, que, no plano da União Federal,
continuam a dispor de competência para processá-los e julgá-los por suposta prática de
crimes militares!!!
(...) Proponho que, esgotada a
jurisdição interna, quem se considerar lesado nos direitos fundamentais que a
Constituição reconhece possa recorrer aos tribunais ou organismos internacionais
constituídos segundo tratados ou convenções dos quais o Brasil, mediante subscrição
ou adesão, seja parte.
Essa proposta que mantém
relação de pertinência com o tema da reforma judiciária, pois incumbe à Magistratura
o encargo de proteger as liberdades fundamentais do indivíduo e do cidadão tem
por finalidades neutralizar eventual ação diplomática do Estado brasileiro, que, à
semelhança do que ocorreu com a não aceitação, por ele, da cláusula inscrita no art.
62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, culmine por recusar a competência
jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, subtraindo-se, em
conseqüência e não obstante o sentido inequívoco da vontade estatal manifestada
na norma inscrita no art. 7º do ADCT.88 ao controle internacional em tema de
respeito e proteção aos direitos básicos da pessoa humana.
artigo extraído da página
http://www.solar.com.br/~amatra/cb-04.html